Serviço Social, favelas e educação popular: diálogos necessários em tempos de crise do capital

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SERVIÇO SOCIAL, FAVELAS E EDUCAÇÃO POPULAR: DIÁLOGOS NECESSÁRIOS EM TEMPOS DE CRISE DO CAPITAL



Sã o 200, são 300 as favelas cariocas? O tempo gasto em conta- las é tempo de outras surgirem. 800 mil favelados ou já passa de 1 milhã o? Enquanto se contam, ama-se em barraco e a céu aberto, novos seres se encomendam ou nascem à revelia. Os que mudam, os que somem, os que sã o mortos a tiro sã o logo substituídos. Onde haja terreno vago onde ainda nã o se ergueu um caixotã o de cimento esguio (mas se vai erguer) surgem trapos e panelas, surge fumaça de lenha em jantar improvisado. Urbaniza-se? Remove-se? Extingue-se a pau e a fogo? Que fazer com tanta gente brotando do chã o, formigas de um formigueiro infinito? Ensinar-lhes paciência, conformidade, renú ncia? Cadastrá -los e fichá -los para fins eleitorais? Prometer-lhes a sonhada, mirífica, ró sea fortuna distribuiçã o (oh!) de renda? Deixar tudo como está para ver como é que fica? Em seminá rios, simpó sios, comissõ es, congressos, cú pulas de alta prosopopéia, elaborar a perfeita e divina decisã o? Um som de samba interrompe tã o sérias indagaçõ es e a cada favela extinta ou em bairro transformada com direito a pagamento de COMLURB, ISS, RENDA, outra aparece, larvar, rastejante, insinuante, grimpante, desafiante, de gente qual gente: amante, esperante, lancinante... O mandamento da vida explode em riso e ferida. Carlos Drummond de Andrade (1979)

“Nã o se pode dos não-intelectuais, porque os nã o-intelectuais nã o existem… Todos os homens sã o intelectuais; mas nem todos cumprem a funçã o de intelectuais na sociedade”. (Gramsci, 2000)



Eblin Farage Francine Helfreich Organizadoras

SERVIÇO SOCIAL, FAVELAS E EDUCAÇÃO POPULAR: DIÁLOGOS NECESSÁRIOS EM TEMPOS DE CRISE DO CAPITAL 1º Edição Eletrônica

Uberlândia / Minas Gerais Navegando Publicações 2020


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www.editoranavegando.com editoranavegando@gmail.com Uberlândia – MG, Brasil Direção Editorial: Navegando Projeto gráfico e diagramação: Lurdes Lucena Arte da Capa: Alberto Ponte Preta Foto Capa: Gildásio Jardim. Disponível em: <https://arteemtransito.com.br/ site/pt_br/2020/07/as-artes-de-gildasio/>. Acesso em: 01 set. 2020.

Copyright © by autor, 2020.

E2446 – (Org.). FARAGE E.; HELFREICH F.. Serviço Social, favelas e educação popular: diálogos necessários em tempos de crise do capital. Uberlândia: Navegando Publicações, 2020.

ISBN: 978-65-86678-35-2 10.29388/978-65-86678-35-2-0 Vários Autores 1. Serviço Social 2. Favelas 3. Educação Popular I. Eblin Farage, Francine Helfreich II. Navegando Publicações. Título. CDD – 360 CDU – 36 Índice para catálogo sistemático Educação 360


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Editores Carlos Lucena – UFU, Brasil José Claudinei Lombardi – Unicamp, Brasil José Carlos de Souza Araújo – Uniube/UFU, Brasil

www.editoranavegando.com editoranavegando@gmail.com Uberlândia – MG Brasil

Conselho Editorial Multidisciplinar Pesquisadores Nacionais

Pesquisadores Internacionais

Afrânio Mendes Catani – USP – Brasil Anderson Brettas – IFTM – Brasil Anselmo Alencar Colares – UFOPA – Brasil Carlos Lucena – UFU – Brasil Carlos Henrique de Carvalho – UFU, Brasil Cílson César Fagiani – Uniube – Brasil Dermeval Saviani – Unicamp – Brasil Elmiro Santos Resende – UFU – Brasil Fabiane Santana Previtali – UFU, Brasil Gilberto Luiz Alves – UFMS – Brasil Inez Stampa – PUCRJ – Brasil João dos Reis Silva Júnior – UFSCar – Brasil José Carlos de Souza Araújo – Uniube/UFU – Brasil José Claudinei Lombardi – Unicamp – Brasil José Luis Sanfelice – Unicamp – Brasil Larissa Dahmer Pereira – UFF – Brasil Lívia Diana Rocha Magalhães – UESB – Brasil Mara Regina Martins Jacomeli – Unicamp, Brasil Maria J. A. Rosário – UFPA – Brasil Newton Antonio Paciulli Bryan – Unicamp, Brasil Paulino José Orso – Unioeste – Brasil Ricardo Antunes – Unicamp, Brasil Robson Luiz de França – UFU, Brasil Tatiana Dahmer Pereira – UFF – Brasil Valdemar Sguissardi – UFSCar – (Apos.) – Brasil Valéria Forti – UERJ – Brasil Yolanda Guerra – UFRJ – Brasil

Alberto L. Bialakowsky – Universidad de Buenos Aires – Argentina. Alcina Maria de Castro Martins – (I.S.M.T.), Coimbra – Portugal Alexander Steffanell – Lee University – EUA Ángela A. Fernández – Univ. Aut. de St. Domingo – Rep. Dominicana Antonino Vidal Ortega – Pont. Un. Cat. M. y Me – Rep. Dominicana Armando Martinez Rosales – Universidad Popular de Cesar – Colômbia Artemis Torres Valenzuela – Universidad San Carlos de Guatemala – Guatemala Carolina Crisorio – Universidad de Buenos Aires – Argentina Christian Cwik – Universität Graz – Austria Christian Hausser – Universidad de Talca – Chile Daniel Schugurensky – Arizona State University – EUA Elizet Payne Iglesias – Universidad de Costa Rica – Costa Rica Elsa Capron – Université de Nimés / Univ. de la Reunión – France Elvira Aballi Morell – Vanderbilt University – EUA. Fernando Camacho Padilla – Univ. Autónoma de Madrid – Espanha Francisco Javier Maza Avila – Universidad de Cartagena – Colômbia Hernán Venegas Delgado – Univ. Autónoma de Coahuila – México Iside Gjergji – Universidade de Coimbra – Portugal Iván Sánchez – Universidad del Magdalena –Colômbia Johanna von Grafenstein, Instituto Mora – México Lionel Muñoz Paz – Universidad Central de Venezuela – Venezuela Jorge Enrique Elías–Caro – Universidad del Magdalena – Colômbia José Jesus Borjón Nieto – El Colégio de Vera Cruz – México José Luis de los Reyes – Universidad Autónoma de Madrid – Espanha Juan Marchena Fernandez – Universidad Pablo de Olavide – Espanha Juan Paz y Miño Cepeda, Pont. Univ. Católica del Ecuador – Equador Lerber Dimas Vasquez – Universidad de La Guajira – Colômbia Marvin Barahona – Universidad Nacional Autónoma de Honduras – Honduras Michael Zeuske – Universität Zu Köln – Alemanha Miguel Perez – Universidade Nova Lisboa – Portugal Pilar Cagiao Vila – Universidad de Santiago de Compostela – Espanha Raul Roman Romero – Univ. Nacional de Colombia – Colômbia Roberto Gonzáles Aranas –Universidad del Norte – Colômbia Ronny Viales Hurtado – Universidad de Costa Rica – Costa Rica Rosana de Matos Silveira Santos – Universidad de Granada – Espanha Rosario Marquez Macias, Universidad de Huelva – Espanha Sérgio Guerra Vilaboy – Universidad de la Habana – Cuba Silvia Mancini – Université de Lausanne – Suíça Teresa Medina – Universidade do Minho – Portugal Tristan MacCoaw – Universit of London – Inglaterra Victor–Jacinto Flecha – Univ. Cat. N. Señora de la Asunción – Paraguai Yoel Cordoví Núñes – Instituto de História de Cuba v Cuba



SUMÁRIO Introdução Eblin Farage e Francine Helfreich

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Apresentação Maria Lídia Souza da Silveira

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PARTE I– Crise do capital, formação profissional, processo de formação da consciência e educação popular

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I – Educação Popular e Consciência de Classe. Mauro Luis Iasi

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II – Serviço Social, Favela e Educação Popular. Eblin Farage e Francine Helfreich

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III – Crise Econômica Mundial, Pandemia e Governo Bolsonaro. Osvaldo Coggiola

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IV – A Educação Popular e as radicalidades históricas na América Latina Cristiane Sabino de Souza e Roberta Traspadini

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V – Do Quilombo à Favela: faces do racismo territorial na produção das cidades Maria Helena Elpídio

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VI – Crise ecológica e capitalismo: a alternativa ecossocialista Michael Löwy

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PARTE II – Serviço Social, favelas e movimentos sociais

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VII – Desenvolvimento geográfico desigual, racismo e ilegalidade

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do Estado na Maré Camila Barros Moraes


VIII – Serviço Social e Movimentos Sociais: desafios em tempos do

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recrudescimento do conservadorismo Sabrina dos Santos Dias

IX – As politicas de habitação no Brasil e seus rebatimentos para a

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classe trabalhadora Maria Caroline da Silva Souza

X – Crise urbana e a produção de sujeitos coletivos: a experiência do

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MTST em São Gonçalo – RJ Bruno José da Cruz Oliveira

XI– Fórum de Luta pela moradia de Niterói: uma experiência exten-

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sionista de Educação Popular em tempos de pandemia Ana Cristina Oliveira de Oliveira e Regina Bienenstein

XII– Do direito à moradia à precarização das condições de vida: o cotidiano dos moradores do PMCMV no complexo do Jóquei. Débora Rodrigues de Araujo

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INTRODUÇÃO* O livro “Serviço Social, Favelas e Educação Popular: diálogos necessários em tempos de crise do capital” expressa um conjunto de reflexões produzidas ao longo da nossa intensa trajetória acadêmica, profissional e militante. Diante da atual conjuntura e da crise estrutural do capital, partimos do pressuposto de que, reafirmar o debate sobre o processo de formação da consciência, a educação popular e a necessária interface com a organização dos(as) trabalhadores(as) e periferias se torna premente para a defesa de um projeto profissional que tem em seu horizonte a emancipação humana e se pauta em um projeto ético–político de superação da ordem do capital. São muitos os ataques à classe trabalhadora em um espaço curto de tempo, mas nos últimos dois anos vimos, também, a eclosão da Educação Popular nas pautas e demandas daqueles e daquelas que lutam contra o conjunto de violações de direitos e opressões. Tamanha sublevação nos instiga a retomar esse debate que para nós, organizadoras deste livro, faz parte de nossa trajetória como educadoras populares, assistentes sociais e docentes engajadas em diversas lutas sociais. Nesse contexto, o contato próximo com experimentos de Educação Popular e as questões que circunscrevem o tema da favela acrescidos dos debates sobre a profissão e de seus desafios, em tempos de recrudescimento do conservadorismo, nos impeliu a organizar essa coletânea. O debate da favela e a dimensão da Educação Popular como forma crítica e propositiva de contribuir no processo de formação da consciência dos usuários dos serviços, sobretudo nos espaços profissionais, são temas de enorme interesse social e político que, além de imbricados ao nosso fazer profissional e militante, são sementes de mudança e revolução social. Para nós, a Educação Popular traz em seu âmago a dimensão de classe, ou seja, uma educação comprometida com aquelas e aqueles destituídos da riqueza socialmente produzida, e cujo objetivo precípuo “[...] deve ser o de contribuir para a elevação da sua consciência crítica, do reconhecimento da sua *

DOI- 10.29388/978-65-86678-35-2-0-f.13-18

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condição de classe e das potencialidades transformadoras inerentes a essa condição1” (VALE, 1992, p. 57). Essa perspectiva de Educação Popular e a relação com os movimentos sociais permeiam nosso caminho formativo desde a juventude, com ênfase nas experiências profissionais marcadas, sobretudo, pela construção do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Favelas e Espaços Populares (NEPFE), criado em 2009 quando ainda atuávamos como assistentes sociais e coordenadoras de projetos e de processos formativos na Redes de Desenvolvimento da Maré (REDES)2. A inserção profissional e militante em ações e trabalhos no complexo de favelas da Maré nos possibilitou a experimentação da construção de uma perspectiva contra hegemônica de educação e formação que, como sinaliza Gramsci, gesta o germe do novo ainda na sociedade capitalista. Posteriormente, após aprovação em concurso público para docentes da Escola de Serviço Social da UFF, trouxemos o núcleo, constituído na favela, para a Universidade. Assim, interconectando ensino, pesquisa e extensão, demos continuidade àquelas ações, agora com ênfase na formação profissional de assistentes sociais. Nossas ações e intervenções inter–relacionam questão urbana, movimentos sociais, direito à cidade e educação, sempre pautadas nas reflexões articuladas entre classe–raça–gênero. Entre as várias motivações que nortearam a construção do NEPFE, ainda no período de inserção na Maré, destacam–se: 1) a necessidade de produção de pesquisas e produções que reflitam sobre o cotidiano das favelas e espaços populares; 2) a proposta de constituição de uma rede de pesquisadores oriundos e/ou inseridos em espaços populares e favelas com vínculo com as Universidades públicas; e 3) a necessidade de produção de conhecimento que contribua para a diminuição dos estereótipos, preconceitos e visões homogeneizadoras sobre esses territórios, buscando influir na constituição de políticas públicas. 1

VALE, A. M. do. Educação Popular na Escola Pública. São Paulo: Ed. Cortez, 1992 Esta instituição, a qual coletivamente ajudamos a constituir, materializou um longo processo de ações, pesquisas e reflexões realizadas por um grupo de pessoas que, assim como nós, atuaram em organizações da Maré, algumas com mais de 30 anos de experimentos no campo da organização comunitária e movimentos populares. Hoje se pode afirmar que esta é uma das instituições mais relevantes do bairro da Maré, servindo como referência para o trabalho em favelas por todo o Rio de Janeiro. 2

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O núcleo tem como foco de seus estudos e produções a questão urbana, com ênfase nas diferentes dimensões da vida cotidiana na favela e nos movimentos sociais. Os estudos percorrem a constituição urbana carioca, o desenvolvimento capitalista desigual e combinado que impulsiona a conformação de diferentes territórios na cidade, as diferentes dimensões da vida cotidiana na favela e o processo de mercantilização da cidade. Além disso, muitas produções também vêm sendo construídas sobre temas correlatos e/ou na área da educação. Nosso objetivo principal é contribuir para o desenvolvimento de pesquisas e estudos sobre os espaços populares, favelas e movimentos sociais urbanos, tendo como foco a questão urbana e o direito à cidade. A partir das pesquisas e projetos pretende–se contribuir para o desvelamento da realidade social e o incentivo a ações propositivas que impulsionem a melhoria da qualidade de vida dos segmentos da classe trabalhadora residente em favelas e espaços populares, dando visibilidade às formas de resistência dos(as) trabalhadores(as) e possibilidades de organização coletiva através de movimentos sociais urbanos. Os trabalhos desenvolvidos no NEPFE ao longo dos seus 11 anos materializaram diferentes pesquisas e ações extensionistas que vêm contribuindo na formação de futuros assistentes sociais e profissionais da área das humanidades, seja para a inserção em espaços populares, tendo a questão urbana como referência, seja para a formação para a docência. São discentes de diversos Programas de Pós–graduação e/ou de instituições que têm o foco no trabalho social em favelas que, devido a sua passagem pelo núcleo, conseguiram acumular compreensões e construíram visões de mundo que talvez jamais ocorressem se não fossem os diferentes projetos de pesquisa e extensão que o NEPFE organiza e/ou desenvolve em parceria. Concretamente, no âmbito do Serviço Social, ainda existe uma lateralização e, em algumas realidades, até mesmo uma ausência dos debates sobre questão urbana, movimentos sociais, educação popular, raça, gênero e meio ambiente, entre outras expressões contemporâneas da Questão Social. Nesse sentido, o NEPFE, a partir de uma articulação entre essas temáticas, se propõe a contribuir na formação profissional e ampliar as leituras sobre os espaços populares e favelas. Depois de 11 anos de existência na UFF, o NEPFE possui importantes parcerias com outros núcleos de pesquisa, como o NEPHU – Núcleo de Estudo e Projetos Habitacionais e Urbanos, com o qual realiza, entre outros, 15


o programa “Universidade pública e direito à cidade: assessoria a movimento social”. Também realiza parceria com o Grupo de Estudos Questão Urbana e Serviço Social da UniRio. Essas parcerias apontam para uma ampliação dos laços e dos lastros que o debate articulado entre educação popular, movimentos sociais e favelas pode produzir. Ao organizar esse livro, buscamos reunir reflexões que articulem temas que permeiam o trabalho construído a partir de experiências enraizadas no ensino, pesquisa e extensão e desenvolvidas desde 2012 na UFF e em outros espaços. Diante da conjuntura de retrocessos, conservadorismo e ataque às liberdades e estruturas democráticas conquistadas a partir da Constituição Federal de 19883, compreendemos que esses são temas relevantes para o debate contemporâneo do Serviço Social e que atingem o fazer e a formação profissional do Serviço Social. O livro foi dividido em duas partes. Na primeira, os capítulos apresentam as dimensões teóricas e fundantes para a formação e o fazer profissional comprometido com a emancipação social. O desenvolvimento dessas dimensões se desdobra em temas como formação da consciência, educação popular, meio ambiente, território e espaço, mas sempre explicitando como elemento de fundo a crise internacional do capital e seus rebatimentos no Brasil. Na segunda parte, as interconexões entre essas dimensões e os territórios favelizados, enraizadas em pesquisas e experiências extensionistas, são explicitadas em dimensões da vida cotidiana dos segmentos da classe trabalhadora residentes nesses espaços, como violência estatal, segurança pública, movimentos sociais, questão racial e questão habitacional, entre outros. Por fim, vale registrar que o livro agrega pesquisadores(a) do NEPFE, egressas do Programa de Pós–Graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional da UFF, convidado(a)s de programas de pós graduação do Serviço Social da UFRJ, UFF, UFJF e UFES, professora do Programa de Pós–Graduação da Arquitetura da UFF e pesquisadores(as) da USP, UNILA e UNIRIO. Além de pesquisadores(as) nacionais temos a contribuição de um importante pesquisador internacional que nos instiga, a partir de questões ambientais e do campo 3

BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

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do marxismo, a analisar as consequências dos efeitos da crise internacional do capital para a classe trabalhadora. Este livro, em sua diversidade, reúne tanto contribuições de pesquisadores(as) no ímpeto de suas primeiras contribuições quanto de pesquisadores(as) assentados na solidez de trajetórias mais extensas. Esperamos que a diversidade de autoras e autores aliada a todas as provocações e articulações temáticas, assentadas no campo da teoria crítica ou em debates mais contemporâneos que o livro nos traz, contribuam para nos inquietar e impelir à ação. Ou, nas palavras de Paulo Freire, para nos ajudar a “ler o mundo” e que assim possamos transformá–lo.

Eblin Farage e Francine Helfreich Niterói, 30 de setembro de 2020 Quando já se registram, infelizmente, mais de 140 mil mortes e quase 5 milhões de infectados pela COVID–19.

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APRESENTAÇÃO* Escrever a apresentação deste livro me enche de dupla alegria. Primeiro porque é organizado por duas ex–alunas muito queridas, Eblin Farage e Francine Helfreich, com as quais convivi desde a graduação e pós em Serviço Social. Além de se destacarem pela seriedade nos estudos e demarcarem claramente seu interesse e comprometimento com a questão social no Brasil e as reais condições de vida e exploração das classes trabalhadoras, partilharam comigo ao longo destes anos, experiências importantes de Educação Popular, no âmbito do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), no Núcleo de Educação Popular 13 de maio e junto a um grupo de estudos de educadores populares no Centro de Ações Solidárias da Maré (CEASM). Ao se voltarem para organizar esta publicação, coerentemente estão a explicitar a urgência em ser considerado o enraizamento e sofisticação da lógica mercantil que orienta a vida social, fetichizando e produzindo o ocultamento das relações de exploração e dominação vigentes. No esteio dessa urgência, enfatizam a relevância da produção e do acesso a uma feição de conhecimento que interpele a realidade, que seja partilhado e posto em debate, e, especialmente, que possa contribuir no processo de formação humana e política das classes trabalhadoras. Valendo–me de Maria Rita Kehl1, a partir de Zizek, ressalto nessa perspectiva, a conformação de uma insólita espiritualização do corpo–mercadoria, “[...] espiritualização que se perdeu como riqueza circulante nas trocas criativas entre os indivíduos, que retorna aderida às mercadorias, como crença necessária para produzir o esquecimento das condições materiais de produção dessas mesmas mercadorias: a morte lenta do corpo do trabalhador, que transferiu seu tempo de vida para a coisa produzida, e o empobrecimento geral de uma sociedade que só consegue “enriquecer” à custa destas vidas expropriadas” (KEHL, 2004, p. 79). DOI - 10.29388/978-65-86678-35-2-0-f.19-28 KEHL, M. R. Fetichismo. In: Videologias, ensaios sobre televisão. (orgs. KEHL, M. R.; BUCCI, E.). São Paulo: Boitempo, 2004. p. 79. No artigo a autora se baseia em Zizek, Slavoj O espectro da Ideologia in Um Mapa da Ideologia, Rio de Janeiro, Contraponto, 1994. *

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Penso ser na esfera dessa bússola teórica marxista que as organizadoras constituíram com os demais autores, textos que vão auxiliar nesse processo de prover alguma visibilidade às formas de resistência e às práticas sociais que, em suas distintas feições, são frentes negadoras dos processos de apassivamento em curso. Tomando como referência a sociedade burguesa, foi organizado um itinerário de questões e análises que percorrem, desde a particularidade das favelas no Rio de Janeiro, às políticas sociais fragmentadas e reificadas, passando pela presença dos movimentos sociais em suas expressões de retração e possibilidades, às elaborações sobre meio ambiente e ecossocialismo, ao debate sobre os reais processos de consciência e consciência de classe, desaguando na presença da educação popular e da formação humana e política, muitos destes temas em diálogo, questionamentos e demandas ao Serviço Social. O conjunto dos textos constrói essa teia de nexos, enquanto cada um vai puxando fios, muitas vezes tornados invisíveis pela lógica formal que organiza a tradutibilidade do real, numa sociedade regida pela ordem do capital. O livro está organizado em dois grandes blocos. O primeiro intitulado “Crise do Capital, Formação da Consciência e Educação Popular” constrói um arcabouço amplo a partir do qual seis textos trafegam. No primeiro texto, Mauro Luís Iasi nos auxilia a reconhecer que em certos períodos são ressuscitados antigos fantasmas ou são retomadas, sob modismo de ocasião, categorias teóricas ou componentes de prática social, nem sempre os mais condizentes com o real. Vai então nos provocar no sentido de perscrutar as possíveis relações entre educação popular, processos de consciência de classe e transformações societárias, dispondo interpelação precisa: “Em que ponto do processo de consciência pode atuar a educação popular e de que forma incide no processo de consciência de classe?” Questão posta a nos aguçar à leitura e apropriação de texto de fácil compreensão mas densa substância teórica. Convite para que se desmonte uma certa visão ingênua que se tende a portar de que o processo educativo presente na educação popular municia, de per si, as classes trabalhadoras a compreenderem não só as determinações de sua existência sob o capitalismo, mas também a própria sociedade burguesa. Mauro nos incita a mergulhar de cabeça no senso comum gramsciano, a captar a presença operante da ideologia desde Marx e Engels – nos desafiando 20


também a dar a mão a Zizek, a recorrer a Freud e a Sartre – a apostar numa dialeticidade que parece não ter fim. E aí a volta ao começo: descobrir o lugar da educação popular, sem reificações, nesse processo de transformação dos sujeitos e da vida social sob o capitalismo. Lendo o texto você vai ao mesmo tempo descobrir arrazoadas categorizações, se assenhorar de algumas e, principalmente, se inquietar... E com certeza vai procurar se subtrair dos enunciados mágicos em torno da Educação Popular. O artigo “Serviço Social, Favela e Educação Popular”, de Eblin Farage e Francine Helfreich parte de inquietações das autoras, originárias da atuação em favela no Rio de Janeiro, onde processos de Educação Popular tem centralidade. Ao darem visibilidade às formas organizativas locais de setores das classes trabalhadoras, nos sinalizam para as mediações que estes constroem num certo exercício de educação popular através do qual, a vida de sujeitos individuais, sua existência social, ações coletivas forjadas, resistência, perdas, lutas refeitas etc, estão implicadas na constituição de uma história que se processa sob o crivo das contradições da dinâmica da vida social sob o capitalismo. A partir do delineamento do território da favela e de um campo teórico marxista– gramsciano, recuperam também para si mesmas, como assistentes sociais e militantes de outro projeto de vida, uma perspectiva suplementar de Educação Popular. Num outro patamar, realizam percurso de recuperação histórica do trabalho profissional em favelas, na política pública assistencial e de habitação, para então, atravessando décadas, focarem no movimento de reconceituação do Serviço Social, locus de gestação de novos referenciais da ação profissional. Itinerário que chega à escola pública, aos cenários do mercado de trabalho profissional e à valoração dos coletivos organizativos (CFESS/ CRESS). Vale ressaltar a interpelação que percorre o corpo do texto afeta os vínculos reais entre o projeto ético–político da profissão e sua efetiva face pedagógica na ação profissional: auxiliadora no controle social e nos processos de apassivamento que sedimentam o senso comum próprio da concepção de mundo dominante ou direcionada a um fazer focado em processos emancipatórios,

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voltados para experiências e constituição de vínculos com as classes trabalhadoras? As autoras assumem na costura do texto, a perspectiva classista no trabalho educativo. E sinalizam para as distintas leituras presentes no interior da profissão, talvez mais que diversificadas, ecléticas, ao transmutar marxistas em progressistas, trabalhadores em atores sociais, beneficiários de serviços ou ainda protagonistas emergentes. Ao sistematizarem as potencialidades postas na relação projeto ético–político do Serviço Social e Educação Popular, explicitam também seus muitos limites. O que, com certeza, ajudará bastante os leitores a desarrumarem e reorganizarem as suas próprias visões e incompletudes. A abordagem da crise econômica mundial, da pandemia e do governo Bolsonaro é exposta por Osvaldo Coggiola de forma visceral. O tratamento dado à pandemia associa a sua existência ao sistema capitalista e às classes dominantes apontando para a sua responsabilidade pela propagação do vírus, pela quantidade de mortes resultantes e pela miséria que mais que mantida, se espraiou. Destaca ter a Covid–19 produzido um “[...] ponto de ruptura nos desenvolvimentos históricos globais”, fato que vai redundar em consequências sociais, econômicas políticas e geopolíticas mundiais, componentes centrais na análise empreendida pelo autor. Para além destes determinantes mais amplos que atingiram todos os países, explicita os nexos com a realidade brasileira, atribuindo ao governo Bolsonaro a adoção de uma política genocida no trato da pandemia. Coggiola vai buscar no campo do trabalho, nos trabalhadores da saúde que em condições adversas arriscam as suas vidas no enfrentamento do coronavírus, a efetiva vanguarda dessa luta. Ainda neste campo ressalta a situação vivida pelo conjunto da classe atingida pela pandemia, para quem o Estado não disponibilizou políticas que materializariam sua proteção social e sobrevivência. Situação que para além da denúncia, desafia as organizações da classe a assumir ações de efetiva solidariedade. No quarto texto, Roberta Traspadini e Cristiane de Souza retomam a perspectiva da Educação Popular no âmbito da América Latina, resgatando na teoria da dependência de Rui Mauro Marini os elementos essenciais à compreensão da história da educação, demarcando na aparência dos processos de democratização que vigoram na vida social, a permanência de elementos trata22


dos como naturais, em especial os múltiplos formatos da superexploração da força de trabalho. No contrafluxo desse ordenamento, as autoras recuperam nos percursos das lutas sociais no campo da educação, a conformação e presença ativa da educação popular, na qualidade de práxis dos sujeitos. A partir desse pressuposto desenvolvem de forma articulada, três aspectos centrais: o sentido da educação no capitalismo dependente; a educação popular na América Latina e finalmente, experiências de educação popular no Brasil do século XX e XXI. Na conjugação destes componentes, a ênfase é dada à educação popular – em especial aos experimentos protagonizados pelos movimentos sociais camponeses, indígenas e negros no Brasil – que articulada a múltiplas outras lutas sociais, contribui à constituição da resistência e de alternativas à sociedade burguesa e ao capitalismo dependente, em particular. No texto “Do Quilombo às Favelas: faces do racismo territorial na produção das cidades,” Maria Helena Elpídio assume como premissa a impossibilidade de um modelo de cidade em formato igualitário quanto ao uso, produção e ocupação dos territórios na esfera do sistema capitalista. Premissa nem um pouco paralisante visto que através da recuperação dos processos de resistência ao arbítrio e à desigualdade travados pelos quilombos, levantes e insurreições urbanas, em verdade a autora vai conformando movimento efetivo de recuperação da memória histórica das lutas sociais fadadas ao esquecimento no interior da história oficial. Patrimonialismo rural, patriarcado, desigualdades de classe estruturantes, racismo estrutural – re–edição das senzalas, nas palavras de Helena –, sistema democrático formal – apartado da real constituição de bases de instauração de função social, tanto das cidades como do campo –, persistência da violência estatal, eis aí exposto um certo itinerário instigante percorrido pela autora. Através dele somos instados a perceber como os formatos de produção dos espaços vão determinando as vidas dos sujeitos humanos no espectro de produção e reprodução da própria sociedade, próprias da lógica capitalista, a imprimir as marcas da propriedade privada da terra, transmutando este bem em mera mercadoria. E, simultaneamente, agravando as condições de vida dos mais pobres, ‘de vidas humanas banalizadas por esta lógica”, nos termos da autora.

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Ao utilizar rigorosa base teórica e empírica nos municia não só à compreensão da gravidade da questão, mas recoloca pertinente questão de fundo: é possível “des–privatizar a cidade” sob o capitalismo? Inquire e ao mesmo tempo afirma: “Romper as barreiras da segregação socioterritorial implica derrubar o modelo social que a produz. Superar o racismo e o capitalismo, está no centro do processo”. Michael Löwy, em seu texto “Crise ecológica e capitalismo, a alternativa ecossocialista”, retoma a centralidade da mercadoria e de sua lógica na análise e interligação entre crise econômica e crise ecológica. Localiza na devastação da natureza, deterioração do meio ambiente e mudança climática, expressões desta calamidade mundial que se expande de forma extremamente rápida e que precisa ser entendida no quadro destrutivo da acumulação capitalista. Feições próprias das sociedades que se organizam a partir do viés da lucratividade, da expropriação do trabalho, numa “expansão infinita do capital” nos termos do autor, para a qual, a crise ambiental ou mesmo a destruição do meio ambiente e a sobrevivência da espécie humana não se colocam como questões vitais. O ecossocialismo apresentado por Löwy, incorporando as premissas de Marx, aponta para uma perspectiva substantiva de profunda revolução socialista, a incorporar mudanças no aparelho produtivo e no modo de vida em torno do consumo. Ecossocialismo como proposta de uma nova civilização. O segundo bloco de textos é norteado pelas reflexões em torno do “Serviço Social, Favelas e Movimentos Sociais”. Camila Barros Moraes o inicia com o texto “Desenvolvimento geográfico desigual, racismo e ilegalidade de Estado na Maré”, tomando como ponto de partida de sua exposição um projeto concreto, “De olho na Maré”, voltado à produção de dados e sistematização de narrativas produzidas em função de determinação muito concreta, a violência armada em 16 favelas da Maré. Tensionando dimensões dos impactos desta violência em relação à política de segurança pública estatal, vai privilegiar na sua condução analítica três eixos norteadores: as contradições do capitalismo, o surgimento das favelas no Rio de Janeiro e o processo de escravidão – ressaltando como são forjados os espaços urbanos e produzidos os múltiplos processos de criminalização das favelas e dos espaços populares –, e, finalmente, localizando nas feições da ação estatal no interior da Maré, a marca da ilegalidade. Camila trata tais eixos num movi24


mento teórico e investigativo de fôlego, ao articular a existência do modelo capitalista de organização da vida à estruturação do espaço urbano pelo Estado, num formato necessariamente desigual, no qual a violência tem absoluta centralidade no tratamento da população pobre e majoritariamente negra que reside nestes espaços. Evidencia a urgência de ampliação do acesso à justiça e de espaços de participação social, mesmo no feitio limitado, característico da democracia burguesa. O texto de Sabrina dos Santos tem sua centralidade na articulação entre movimentos sociais e Serviço Social, este considerado no escopo do projeto ético–político profissional, norteado à constituição de vínculos com os reais interesses das classes trabalhadoras. Valendo–se da teoria crítica como referência, organiza seu processo de reflexão direcionando–o para a crise do capital e a reforma do Estado, demarcando a presença do necessário conservadorismo de nossa formação social, assim como no próprio Serviço Social. Conservadorismo que não só se ampliou, mas está impregnado nos espaços populares, o que significa dizer, no universo de referências e vida das classes subalternas. A autora explora a possível vinculação entre o projeto profissional e os movimentos sociais, destacando concepções divergentes no interior do espaço da profissão. Registra como essencial no processo de materialização do projeto ético–político a formação profissional, tendo como um de seus fundamentos, as diretrizes curriculares da ABEPSS (Associação Brasileira de Ensino do Serviço Social), essenciais para que a profissão não retroceda a uma perspectiva conservadora do seu fazer. Instiga à compreensão de que a relação projeto ético–político/movimentos sociais é uma construção coletiva, mutável, portanto, sujeita à dinâmica não só da conjuntura, mas das disputas existentes no interior da categoria profissional. Assim, a manutenção da direção hoje hegemônica, crítica ao capitalismo e comprometida com os interesses das classes trabalhadoras precisa ser continuamente reafirmada teórica e concretamente. Maria Caroline Souza elabora seu texto centrando na questão da habitação no Brasil, política social da maior importância para as classes trabalhadoras. A partir de distintas compreensões acerca da cidade, se volta para algumas políticas habitacionais já implantadas no Brasil, tendo como elemento norteador de sua abordagem o formato de sua incidência efetiva na vida dessas classes. 25


Na sua lógica de exposição situa a estruturação das cidades no capitalismo, os problemas urbanos decorrentes, entre os quais o da habitação, vinculando–o à matriz vigente que organiza a vida social. Matriz que direcionará a sua investigação situando–a no escopo da cidade–mercadoria, via programas habitacionais criados, desde o BNH (Banco Nacional da Habitação), ao Programa Minha Casa, Minha Vida e ao recente Programa Casa Verde e Amarela. A autora desnuda como o acesso à moradia, à “promoção” do trabalhador ao status de proprietário, é em verdade, instrumento de financiamento da economia, voltado para setores particulares do capital, a depender da conjuntura e da correlação de forças. São interesses empresariais, políticos, do capital industrial, de setores da construção cível, do capital financeiro que estão de fato em jogo. Desnuda, portanto, a existência da pretensa prioridade dessa política pública de acesso à moradia pelas classes trabalhadoras, no esteio da ordem burguesa que rege a dotação dos recursos alocados para este fim. Sua análise reforça a formulação de Engels, presente no texto, no sentido de que a habitação não é uma política de construção de casa, mas de lógica social. “Crise urbana e produção de sujeitos coletivos: a experiência do MTST em São Gonçalo”, de Bruno Oliveira, resgata dimensões históricas, econômicas e políticas de São Gonçalo no processo de acumulação de capital. Faz recuperação de períodos históricos recentes, importantes ao entendimento da dinâmica de urbanização implementada, a produzir um certo traçado da cidade, com seus loteamentos e ocupações ilegais. Vai demarcar desde os cenários da economia local à crise econômica nos centros capitalistas e seus reflexos no Brasil. No âmbito das lutas populares dos gonçalenses, retoma desde a influência do PCB em Niterói – impulsionando lutas sociais e organização sindical –, ao período da redemocratização e sua incidência nos movimentos populares e no estudantil. Cobrindo particularidades de várias décadas – dialetizando contextos históricos e movimentações populares – vai se deter no MTST, surgido em 1997, no escopo da segregação espacial, a demandar Reforma Urbana, em contraposição à cidade–mercadoria. Ao enfocar a luta pela moradia, o autor sinaliza para um conjunto de outras dimensões de lutas que se impõem no contexto das necessidades sociais dos trabalhadores. A partir de experiência extensionista norteada pela Educação Popular, Ana Cristina de Oliveira e Regina Bienenstein tomam como referência o experi26


mento do Fórum de luta pela Moradia de Niterói, incorporando dimensões deste período atravessado pela pandemia. Situam o quadro de agudização da crise econômica e política internacional, demarcando os impactos da COVID–19 mundialmente e em especial sobre a vida das classes trabalhadoras. Efeitos múltiplos que são potencializados pelas medidas econômicas de flexibilização e precarização do trabalho adotadas pelo governo brasileiro, pelo aumento dos fatores de risco de suicídio e o afloramento de mais adoecimentos físicos e problemas de saúde mental. Assim, a desigualdade social já existente não só se amplia, mas põe a nu as condições de habitação precarizadas nas favelas e espaços populares. Localizam no trabalho do Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos (NEPHU), ações que se voltam à socialização do conhecimento junto aos espaços populares, incentivando uma real participação popular. No seu interior o direito à moradia, à cidade, a um planejamento urbano que incorpore benefícios sociais. Projeto que para sua consecução envolve equipe interdisciplinar através de assistência técnica, social e jurídica. Fazem parte desse experimento os municípios do Rio, Niterói, São Gonçalo e Volta Redonda. Ressaltam ainda a relevância da construção coletiva das ações de Extensão Universitária realizadas em reuniões do Fórum de Luta por Moradia, em assembleias comunitárias e oficinas temáticas. Há uma dimensão essencial posta no itinerário das considerações das autoras: a afirmação da extensão universitária na qualidade de intensificação dos vínculos da sociedade com a universidade, o que supõe acesso às demandas populares e sua elaboração pela academia. Ao mesmo tempo, apresentam possíveis e diferenciadas contribuições da Educação Popular, que incluem desde a perspectiva de adoção do senso crítico ou ainda, em outro patamar, voltada para um viés nitidamente de classe, anti–hegemônico. O texto de Débora Rodrigues se volta para uma das questões essenciais na organização da vida de uma parcela imensa das classes trabalhadoras: o direito à moradia. A autora traça um painel das precariedades da vida cotidiana dos moradores de bairro periférico de São Gonçalo, no estado do Rio de Janeiro, interpelando sobre a efetividade dos direitos, a partir da execução de uma política pública, o Programa Minha Casa, Minha Vida.

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A autora desmonta o discurso do acesso à casa própria para famílias pobres, revelando, para além da previsível escolha pelas regiões periféricas – com parca infraestrutura urbana e serviços públicos – a verdadeira prioridade do capital, voltada para a construção civil e o mercado imobiliário. Manutenção da desigualdade social, precarização das condições de vida, esse é o formato dos direitos sociais destinados às classes trabalhadoras. Situação por ela interpretada a partir da teoria do desenvolvimento desigual e combinado e da análise qualitativa realizada a partir de pesquisa documental e bibliográfica, idas ao território e relatos de moradores.

Maria Lídia Souza da Silveira Rio de Janeiro, 25 de setembro de 2020

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PARTE I CRISE DO CAPITAL, FORMAÇÃO PROFISSIONAL, PROCESSO DE FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA E EDUCAÇÃO POPULAR

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I EDUCAÇÃO POPULAR E CONSCIÊNCIA DE CLASSE* Mauro Luis Iasi1

INTRODUÇÃO A educação popular leva à consciência de classe? Colocada nestes termos, nossa resposta deve ser: não. Devemos evitar a conexão mecânica entre nossas atividades de formação e o desenvolvimento da consciência de classe, a questão deve ser recolocada, segundo penso, da seguinte maneira: em que ponto do processo de consciência pode atuar a educação popular e de que forma incide na formação de uma consciência de classe? Herdamos da tradição iluminista a compreensão idealista segundo a qual a consciência é obstaculizada por barreiras 2 que podem ser superadas pelas luzes do conhecimento e que este seria o ponto de partida das transformações sociais. Nesta concepção, os trabalhadores e trabalhadoras, submetidos à reificação e as condições de existência próprias da sociedade capitalista não compreendem as determinações de sua existência que precisam ser comunicadas a eles por meio do processo educativo. Compreendida desta maneira a educação popular é a transmissão de conhecimento que substituiria a manipulação e desinformação intencional difundida pelas instituições da ordem. No fundo, a troca de um conjunto de informações, saberes e representações por outra. DOI - 10.29388/978-65-86678-35-2-0-f.31-52 Mauro Luis Iasi, professor associado da Escola de Serviço Social da UFRJ, do NEPM (PPGESS–UFRJ), do Núcleo de Educação popular 13 de Maio (NEP), membro do CC do PCB. Autor de Ensaios sobre consciência e Emancipação (Expressão Popular, 2007), O Dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo/Viramundo, 2002), Metamorfoses da consciência de classe: o PT entre a negação e o consentimento (Expressão popular, 2006), Política, Estado e Ideologia na trama conjuntural (ICP, 2017), entre outros. 2 São exemplos desta aproximação as ideias de Francis Bacon (1561–1626) e sua afirmação segundo a qual o conhecimento estaria impedido por preconceitos que deveriam ser afastados para dirigir–se diretamente às coisas (KONDER, 2002) *

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A nosso ver, esta visão não compreende o processo de consciência (IASI, 2007), isto é, como se produz e reproduz uma determinada consciência social que encontra sua mediação na consciência dos indivíduos de uma determinada sociedade, constituindo o que Gramsci (1999) denomina de senso comum. Disto resulta que questões essenciais ao nosso tema, como a alienação e a ideologia, acabam por não ser compreendidos em sua verdadeira dimensão e importância. Costumamos compreender o problema partindo da premissa que as ideias das classes dominantes chegam até aos trabalhadores e trabalhadoras pelos meios de comunicação, assim como pelas instituições de ensino. Seja de uma ou outra maneira, esta visão implica em acreditar que a consciência se forma pela transmissão de sistemas de ideias e valores sistematizados, portanto, podendo ser trocados por um outro sistema de ideias. Assim, os meios de comunicação impõem uma visão de mundo ao qual devemos contrapor com nossos meios (jornais populares, rádios comunitárias, espaços virtuais nas redes sociais, o discurso da militância, etc.) uma outra visão de mundo. Nesta aproximação, a educação popular seria o espaço privilegiado para apresentar de forma sistemática uma visão crítica do mundo e da sociedade, contribuindo para que nossa classe adquirisse consciência de sua posição e papel históricos. O problema é que a ideologia dominante não é apenas um conjunto de ideias, representações e valores que está aberta ao debate com ideias alternativas num jogo democrático cujo critério é a solidez dos argumentos e a prova do real. Todo militante que se torna consciente de sua posição histórica de classe, sofre da ilusão que se colocá–lo diante de seu adversário de classe e der condições de um debate franco, a força dos argumentos, que para ele faz todo o sentido, convencerá a todos. Marx e Engels (2007, p. 524) ao tratar da ideologia alemã, afirmam que “[...] os críticos filosóficos alemães afirmam que as ideias, as representações, os conceitos até agora dominaram e determinam os homens reais, que o mundo real é um produto do mundo ideal” e ofereciam como possibilidade de superação a libertação da consciência destas quimeras que a ela foi imposta, ensinando–os a “[...] trocar essas imagens por pensamentos que correspondam à essência do homem”, ou ainda, contrapor–se criticamente em relação a essas ideias, “[...] arrancá–las da cabeça” e, então, “[...] a realidade haverá de desmontar” 32


(idem, p. 523). Os atores de A Ideologia Alemã concluirão que não é mudando a fraseologia do mundo que podemos mudar a sociedade e nos indicam um caminho bastante preciso para nosso tema. Para eles as ideias dominantes são apenas a expressão das relações sociais dominantes em cada período, as relações que fazem de uma classe a classe dominante expressas em ideias (MARX e ENGELS, 2007). Não podemos confundir a dominação com as ideias da dominação, a primeira é objetiva, fundada num certo desenvolvimento da divisão social do trabalho, em determinada forma de relações sociais de produção, nas quais os proprietários dos meios de produção, por exemplo, exploram o trabalho alheio. A consequência desta premissa já é enorme, se mudarmos as ideias, as palavras que expressam esta objetividade e trocá–las por outras, não mudaríamos a objetividade da exploração e da dominação, da mesma maneira que não mudamos a situação de um desempregado que tem que se virar fazendo bicos, chamando–o de micro empreendedor individual. A conclusão que se impõe é que se quisermos mudar o mundo e as ideias que o representa, teríamos que mudar as relações dentro das quais produzimos nossa existência, mudar materialmente, isto é, alterar as formas de propriedade a divisão social do trabalho, as formas de produção e reprodução da vida, em poucas palavras, uma revolução. Mas, uma revolução precisa de um sujeito e Marx estava convencido que este sujeito era uma classe social que por estar na base da sociedade e não ter nada o que perder, poderia empreender o trabalho de destruir esta sociedade e construir uma nova. Aqui começam nossos problemas, uma vez que os trabalhadores não tem consciência nem das determinações desta sociedade que os explora, nem da possibilidade de numa ação revolucionária transformá–la, como, então, podem se constituir em um sujeito revolucionário? Não seria necessário comunicar aos membros desta classe estes fatos e conclusões para que eles possam empreender sua missão histórica? Eis que voltamos ao início de nossas ilusões. Vamos por partes. Em primeiro lugar, temos que compreender a razão dos trabalhadores que estão inseridos nas relações sociais de dominação e exploração não compreenderem as determinações de sua própria condição. Qualquer um poderia afirmar que são os trabalhadores, por viverem as condições de 33


dominação e exploração, os que melhor podem desvendar suas determinações. Que sofre um enfarto certamente sente as dores, mas estas não fazem com que ele compreenda de súbito o suficiente para proclamar: ai meu deus o miocárdio está recebendo doses insuficientes de oxigênio o que pode levar à necrose dos tecidos, seria necessário com certa urgência uma reperfusão de emergência com drogas fibrinolíticas, intervenção percutânea ou, ocasionalmente, cirurgia de revascularização miocárdica. Da mesma forma, há uma diferença entre viver a exploração e compreendê–la. Neste ponto, a compreensão equivocada à qual nos referíamos no início pode atrapalhar bastante, uma vez que acaba reduzindo a questão à dualidade verdade/falsidade, de forma que a burguesia impõe uma visão falsa e nossas reflexões revelariam a verdade. Parece que não é bem assim. Vejamos com mais profundidade. Nosso ponto de partida é a afirmação de Marx e Engels que as ideias dominantes são a expressão ideal das relações sociais dominantes. Ocorre que todos nós estamos envolvidos nestas relações, produzimos nossa existência em formas determinadas de trabalho, inseridas numa divisão social do trabalho, submetidos às formas históricas de propriedade que impõe determinadas formas de distribuição e acumulação da riqueza produzida. Ao viver e compartilhar as mesmas relações, resulta que todos nós compartilhamos, também uma mesma consciência social, ainda que a vivenciemos de formas distintas. Isto quer dizer que, em um primeiro momento, a consciência dos trabalhadores e trabalhadoras só pode ser a consciência imediata derivada da vivência da sociedade burguesa que corresponde às relações sociais de produção capitalistas de nosso tempo. Vejam que isso nos leva a uma constatação importante: as ideias, valores, representações que constituem a consciência de nossa época, portanto a consciência própria da sociedade burguesa, não é falsa, corresponde ao real (EAGLETON, 1997). O problema está, portanto, neste real e não na sua expressão ideal. Vamos a um exemplo. No período colonial os povos africanos foram sequestrados em suas terras e traficados para o novo mundo como parte do empreendimento colonial imposto pelos europeus. Na ideologia que daí resulta, os povos africanos não são seres humanos, mas coisas, mercadorias como o açúcar e o tabaco, e, portanto, tratados como tal, comprados, vendidos e consu34


midos gerando toda a violência e a barbárie da escravidão. Na consciência da época são tratados como “coisas”, “peças”, “res”, ou mais diretamente, escravo. Poderíamos argumentar que não são escravos, são seres humanos reduzidos à condição de escravos, o que é verdade. No entanto, a expressão ideal que retrata seres humanos como coisas a serem compradas e vendidas corresponde à realidade do tráfico de seres humanos e das relações sociais de produção que se estabeleciam no mundo colonial. A representação ideal de seres humanos, portadores de direitos fundamentais e inalienáveis, entre eles a condição de igualdade e liberdade, é que é um valor que não corresponde à realidade das relações reais estabelecidas naquele momento. Neste sentido, a ideologia não é uma mera falsidade, mas uma inversão que, neste caso, apresenta seres humanos como se fossem escravos. Ocorre que esta inversão não se produziu no mundo ideal, mas na realidade onde pela força se convertiam seres humanos em escravos. Marx, conclui daí que se esta sociedade apresenta uma “[...] consciência invertida do mundo” é porque ela é a expressão de “[...] um mundo invertido” (MARX, 2005, p. 145). Podemos passar ao segundo momento de nossa reflexão: mas, por que os oprimidos aceitam estas representações ideais como válidas? Neste momento o aspecto que ressaltamos que os indivíduos partilham as mesmas relações sociais, mas as vivenciam de forma distinta passa a ter relevância. Não é a mesma coisa vivenciar as relações escravistas como senhor de escravo ou como escravo. Que o primeiro esteja disposto a aceitar a justificativa da escravidão como natural e legitima, podemos compreender, mas o ser humano sujeito à escravidão pode aceita–la como natural? Bom, sabemos que pode, o que queremos saber é porquê. Comecemos pelo óbvio. Os povos africanos reduzidos à condição de escravos não foram informados por um conjunto de meios e processos educativos de um sistema de ideias, representações e valores que expressavam idealmente as relações coloniais e escravistas, nas quais os povos europeus apareciam como raças superiores e predestinadas a dominar os povos do mundo para sua grandeza e em honra a nosso Senhor Jesus Cristo. Primeiro, eles foram forçados brutalmente a abandonar suas velhas e tradicionais formas de vida e a se inserir nas relações próprias do grande empreendimento colonial. Ao se inserir nesta realidade, vivenciar as relações sociais, as formas de propriedade, uma cer35


ta divisão do trabalho e com o tempo, passam a interiorizar estas relações como base material de suas consciências, a orientar sua ação no mundo pelos valores ideais que expressam a materialidade da escravidão colonial. Este processo pode acabar por gerar o escravo que guia sua ação na direção de ser um “bom escravo”, como dizia Malcon X, almejar no máximo ser um escravo da casa, merecedor da confiança de seu senhor, julgando–se diferente de seus iguais, escravos da senzala. Da mesma forma, os trabalhadores e trabalhadoras de hoje, submetidos às relações sociais de produção burguesa, as aceitam como naturais e inevitáveis, sonham em subir na escala social, trabalhar para uma boa empresa, consumir parafernálias do consumo de massa, acreditam–se cidadãos de uma ordem democrática fundada nos princípios da igualdade, da liberdade e da propriedade. Encontra–se empenhado em defender a propriedade, ainda que não tenha nada além de sua propriedade individual fruto do trabalho e que ninguém quer expropriar a não ser os bancos e a especulação imobiliária. Mas, se esta consciência não chega aos trabalhadores pela simples comunicação de conteúdos e informações, como interiorizam as relações sociais externas e objetivas, transformando–a em base para sua consciência de si mesmo, dos outros e do mundo? Neste ponto temos que remeter nossa reflexão do que entendemos por processo de consciência (IASI, 2007, 2006). Imaginemos um ser que se insere em determinadas relações sociais de produção estabelecidas desde seu nascimento. Primeiro devemos estabelecer que ele não atua diretamente em relações sociais de produção, mas através de instituições nas quais se operará uma mediação entre a sociedade e o indivíduo a ser inserido, por exemplo, a família. O novo ser se apresenta a princípio como apenas a expressão de impulsos básicos que exigem satisfação, o que Freud (1978) denominará de Id. Ocorre que tais impulsos, como comer, beber, abrigar–se do frio e outros, tem que se realizar nas condições objetivas presentes na realidade externa ao ser. Logo desenvolve–se no aparato psíquico em formação uma mediação interna destinada a articular as necessidades apresentadas de maneira pulsional e as condições de sua realização, o chamado Ego. As exigências da objetividade externa são na verdade a manifestação de uma certa ordem histórica, marcada por padrões de con-

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duta, valores, comportamentos aceitáveis e inaceitáveis, que são mediadas pelas figuras paternas e materna. A criança em formação só pode reagir a estas normas e interdições de maneira a buscar a aceitação e evitar o desprazer, produzindo, aos poucos, um terceiro momento de seu psiquismo que representa o prolongamento da influência paterna e materna e, por sua vez, as exigências do meio social, da cultura e da sociedade. Esta instância representa subjetiva e internamente esta normatização externa e objetiva, formando o Superego (idem). Uma realidade objetiva e as relações que a constituem, são interiorizadas como a própria constituição psíquico do indivíduo. A objetividade das relações sociais não é interiorizada diretamente, mas forma de valores e isso é fundamental para nosso tema. Abstrai–se as formas concretas para se interiorizar a substância na forma de um valor, por analogia ao reino da economia política, abstraímos as formas concretas de trabalho (do pedreiro, marceneiro, do professor ou do assistente social) até chegar ao mero desgaste de força de trabalho, ao consumo de cérebro, nervos e músculos, na objetividade impalpável do trabalho abstrato. Os valores interiorizados que compõe o terreno no qual se desenvolverá as formas de consciência, são em substância as relações sociais que constituem uma determinada sociedade, mas sua forma ainda não é diretamente a forma objetiva em que se expressam nas relações de trabalho, por exemplo. Devo obedecer a autoridade do pai em busca de aceitação assim como devo me submeter mais tarde a autoridade do patrão e do Estado, mas a substância última é a obediência, a submissão à norma externa e objetiva que compreendo como real, natural e imutável. Os valores, antes de serem sistemas de ideias ou qualquer doutrina social, são cargas afetivas que o indivíduo julga como suas. Este processo se completa por um complexo jogo psíquico no qual o indivíduo reprime seus impulsos em nome da sobrevivência e da aceitação de seus objetos de desejo e identidade (o chamado complexo de Édipo). O que nos interessa particularmente aqui, um processo no qual o indivíduo transita do princípio do prazer para o princípio da realidade, aceitando e submetendo à normatização de um determinado real. Deste processo resulta a primeira forma da consciência na qual o indivíduo se insere em relações particulares pré–existentes que se apresentam como naturais e inevitáveis, interioriza esta realidade como o padrão e a norma 37


de comportamento e conduta a ser seguido para encontrar a aceitação e garantir sua existência (IASI, 2007). Este é o momento em que a consciência se apresenta como a consciência de um amoldamento à ordem e a uma determinada sociedade, a consciência do indivíduo é a mediação particular de uma determinada consciência social. Sobre este terreno operará a ideologia. A ideologia é a forma particular da consciência social em um contexto no qual a sociedade está dividida em interesses antagônicos e inconciliáveis de classe. A ideologia opera ocultando, naturalizando, invertendo, justificando, apresentando o interesse particular como se fosse universal para fins de garantir e reproduzir as condições que permitem a dominação de uma classe sobre outra. Como vemos, a ideologia se apoia em vários aspectos da consciência imediata e os funcionaliza para fins de dominação. É por isso que a intenção de combater a ideologia com golpes de argumentos que visam substituir uma visão de mundo por outra é absolutamente ineficaz. A ideologia se enraíza na consciência imediata e nas cargas afetivas que lhes servem de base, assim como encontra uma correspondência com as relações que constituem a realidade objetiva e se vê reforçada pala forma generalizada de uma determinada visão de mundo enraizada no senso comum. Os indivíduos, para agravar a situação, vem esta consciência imediata não como uma consciência imposta, mas sua própria consciência e não costumam abrir mão facilmente de suas convicções. Como dizia um velho filósofo grego; “é impossível levar ao conhecimento aquele que já julga possuí–lo”. O mesmo ocorre com o senso comum. Qualquer tentativa de enfrenta–lo diretamente provocará sua defesa e reforço. O elemento mais eficaz da ideologia é a apresentação dos interesses particulares de uma classe como se fossem universais, de maneira que uma crítica à família burguesa é vista como uma crítica “a” família, a crítica a sociedade burguesa como crítica da sociedade e assim por diante. Compreendido o fenômeno desta forma, podemos voltar a nossa questão. Qual é o papel, então, da educação popular? Poderia parecer que, assim compreendido, não restaria função alguma para as ações pedagógicas no campo popular. As relações sociais seriam reforçadas por suas expressões ideais, interiorizadas nos indivíduos como sua visão de mundo e não algo imposto desde 38


fora. Uma visão de mundo que corresponderia a realidade das relações estabelecidas, apresentando–as como naturais e imutáveis, justificando–as como legítimas e necessárias. Entretanto, se esta compreensão nos leva a constatar a força e a eficácia da ideologia, não pode atestar sua infalibilidade. A crise da ideologia encontra suas determinações na sua própria forma de ser, isto é, na forma como se produz e reproduz. Corre nos calcanhares da ideologia a maldição de ser a expressão ideal de uma dada objetividade, e esta objetividade está sempre em movimento enquanto suas expressões ideais precisam, até pela natureza de sua função, assumir formas mais ou menos permanentes. Estamos convencidos que a ideologia de nosso tempo histórico, isto é, a predominância do Modo de Produção Capitalista, corresponde àquilo que lhe é essencial e não às formas que venha a assumir, para isto existem subideologias que dão conta do recado, como o chamado “neoliberalismo” ou o fascismo. Nesta direção, independente da forma atual do capitalismo e da sociedade burguesa, ela tem que se fundar na propriedade privada dos meios de produção, na forma mercadoria, no assalariamento, na extração de trabalho e sobretrabalho, na acumulação privada da riqueza socialmente produzida e assim por diante. Evidente que há diferença se isto ocorre em condições de livre concorrência ou de avançado grau de monopolização, em um momento inicial da partilha do mundo em áreas de influência para a ação imperialista ou de repartilha numa situação de equilíbrio entre as nações imperialistas. Em cada um destes contextos será necessário revestir a propriedade de formas distintas, buscar formas alternativas de sua legitimação e justificativa, mas a propriedade é sempre um fundamento essencial, não por ser um valor, mas porque a substância deste valor que nele se expressa é fundamental para a existência das relações que constituem o ser do capital. Ocorre, então, que as ideologias, naquilo que lhe é fundamental e no conjunto dos momentos acessórios necessários para a adequação em cada época determinada, tem que assumir uma forma permanente diante de uma objetividade em constante mudança, abrindo de contradições. É evidente para qualquer um que analise com cuidado que o discurso ideológico de um liberalismo clássico não se adequa às condições de um capitalismo altamente monopolizado. A forma como a ideologia burguesa via a família, por exemplo, no século 39


XIX não costuma ser eficaz diante das formas de família que emergiram no decorrer do século XX. Nos momentos em que a objetividade se move e as suas expressões ideais tendem a ser afirmar como as mesmas se apresenta um momento de não correspondência e, portanto, de crise da ideologia que tem que buscar uma nova forma na qual reorganiza seu conteúdo. Na trajetória de vida dos indivíduos na esfera do cotidiano, vivemos este processo frequentemente. As ideias, valores, representações próprias das relações interiorizadas que serviram de base para nossa visão de mundo se chocam com novos contextos e perdem sua correspondência. Uma representação sobre o mundo do trabalho diante da realidade do trabalho, uma idealização das formas de família e a realidade do casamento, uma justificativa da perfectibilidade do mercado diante de uma crise inflacionária ou do desemprego, a pretensa superioridade dos serviços de saúde privados diante da avassaladora realidade de uma pandemia, etc. A crise da ideologia não leva, por si mesma, a sua substituição por uma consciência crítica de si mesmo e do mundo. As pessoas tendem a mergulhar em um estágio intermediário que normalmente se apresenta como revolta. Os velhos valores não nos bastam, mas não temos outros para compreender e atuar no mundo. Se antes tudo era natural e inevitável e era bom, agora inverte–se o sinal valorativo e tudo sempre foi errado e sempre será errado. Somente em certas circunstâncias que permitem à pessoa vivenciar coletivamente estas contradições é que podemos presenciar um salto no processo de consciência. Como jovens que vivenciam os limites de um bairro marcado pela violência e falta de condições de vida, de lazer, de trabalho e que reagem produzindo formas coletivas de resistência cultural; mulheres que se juntam para buscar resolver problemas de seus filhos ou enfrentar a dura realidade da violência doméstica, mães que procuram justiça para seus filhos vítimas do extermínio disfarçado de política de segurança pública, trabalhadores que se juntam por melhores salários e condições de trabalho. Isto pode ocorrer desde manifestações mais imediatas até questões mais abrangentes, ter uma abrangência local em um pequeno grupo ou chegar a níveis bem amplos de pertencimento, como os de classe. Este é um momento de grupalização, de descoberta de uma força coletiva e da vivência de sua potencialidade, de crítica dos limites de uma dada reali40


dade e de busca de alternativas, de descoberta de limites e de exigências, reivindicações. No entanto, mesmo a vivência mais intensa destas contradições e da crise dos antigos valores que costumavam compor nossas consciências, não desvenda por si mesma as determinações mais profundas das contradições que vivenciamos. Podemos viver profunda e dolorosamente as manifestações do racismo, podemos mesmo nos mobilizar para combatê–las, mas disso resultar um novo ponto de acomodação à ordem que tem por fundamento as raízes que se manifestam no racismo. O discurso muda para se reproduzir sua substância essencial. A ideologia, como afirma Zizek (1996), é em grande medida um anteparo que permite a convivência com a dureza insuportável do real. Certamente nos insurgimos diante da brutal realidade do apartheid, com suas normas de segregação explícitas, mas estamos perfeitamente adaptados à segregação própria de uma suposta democracia racial fundada na igualdade formal e na desigualdade de fato. Neste sentido, a ideologia da democracia racial é ideologicamente mais eficaz que o apartheid. Isto quer dizer que movimento de grande radicalidade como as lutas sindicais no Brasil ou o movimento negro nos EUA podem e muitas vezes encontram um novo ponto de amoldamento à ordem que procuravam negar. Tal processo de amoldamento não pode ser compreendido pelo viés moral, como se tratasse de mero desvio de conduta daqueles que participam dos movimentos de contestação que acabam por se amoldar. Mais uma vez as práticas educativas entram aqui como um bálsamo milagroso que poderia ter evitado os desvios ou responsabilizada por ter se equivocado e provocado os descaminhos. Feliz ou infelizmente não é bem assim. Ocorre que nossa ação se dá sob uma certa objetividade levando ao que Marx definiu brilhantemente da seguinte forma: os seres humanos fazem sua própria história, mas não a fazem como querem, mas sim premidos pelas circunstâncias em que se encontram e que lhes foram transmitidas pelo passado (MARX, [1851/52]). Aqui está resumido os termos da dialética da práxis humana: nós somos obrigados a atuar inseridos por uma materialidade que nos determina, mas, agimos sobre ela e a transformamos. Não podemos, no entanto, fazer como queremos, pois só podemos atuar nas condições e com aquilo que se nos apresenta em nosso campo imediato de existência. Aquilo que Sartre (1979) 41


chama de campo prático inerte. Para o pensador francês isto é uma maldição, isto é, negamos o que está instituído e criamos um novo campo prático inerte que se institui e nos aliena para depois negá–lo novamente até o infinito. Nós, baseados em Marx, pensamos um pouco diferente. Nós é que criamos o que está instituído e que nos leva a alienação e a reificação, portanto, podemos criar novas relações que não impliquem na alienação e no estranhamento, em outras palavras dizem Marx e Engels (2007, p. 43) “[...] as circunstâncias fazem os homens, assim como os homens fazem as circunstâncias”, por isso, como foram os seres humanos que produziram as condições de sua desumanização podem produzir aquelas que permitam sua emancipação. Mas aqui se apresenta o grande problema de nosso tema. Se os seres humanos estão inseridos em condições que levam à sua alienação e sua própria consciência alienada apresenta estas condições como naturais e imutáveis, como podem se constituir em um sujeito da mudança? Vimos que a vivência das contradições oriundas do movimento do real e seu descompasso com as formas ideais que a ele correspondem podem levar a uma primeira crise da ideologia e abrir espaço para novas formas de consciência. Vimos, também que estas novas formas que procuram negar em um primeiro momento aquilo que está estabelecido, podem encontrar um novo ponto de amoldamento, mudando a forma do discurso para manter a substância da dominação. Ocorre que em certas condições históricas que costumam combinar a crise do capital com momentos conjunturais explosivos, que Lenin (1976) chamava de situações revolucionárias, a classe trabalhadora se defronta com os limites incontornáveis de uma determinada ordem social e se empenha em superá–la. Esta experiência, qualitativamente distinta das lutas pontuais e cotidianas exige dos membros da classe que reflitam sobre as determinações mais profundas da sociedade, suas formas históricas, a relação entre estas e as manifestações políticas, culturais e econômicas existentes. Estas perguntas essenciais e o caminho para responde–las, como mudar a sociedade, quando é possível fazê–lo e de que forma, quais as condições para tanto, etc.; exigem uma mediação teórica, as respostas não são encontradas na vivência das contradições ou mesmo na luta contra elas. Os limites da consciência são limites de nossa inserção particular na totalidade histórica, neste sentido a apreensão da totalidade de nosso ser exige um desprendimento da esfera cotidiana da vida e das lutas, para que possamos 42


compreender as determinações de nosso tempo e nossa sociedade e assim pensar os caminhos práticos de sua superação. Se em um primeiro momento a teoria não podia substituir a vivência das contradições e o caminho prático das lutas sociais, agora, sem a mediação da teoria, não podemos avançar na tarefa de mudar a sociedade. Este movimento é identificado por Marx como momentos da consciência da classe trabalhadora. Primeiro submetido às condições da reificação e da alienação, serializada como indivíduos disputando um lugar ao sol na divisão social do trabalho, depois se unificando para reagir e lutar contra as contradições da vida e com isso se chocando com a forma capitalista da sociedade atual, desde lutas pontuais e efêmeras até lutas cada vez mais gerais e amplas que acabam por constituir a classe trabalhadora em oposição à burguesia (classe em si),mas ainda agindo e pensando nos limites da ordem mundana existente. Até que, no curso desta luta reúne as condições de perceber a si mesma como classe e como sujeito de uma possível transformação social pela destruição desta sociedade e a possibilidade de construção de uma nova (classe para si). Nossa questão, portanto, é: em que momento da transformação da classe trabalhadora pode atuar a educação popular? Tendemos a imaginar, pelo viés anteriormente descrito, que a educação deveria apresentar–se na fase da alienação com a função de “desalienar” e colocar a classe em luta. Entretanto, se entendemos corretamente o processo de consciência, atacar as consciências submetidas ao senso comum e, portanto, à alienação é muito pouco eficaz. Costumamos ver as diferentes ações que constituem o trabalho revolucionário como inseridas em uma espécie de divisão do trabalho, na qual cada ação deve responder a problemas específicos com instrumentos adequados. O momento da alienação não é um momento da formação e da educação, mas o da agitação. É hora de potencializar as contradições e intensificar a percepção daquilo que a pessoa vê como normal e imutável. Neste âmbito é muito mais eficiente o exemplo do que as práticas pedagógicas. Lembremos que os valores são interiorizados pela mediação das relações que sejam capazes de produzir vínculos e identidades. Neste sentido o prioritário neste momento são os vínculos e as ações capazes de ser veículos de valores que possam potencializar a revolta resultante da vivência das contradições próprias da existência. A tarefa central é a agitação. 43


É um erro comum e recorrente confundir as atividades formativas com o exercício da agitação. Evidente que há um elemento pedagógico na agitação, assim como acreditamos necessário um elemento agitativo na prática pedagógica, mas a determinação deve ser clara em um ou outro momento. No momento da formação da classe e suas lutas coletivas, o momento da fusão e superação da serialidade fragmentadora e formação do grupo, depois de níveis mais amplos de pertencimento até a classe, a revolta vai se constituindo em práticas mais ou menos permanentes, em formas organizativas de níveis e funções diversas. Neste momento, é evidente que as práticas organizativas e a dimensão da ação têm prioridade, mas já se apresentam formas educativas úteis, principalmente aquelas que permitem vincular as manifestações mais particulares e pontuais às determinações históricas e societárias mais fundamentais. A ação histórica independente da classe que a leva a constituir–se em classe para si não é produzida pela ação educativa, mas é impossível que se complete sem ela, uma vez que se trata da passagem da reação às contradições existentes para uma ação consciente visando a transformação social que, como vimos, implica a mediação de uma teoria social, a unidade entre ação e pensamento, uma práxis social. Neste momento a formação é essencial. Podemos, então, afirmar que a educação popular é um processo que atua no movimento de constituição da classe enquanto classe, mais precisamente no movimento que leva da classe em si na classe para si. Atua de forma complementar as tarefas organizativas e práticas, contribuindo com a qualidade desejada da ação, mas não define nem o resultado nem a qualidade final da prática política da classe uma vez que isto é resultado de uma série de fatores que escapa ao âmbito educativo, como a dinâmica da luta de classes o caráter do Estado e as opções estratégicas estabelecidas. Mas, por que educação popular e não simplesmente formação política? Dito neste grau de generalidade realmente podemos confundir dois momentos distintos no processo educativo da classe. Quando tratamos da dimensão da práxis de um sujeito revolucionário, estamos falando da apropriação de uma teoria social, de um método de compreensão da realidade, da capacidade de compreender uma determinada formação social e sua história, da estrutura de classes e as formas políticas e tudo o mais. Trata–se de uma tarefa intelectual de grande envergadura e que exige preparação adequada. Mas, devemos lembrar 44


que para nós o sujeito desta transformação são os trabalhadores e eles devem assumir esta tarefa intelectual. Gramsci dizia que todos são intelectuais, mas nem todos assumem na sociedade funções intelectuais (GRAMSCI apud COUTINHO, 2011). Os intelectuais, pensava Gramsci, “[...] se desenvolvem lentamente, muito mais lentamente que qualquer outro grupo social, por causa de sua própria natureza e sua função histórica” (GRAMSCI apud COUTINHO, 2011, p 122). Os trabalhadores têm uma relação contraditória coma dimensão intelectual, primeiro pelo fato que a divisão do trabalho cindiu a dimensão prática e espiritual do trabalho e essa cisão ganhou contornos abissais na divisão capitalista do trabalho. Ao refletir sobre essa questão, Gramsci nos diz: O homem ativo de massa atua praticamente, mas não tem uma clara consciência teórica desta sua ação, a qual, não obstante é um conhecimento do mundo na medida que o transforma. Pode ocorrer, aliás, que sua consciência teórica esteja historicamente em contradição com o seu agir. É quase possível dizer que ele tem duas consciências teóricas (ou uma consciência contraditória): uma, implícita na sua ação, e que realmente o une a todos os seus colaboradores na transformação prática da realidade; e, outra, superficialmente explícita ou verbal, que ele herdou do passado e acolheu sem crítica (idem, p. 136).

De maneira precisa o marxista italiano nos descreve o momento próprio da consciência em si. Um membro de uma classe que age nas ações transformadoras e nas lutas sociais, mas ainda pensa o mundo e a si mesmo com os valores, ideias e representações que colheu do mundo no qual se socializou. Tem, por assim dizer “duas consciências”, uma que expressa em sua ação que nasceu de uma crítica prática e vivenciada e outra que herdou do mundo. Parece estranho, mas vemos isso todos os dias. Companheiros empenhados em lutas sindicais em defesa dos trabalhadores que estão presos a valores da ordem patriarcal e machista, companheiros e companheiras com claro posicionamento antirracista que acabam aderindo a formas de empreendedorismo almejando um nicho empresarial bem sucedido buscando a emancipação na formação de uma classe média negra, intelectuais convictos da necessidade da transformação social empenhados em carreiras acadêmicas e disputas institucionais por uma posição de prestígio que mais lembra a universidade feudal. Todos nós somos 45


seres híbridos quando o assunto é nossa consciência, especialmente os revolucionários, pois nasceram e foram socializados em mundo que querem transformar. Como então desenvolver as capacidades necessárias à compreensão da realidade junto à classe trabalhadora e aos setores populares? A questão fica particularmente complexa se entendermos como verdadeira a ponderação de Gramsci que o segmento intelectual, por sua natureza e função histórica, se desenvolve muito lentamente, além do fato que os trabalhadores estão submetidos a uma escravizante divisão do trabalho que acentua sobremaneira a reificação própria da sociedade capitalista. Antes de tudo é preciso afirmar que está situação não implica em acreditar que um segmento intelectual teria que levar aos trabalhadores o conhecimento necessário à sua emancipação. É conhecida a passagem na qual Lenin afirma, seguindo Kautski, que a consciência revolucionária vem de fora do proletariado (LENIN, 2010). Esta frase sempre é descontextualizada e via de regra mal compreendida. Lenin está refletindo sobre as diferenças entre um tipo de consciência que deriva diretamente das experiências de luta e resistência dos trabalhadores (o que ele denomina de consciência trade–unionista) e a consciência da necessidade do socialismo e da revolução, que deriva de uma compreensão histórica e teórica da sociedade atual, de sua história e que foi desenvolvida por intelectuais que tendo uma origem nos segmentos médios da burguesia, rompem com ela e aderem a perspectiva dos trabalhadores. Entretanto, os trabalhadores podem e devem em contato com estas teorias, organizarem–se e exercerem funções intelectuais, sem que com isso assumam a forma de um segmento específico como os intelectuais pequenos burgueses. No mesmo livro do qual é retirada esta citação, Lenin afirma que diante das características da organização proletária, “[...] deve desaparecer por completo toda distinção entre operários e intelectuais” (LENIN, 2010, p. 181). Ora, mas para isso é necessário que os trabalhadores se apoderem de recursos intelectuais e para tanto torna–se necessário um processo ordenado de educação. Esta tarefa, pelo menos na tradição comunista, mas não apenas nela, foi identificada com o que conhecemos por formação política. Aqui também temos um bom exemplo da formação contraditória daquilo que Gramsci chamou de duas consciências. Mesmo na intenção de fazer uma educação voltada para a 46


transformação social, os revolucionários só podiam pensar as ações educativas a partir dos parâmetros pedagógicos existentes. Muitas vezes o resultado é uma educação com conteúdo inovador embrulhada em uma forma pedagógica conservadora. A chamada educação popular tem suas origens na pretensão de buscar uma forma nova para desenvolver uma pedagogia própria das camadas populares. No Brasil essa busca está intimamente ligada a tradição cristã. No início muito distante de perspectivas transformadoras, pelo contrário, como reação a perda de influência da Igreja católica, principalmente em suas bases no campo. A cúpula da Igreja pensa uma ação de evangelização das bases no campo para evitar o avanço dos comunistas e a sindicalização rural, assim como os socialistas das Ligas Camponesas, o que levará à formação do Movimento de Educação de Base (MEB) nos anos cinquenta (WANDERLEY, 2014). Ocorre, no entanto, que os jovens cristãos em contato com os trabalhadores do campo acabam juntando–se à luta pela reforma agrária e as reformas de base e distanciando–se dos objetivos conservadores da cúpula da Igreja. Seria bom destacar que esta não era uma iniciativa isolada. Na década de cinquenta o grande dilema era incorporar grandes massas da população de um país profundamente atrasado e desigual nas tarefas do chamado “desenvolvimento nacional” e isso, segundo se pensava, só seria possível com o desenvolvimento de uma “ideologia nacional” (PINTO, 1960; LOMBARDI, 2014). Nos anos que seguiram a crise da ditadura instalada em 1964 e naquilo que ficou conhecido como processo de democratização, os setores da esquerda cristã aperfeiçoaram as bases lançadas no MEB para formas de intervenção política que tinham na alfabetização e na educação dos trabalhadores uma centralidade, desenvolvendo estratégias educativas e formas pedagógicas que buscavam dialogar de forma mais próxima das camadas populares. Tanto a resistência à ditadura como o desenvolvimento na América latina da chamada Teologia da Libertação, contribuíram para estas experiências se aproximarem do marxismo e da tradição comunista. Esta aproximação não foi tranquila e muito menos harmoniosa. Enquanto os cristãos identificavam formas pedagógicas tradicionais, verticais e pouco participativas na tradição comunista, os militantes de esquerda viam nas práticas cristãs uma priorização da forma em detrimento do conteúdo e práticas que, se dialogavam mais com os se47


tores populares corriam o risco de reforçar elementos do senso comum sem superá–los. A educação Popular, tal como nós conhecemos nos anos setenta em diante, é resultado de uma aproximação destes dois segmentos. A educação de base católica e suas formas de mediação com os segmentos populares para partir da realidade imediata e refletir sobre ela e a preocupação com uma teoria so cial e uma compreensão das determinações da sociedade capitalista, da luta de classes e do objetivo socialista, próprias da militância de orientação marxista. Esta aproximação produziu experiências bastante relevantes na América Latina, como as do grupo Alforja na Costa Rica, na Nicarágua no final dos anos setenta, no Brasil pós ditadura, entre outras. Entre elas a experiência do Núcleo de Educação popular 13 de maio que se organizou a partir de 1983 após uma cisão do grupo de São Paulo da FASE. O que é característico destas experiências é o vínculo entre os processos educativos e movimentos políticos que visam a transformação social, portanto, não estão imunes aos desenhos estratégicos determinantes em cada momento. Em muitos casos, os processos educativos populares acabaram por ser instrumentalizados como meros meios de agitação e mobilização eleitoral, formação de bases de massa e distanciaram–se da intencionalidade de ser uma função orgânica da constituição da classe e sua perspectiva revolucionária. Neste caminho, a educação popular pode se converter em um conjunto de técnicas e metodologias de trabalho junto aos trabalhadores, particularizando cada vez mais os temas e as intencionalidades. A educação popular, compreendido o processo de consciência, deveria atuar como um mediador entre as ações particulares e a dimensão geral da luta, desvelando determinações históricas, fundamentos estruturais de nossa sociedade. Entretanto, ela pode atuar como um tipo de especialização particularizante. Podemos ver esse movimento de maneira clara nos programas de formação da CUT que transitam de uma formação política para o campo da formação profissional e dos programas de geração de renda (TUMOLO, 2002), ou na política nacional de formação do PT que transita para a formação para a gestão de administrações municipais segundo o “chamado modo petista de governar” ou os cursos para vereadores, etc. (IASI, 2006).

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Paralelamente temos um pulverizar das iniciativas de educação popular que atuam como importantes aglutinadores de lutas imediatas nos diversos movimentos sociais. Não há nenhum problema neste sentido, pelo contrário, são iniciativas que respondem a problemas concretos (alfabetização, cursinhos pré– vestibular, formações profissionais, acesso à justiça, etc.). Ocorre, no entanto, que se estas são formas próprias da constituição da classe e sua luta, corre–se o risco de perder a dimensão estratégica e, assim pulverizadas, servir supletivamente a uma nova função de acomodamento. Vivemos um momento de desmonte do Estado e das políticas públicas em nome da necessária adequação a novos padrões de acumulação. No âmbito das políticas públicas isto levou às chamadas contrarreformas (BERING, 2018) e ao desenvolvimento de políticas compensatórias que visavam incorporar segmentos da sociedade em tarefas compreendidas como iniciativas desenvolvidas por projetos no balcão de recursos e não direitos. As metodologias e técnicas da educação popular tornaram–se um poderoso instrumento de implementação destes projetos supletivos e compensatórios desarticulados da dimensão estratégica transformadora. O problema se agrava pelo fato que a estratégia determinante no período, a chamada Estratégia democrática e popular (IASI; NEVES; FIGUEIREDO, 2019) caminhava no sentido da aceitação das formas políticas institucionais estabelecidas e abandona a perspectiva de ruptura. Isso não é um demérito para aqueles profissionais e militantes que desenvolveram esses espaços educativos e se empenharam de forma dedicada em suas tarefas, mas, como costumamos afirmar, quem não tem uma estratégia acaba participando da estratégia de alguém. Prevaleceu uma vaga percepção que o conjunto das microatividades pulverizadas e desarticuladas, em algum momento produziriam as transformações desejadas, algo como uma mudança cultural. Nessa direção e diante das contradições que se produziram no choque entre as intenções democratizantes e a realidade da conciliação de classes e seus compromissos de governabilidade, a educação popular foi aos poucos se convertendo no esforço de justificativa e legitimação de uma linha política que resultava, na prática, no amoldamento da classe à ordem capitalista e burguesa. Funcionando, portanto, como claro anteparo ideológico que ao contrário de desvendar determinações, as mascarava. 49


Evidente que seria um erro generalizar esse processo, uma vez que existiram iniciativas que compuseram um campo de valorosa resistência, como são exemplares os casos da Escola Nacional Florestan Fernandes do MST e o próprio NEP 13 de Maio, entre outras. Entretanto, a forma geral do amoldamento não deixou de incidir, também, sobre estas experiências, seja pelo isolamento e estigmatização da resistência, seja pela determinação das formas de financiamento, seja, muitas vezes, pela repressão e criminalização abertas (como no caso das rádios comunitárias, do MTST, etc.). De qualquer forma a educação popular passou de um momento de ferramenta de mobilização, formação e mediação importante no processo de constituição da classe como classe, para formas de amoldamento e justificativa de uma estratégia que abandonava a perspectiva transformadora e buscava os meios de integração a ordem do mercado e do capital. Mas, esse não é um privilégio da educação popular, acabou por ser o destino dos instrumentos de classe construídos no período e podemos ver o mesmo destino na luta sindical, nos movimentos sociais, em partidos políticos e categorias profissionais. Sartre nos olha complacente como dizendo que nosso tempo ainda é o tempo de romper as formas velhas e criar novas, sem que mu dando as bases da alienação acabemos por encontrar nova forma para velhas substâncias não alteradas reapresentarem a boa velha alienação. A crise da estratégia democrática popular e a abrupta interrupção dos governos petistas abriu espaço para a emergência das alternativas de extrema direita e colocou em evidência um senso comum reacionário, ao contrário do que esperava as ilusões da conciliação de classes. Este cenário coloca desafios enormes para os educadores da classe trabalhadora e para as mediações pedagógicas necessárias para empreender a resistência contra a barbárie, mas devemos alertar que não há solução pedagógica, por mais criativa que seja, que possa fazer frente à ofensiva ideológica das classes dominantes neste momento. Não se trata de encontrar a mediação de linguagem ou de comunicação adequada para furar o bloquei do irracionalismo reinante. A solução, como sempre, está na capacidade de luta em defesa da vida, em dar forma e direção à revolta que existe e que ampliará, graças aos ataques da ordem. Superar a dispersão e criar espaços organizativos dos trabalhadores, sermos capazes de empreender rigorosa crítica e autocrítica dos caminhos trilhados que nos levaram ao atual impasse e apri50


morar nossa capacidade de compreendendo nossa formação social traçar novas estratégias que nos levem à transformação revolucionária da sociedade. Nesse esforço coletivo precisaremos de processos formativos e iniciativas pedagógicas que os educadores populares, se forem capazes de realizar a necessária crítica das experiências vividas, certamente contribuirão de forma decisiva. REFERÊNCIAS BERING, E. Brasil em contrarreforma: desestruturação do estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2018. COUTINHO, C. N. O leitor de Gramsci: escritos escolhidos 1916–1935. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2011. EAGLETON, T. Ideologia. São Paulo: Boitempo, 1997. FREUD, S. Esboço de Psicanálise. In: S. Freud, Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978. GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. v. 1. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1999. IASI, M. L. Metamorfoses da consciência de classe: o PT entre a negação e o consentimento. São Paulo: Expressão Popular, 2006. ______. Ensaios sobre consciência e Emancipação. São Paulo: Expressão Popular, 2007. IASI, M. L.; NEVES, V.; FIGUEIREDO, I. A estratégia democrático popular: um inventário crítico. Marília: Lutas anticapital, 2019. KONDER, L. A questão da ideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. LENIN, V. I. La bancarrota de la II Internacional. In: V. I. Lenin, Obras escolhidas. v. 5. Moscou: Editorial Progresso, 1976, p. 219–275. ______. O que Fazer? Problemas candentes do nosso movimento. São Paulo: Expressão Popular, 2010. 51


LOMBARDI, J. C. Educação e nacional–desenvolvimentismo (1946– 1964). Revista HISTEDBR On–line, Campinas, SP, v. 14, n. 56, p. 26–45, 2014. DOI: 10.20396/rho.v14i56.8640432. Disponível em: < https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8640432 >. Acesso em: 15 nov. 2020. MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Biotempo, 2005. _______. O dezoito Brumário de Luiz Bonaparte. [1851/52]. In: K. Marx e F. Engels, Obras Escolhidas. Karl Marx e Friedrich Engels. v. 1. São Paulo: Alfa–Ômega, s/d, p. 199–285. MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. PINTO, A. V. Consciência e Realidade Nacional. v. 1 e 2. Rio de Janeiro: MEC/Institut Superior de Estudos Brasileiros, 1960. SARTRE, J. P. Crítica de la razón dialéctica. Buenos Aires: Losada, 1979. TUMOLO, P. Da contestação à conformação: a formação sindical da CUT e a reestruturação produtiva capitalista. Campinas: ed. UNICAMP, 2002. WANDERLEY, L. E. MEB e a educação popular. Rio de Janeiro: Em Pauta, Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2014. Disponível em: <https://www.e–publicacoes.uerj.br/index.php/ revistaempauta/article/view/13027/10145>. Acesso em: 15 nov. 2020. ZIZEK, S. Como Marx inventou o sistema. In: Um mapa da ideologia. Slavoj Zizek (org.). Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p. 297–331.

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II

SERVIÇO SOCIAL, FAVELA E EDUCAÇÃO POPULAR* Eblin Farage1 Francine Helfreich2

INTRODUÇÃO A proposta deste texto consiste em apresentar algumas reflexões sobre a relação necessária entre o Serviço Social, o trabalho em favelas e a Educação Popular. Partimos do pressuposto que a Educação Popular esteve presente em vários territórios, mediada pela organização local de segmentos da classe trabalhadora. Nestes locais, os sujeitos que lá vivem, resistem e se utilizam, processualmente, de formas de fazer educação que influem na sua existência social. Nesta processualidade, o território, é entendido como “[...] o lugar em que desembocam todas as ações, todas as paixões, todos os poderes, todas as forças, todas as fraquezas” (SANTOS, 2007, p. 13); e é determinado também pela construção histórica que os sujeitos efetivam singular e coletivamente, num movimento em que se educam, se realizam e constroem a sua história. Tal construção comporta uma dialeticidade que nos permite afirmar que os processos educativos contra–hegemônicos sempre estiveram presentes no processo de reprodução sociDOI - 10.29388/978-65-86678-35-2-0-f.53-78 Assistente social, mestre em Serviço Social pelo Programa de Pós–Graduação da UFRJ e doutora em Serviço Social pelo Programa de Pós–Graduação da UERJ. Professora da Escola de Serviço Social da UFF, membro do Programa de Pós–Graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional da UFF, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Favelas e Espaços Populares (NEPFE). farage.eblin@gmail.com 2 Assistente social, mestre em Serviço Social pelo Programa de Pós–Graduação da UFRJ e doutora em Serviço Social pelo Programa de Pós–Graduação da UERJ. Professora da Escola de Serviço Social da UFF, membro do Programa de Pós–Graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional da UFF, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Favelas e Espaços Populares (NEPFE) e coordenadora do Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos ( NEPHU). francinesantos@yahoo.com.br *

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al, marcando a existência da classe trabalhadora, contribuindo para que esta amplie seu processo de formação da consciência e sua organização política. Assim, neste texto trabalhamos com a concepção de Educação Popular em uma perspectiva que considera os seguintes elementos, conforme a educadora popular e assistente social Maria Lídia da Silveira sintetizou: 1– Como um investimento político que constrói um lugar voltado para o processo de conhecimento da realidade. 2– Como espaço que vai possibilitar o trânsito do senso comum ao bom senso. Lugar de apropriação individual e coletiva, no qual está presente uma dimensão ideológica fundamental: a de compreender a base de estruturação da vida social sob o capitalismo e da conformação possível de alternativas de organização da vida social, sob outras bases. 3– Como espaço das classes trabalhadoras a conformar outro NÓS, antagônico ao hegemônico, este último constituído sob a égide do individualismo, da ausência de solidariedade etc. Portanto, espaço no qual possam ser experimentados novos valores, novos pensares, numa dimensão de práxis na qual ativamente se busca a elaboração da realidade a partir de uma perspectiva humano–social. 4– Finalmente, um espaço no qual os sujeitos possam exercitar o singular exercício de suas próprias sínteses, redefinindo e recriando referências de vida, sentidos novos à sua existência individual e coletiva (SILVEIRA, 2004, p. 122).

Portanto, uma concepção de educação que possa contribuir para a mobilização e organização dos trabalhadores e “[...] para uma consciência crítica, considerando nessa concepção a dimensão da classe e a necessidade de ultrapassar essa ordem societária” (SANTOS, 2017, p. 03). No que concerne a processualidade histórica do Serviço Social, nas ações do trabalho profissional, a dimensão educativa sempre esteve presente. Este caráter educativo atribuído à profissão se sustenta na medida em que ela se inscreve no campo das atividades que incidem na formação da cultura, como elemento constitutivo das relações de hegemonia (ABREU, 2002), podendo contribuir para atenuar, conformar ou avançar o processo de formação da consciência. Em alguns momentos reforçando valores e padrões dominantes e em outros apresentando elementos para o fortalecimento de ideias e princípios contra hegemônicos, como veremos adiante, o Serviço Social sempre participou organicamente das disputas e processos que 54


conformam a luta de classe e suas disputas político–ideológicas. Nas favelas, espaço que privilegiamos neste texto para abordar o trabalho profissional, identificamos essas questões. No encontro da profissão com os meios populares, a dimensão educativa se apresenta como elemento determinante no fazer profissional que externaliza a concepção de mundo e de sociedade presentes nas requisições profissionais e, portanto, no trabalho dos assistentes sociais. Nesse sentido consideramos que a dimensão político–pedagógica do trabalho profissional nas favelas pode ser potencializada em uma perspectiva classista, a partir de experiências de educação popular. Em uma conjuntura de recrudescimento do conservadorismo, marcado por violências, por uma democracia frágil, por autoritarismo e muitos ataques aos direitos, se faz necessário reafirmar a direção social da profissão e os vínculos de classe que temos por desafio fortalecer. A atual quadra histórica nos impõe a necessária retomada, com maior fôlego, da educação popular como elemento de fortalecimento das resistências e de avanço da organização política. Neste sentido, partimos da premissa que é necessário considerar o território da favela que, entendido como parte do processo de desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo (FARAGE, 2012), pode ser um espaço profícuo para as ações de educação popular. Os territórios populares, que historicamente foi compreendido como um espaço de atuação profissional marcado por práticas educativas que nem sempre se priorizaram o caráter crítico, mas ao contrário, conformaram–se como ações profundamente conservadoras e apassivadoras. Entretanto, explorar as possibilidades da educação popular no cotidiano do trabalho de assistentes sociais em articulação com as dimensões teórico–metodológica e ético–política é um dos pilares de nossas reflexões. Alinham–se essas reflexões a uma concepção de trabalho profissional que aponta para a emancipação política – tão necessária em tempos de retrocessos –, mas, sobretudo, para a emancipação humana. Por fim, compreendemos que os impactos de uma ação profissional crítica e comprometida com o processo de emancipação humana, nos termos de Marx ([1844] 2009), deve ter lastro já na formação profissional, espaço considerado por nós como prioritário para nos desafiarmos à constituição de um perfil profissional crítico e comprometido com os desafios postos pelo Projeto Ético–Político–Profissional (PEP) 55


Assim, na primeira parte do texto enfatizaremos a processualidade histórica do trabalho profissional nas favelas, seus fundamentos, nexos com a conjuntura e a perspectiva teórico–analítica do período, assim como os desdobramentos no trabalho profissional. Na segunda parte trataremos dos aspectos que envolvem o Serviço Social, a educação popular e a formação profissional, pontuando possibilidades de vínculos e dimensões do trabalho profissional comprometido com a perspectiva emancipatória, sem, contudo, confundir a profissão com um espaço de militância, mas, ao contrário, explicitando as possibilidades da atuação profissional e os desafios postos em nossa trajetória na conexão com as lutas dos trabalhadores. Elencaremos, ainda, algumas reflexões finais e também algumas provocações para nos desafiar, passados mais de trinta anos da Constituição Federal de 1988 (CF/88), a pensar nossa trajetória e os desafios futuros da profissão, tendo como referência a necessidade de capilarização do PEP. 1. SERVIÇO SOCIAL E FAVELA: A EDUCAÇÃO QUE ATRAVESSA O TRABALHO PROFISSIONAL O trabalho de assistentes sociais nas favelas, assim como em todos os espaços de sua atuação profissional, é balizado pela sua inserção nas estruturas institucionais privadas, estatais e nas políticas públicas sociais. Trata–se de uma profissão que se insere predominantemente na esfera de atividades que não estão vinculadas diretamente à produção material, mas à regulação das relações sociais, à criação de condições necessárias ao processo de (re)produção social, por meio de ações que intervenham sobre as condições de vida, prioritariamente, dos segmentos mais pauperizados da classe trabalhadora. A partir dessa inserção sociotécnica, os assistentes sociais intervêm nas relações sociais, contribuindo, nos termos de Marx ([1867] 2001), para a reprodução social da força de trabalho. Pela sua ação profissional colocam em movimento a dinâmica da produção social, influindo, inclusive na conformação do espaço urbano, a partir das contradições que se manifestam na cidade capitalista. A relação da profissão com a favela decorre da inserção profissional dos assistentes sociais nos diferentes espaços periféricos da cidade, sobretudo, nas políticas públicas, sendo considerada uma das profissões mais antigas a desenvolver ações nos territórios populares. A própria construção histórica do 56


Serviço Social mostra que esta inserção é mediada pela necessidade do Estado intervir nas expressões da Questão Social 3 em curso, utilizando de estratégias institucionais e ideológicas, e por vezes “educativas”. A aproximação se dá ainda na gênese da profissão, na década de 1930. Ainda sob a égide da influência cristã da Igreja Católica, os assistentes sociais eram requisitados para trabalhar junto à população residente nos morros, que começam um processo mais intensificado de ocupação quando a economia brasileira passava pela transição de agrário–exportadora para industrial. Com a expansão da industrialização, as favelas se constituíram como um problema urbanístico e social que desafiava a administração pública logo nas primeiras décadas do século XX. Nessa conjuntura, onde as alterações políticas e econômicas impulsionaram os processos migratórios do campo para a cidade, as favelas, no Rio de Janeiro, foram inclusas nos planos de intervenção do poder público, tardiamente, a partir dos anos de 1950 4, constituindo–se como um locus para a profissão. Algumas profissões (jornalistas, médicos e, em especial, os assistentes sociais), tiveram maior relevância nas primeiras experiências de trabalho nas favelas. Naquele período, a atuação profissional ocorria, sobretudo, na intervenção junto à população residente nos Parques Proletários 5, através das ações realizadas pela Cruzada São Sebastião e, principalmente, pela Fundação Leão XIII. A Fundação Leão XIII, criada em 1946, surge com o objetivo de intervir junto à população que habitava grandes favelas, através de ações político–assistenciais, contrapondo–se às possibilidades de uma organização autônoma dos sujeitos, já que o Estado temia o avanço das “ideologias exóticas”, ou seja, do comunismo. Conforme as análises de Iamamoto e Carvalho (1995) 3

Segundo Iamamoto e Carvalho (1995, p. 77) “[...] a questão social não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção, mais além da caridade e repressão.” 4 É valido destacar que as favelas começam a ser contabilizadas a partir de 1950 com o primeiro estudo realizado sobre esses territórios. Trata–se do Relatório SAGMAS: Aspectos Humanos das Favelas Cariocas, publicado em 1960. 5 Os Parques Proletários foram criados no início da década de 1940. Trata–se de construções realizadas pelo poder público no intuito de intervir sobre a questão das favelas que, na cidade do Rio de Janeiro, aparecem pela primeira vez como um problema público relacionado às questões de higiene e salubridade no Código de Obras de 1937.

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Para o Serviço Social da Fundação Leão XIII, o “problema da favela” será o problema da educação, idealização muito ao gosto e enraizada na classe média a partir de suas pretensões culturais aristocratizantes, através da qual a totalidade dos problemas sociais se reduz à questão da educação, do capital cultural, que em muito lhe serve de divisor de águas com o proletariado. (IAMAMOTO; CARVALHO, 1995, p. 291).

A “dimensão social da educação” era pautada como uma possibilidade de se recuperar os valores sociais e morais da sociedade vigente. Uma forma de construir um devir balizado pelas ideias e referencialidades das classes dominantes. Apontava–se para uma perspectiva de transformação na forma de pensar dos moradores que ocorria, não só pelo aparato governamental e institucional, mas, principalmente, pelas relações estabelecidas com os agentes sociais, entre eles os assistentes sociais (IAMAMOTO E CARVALHO, 1995). Nesse período de aproximação inicial do Serviço Social com as favelas, os fundamentos teórico–metodológicos da profissão ainda estavam muito vinculados à ideologia religiosa. Os fenômenos como miséria e pobreza eram vistos como patologia, cuja origem era justificada na crise de formação moral, desconsiderando a raiz das suas causas. Assim, as bases materiais que fundamentam as relações sociais eram desconsideradas e as ações profissionais não atacavam as causas e sim os efeitos produzidos na vida e na família dos trabalhadores. Conformava–se uma narrativa hegemônica, naturalizando valores, ideias, padrões e princípios da classe dominante. A ação destes profissionais era caracterizada como a “[...] de modernos agentes da caridade e da justiça social” (IAMAMOTO; CARVALHO, 1995, p. 246) É interessante destacar aqui o documento “Regimento interno dos parques proletários” produzido pelo Serviço Social da Secretaria Geral de Saúde e Assistência Social na década 1950 que exemplifica as ações “educativas” realizadas pelos assistentes sociais nos parques proletários. O documento retrata como essas ações educativas eram direcionadas para o controle da vida dos moradores de favelas em viés moralizador, fiscalizador, cristão e nacionalista, moldando as formas de vida mediante padrões característicos das classes dominantes. Trata–se na verdade de um processo hegemônico de conformação via um modelo educativo que molda e educa os territórios apagando as memórias e as 58


ideias da classe que vive da venda da sua força de trabalho. Nas reflexões produzidas por Vitor Valla (1986), a característica do trabalho realizado nas favelas vincula–se ao combate à “falta de educação”. Esta era entendida como fator precípuo da “decadência” dos moradores de favela. A dimensão social da educação é concebida como aquela que “vai dar às populações faveladas o sentido da dimensão social da educação”, haja vista a realidade das populações faveladas ser compreendida enquanto degradante. [...] O povo quando bem orientado tem capacidade de resolver seus problemas. [...] dentro de um espírito democrático e de responsabilidade pessoal de cada um de seus membros, sendo totalmente banido desse movimento qualquer ideia paternalista ou de protecionismo mal compreendido e prejudicial à recuperação moral do homem (VALLA, 2001, p. 17).

Nesta lógica, a educação dotará o morador de favela de possibilidades numa nação que se industrializava e que demandava força de trabalho qualificada e sã, o que requer não só qualificação para o trabalho mediante a educação formal, mas educação para a vida em comunidade seguindo os “padrões” de comportamento e hábitos favoráveis para manter corpos e mentes adaptados e aptos a produzir. Os estudos de Lícia Valladares (2000) sobre a construção histórica das favelas mostram com destaque o trabalho desenvolvido pelas assistentes sociais da prefeitura da cidade do Rio de Janeiro. Essas eram egressas do “Instituto Social”, criado em 1937. A autora comenta: Não seria exagerado dizer que, de certo modo, as assistentes sociais funcionavam como a mão direita da administração municipal na gestão da pobreza: entre a proteção social e o controle dos pobres”. [...] Nesta perspectiva as ações educativas realizadas pelos profissionais justificava a presença dos profissionais nas favelas numa perspectiva de direcionar e controlar estes espaços. [...] Era necessário educá–los, não apenas estimular bons hábitos como, igualmente, fornecer–lhes os elementos necessários à sua promoção social. (VALLADARES, 2000, p. 16, grifo nosso)

Considerando as possibilidades dos profissionais construírem um retrato fidedigno da população da favela, havia uma dificuldade de olhar os moradores sem incluí–los numa perspectiva estigmatizada e preconceituosa. As análises 59


desconsideravam as condições estruturais e o papel do Estado. Destacava–se uma simbiose entre mérito e esforço, os quais eram elementos necessários para sair da condição de pobreza. Atrelados a isto, o pobre era (e ainda é) visto como o preguiçoso, o transgressor, sujeito a repressão e extinção (IAMAMOTO; CARVALHO, 1995). Nota–se que o trabalho profissional do assistente social ainda se confundia com o desenvolvimento da política pública de assistência social, realizada há época também por assistentes sociais; política esta que se mantém até hoje atendendo principalmente os moradores destes territórios. Destaca–se que o controle e o disciplinamento sobre a população pobre aparecem com proeminência no trabalho dos assistentes sociais, vistos como o “braço” do Estado nas favelas. Os estudos contidos no Relatório SAGMAS: Aspectos Humanos das Favelas Cariocas, que é uma análise socioeconômica elaborada pela Sociedade de Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais (SAGMAS), merecem destaque. Publicado em 1960, demonstra as ações destinadas ao controle da população pobre e retrata as primeiras ações das instituições atuantes nas favelas. Trata–se de um estudo robusto que é considerado, por muitos intelectuais da área, como um dos trabalhos mais exaustivos realizados no Brasil sobre as favelas no Rio de Janeiro naquele período. O relatório retrata aspectos vinculados a alguns eixos: religião, educação, política e as ações da Cruzada São Sebastião e da Fundação Leão XIII, onde se inseriam os assistentes sociais. No relatório, o trabalho dessas duas instituições é analisado a partir das ações realizadas diariamente com os moradores. É evidenciado seu caráter de vigia, controle e contenção, além de tentar “[...] ensinar ao morador que ele não é “favelado”, a fim de “aumentar” sua dignidade” (VALLA, 2001, p. 50). Devido à recusa dos moradores em aceitar essa forma das instituições os tratarem, os assistentes sociais que lá trabalhavam são levados a realizar uma “atualização” e “modernização” de suas técnicas de trabalho, buscando tornar os procedimentos mais aceitáveis. Naquilo que particulariza o Serviço Social, alguns elementos do relatório mostram seu caráter conservador, assim como a iniciativa de “modernização” da autuação profissional mesmo antes do período

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de Reconceituação, datada de 1965 a 1975 e que marca as mudanças mais significativas na história do Serviço Social brasileiro. É nesse mesmo período, marcada pelo cerceamento de direitos políticos, que as políticas urbanas têm em seu escopo a configuração de marcos importantes: o Banco Nacional de Habitação (BNH) e o surgimento do “trabalho social”, sendo componentes da equipe os profissionais de Serviço Social. Estes estavam vinculados aos programas de Habitação de Interesse Social como política de governo via BNH, no período de 1968 à 1986. Nestas atividades, as atribuições profissionais restringiam–se à “[...] seleção de demanda, o acompanhamento da adimplência dos mutuários e a organização comunitária [...]” (PAZ; TABOADA, 2010, p. 46). No referido período, as ações de organização comunitária se destacavam mediante a constituição de associações de moradores nos conjuntos habitacionais, com vistas a instrumentalizar os moradores na administração dos “[...] espaços comunitários construídos nos conjuntos habitacionais.” (PAZ; TABOADA, 2010, p. 46). Contraditoriamente, neste período marcado pelo autoritarismo característico da ditadura empresarial militar (1964–1985), a repressão aos partidos e às organizações políticas dos trabalhadores, experiências progressistas foram desenvolvidas. Se por um lado muitas pessoas foram exiladas, muitas também direcionaram sua militância para ações educativas nas favelas, o que implicou em assistentes sociais e estudantes engajados nas ações contra hegemônicas da época. No final da década de 1970, alteradas as demandas práticas e a inserção do Serviço Social nas estruturas organizacionais–institucionais, modificam–se também a formação profissional e as influências teóricas; os padrões de organização como categoria profissional; e os referenciais teórico–culturais e ideológicos que, coadunados com os autores que influenciaram os educadores populares, também deixarão suas marcas no arcabouço teórico da profissão, e pistas para relacionar a Educação Popular com a profissão, possibilitando estabelecer outro olhar para a favela. A compreensão sobre a favela e seus moradores, ou seja, sobre o lugar de moradia de parte da classe trabalhadora, ao longo dos tempos se modificou no âmbito do Serviço Social. Apesar do movimento de Renovação não ser todo progressista, em meio às suas contradições, abre–se a possibilidade de um Ser61


viço Social crítico, em especial tendo como marco o método BH 6, que explicita alguns elementos e prerrogativas atuais do projeto ético–político da profissão, além de representar um salto de qualidade ao expressar o compromisso explícito com a classe trabalhadora e uma nova referencialidade, que aponta para outra concepção de mundo, de sociedade e de indivíduo, dada a mudança teórica que a profissão realiza. Neste sentido, os vínculos com um exercício profissional sob uma nova égide, também significou uma nova forma de tratar a favela. A aproximação com a teoria marxista, o contato com categorias teóricas importantes como trabalho e classe social, além de todo legado teórico e político do processo de Renovação, do qual o movimento de reconceituação é partícipe, propiciaram outro entendimento sobre os usuários dos serviços, ou seja, sobre a população favelada, além da possibilidade de outra compreensão sobre a favela: como fruto do desenvolvimento capitalista. Na década de 1990, a maior aproximação com as ciências sociais e áreas afins, que se inicia já década de 1960, contribui para o amadurecimento teórico da profissão que passa a reconhecer a favela como espaço de construção de relações sociais de seres concretos que atuam no mundo. Entretanto, mesmo com o avanço teórico e analítico, o exercício profissional nesses espaços ainda apresenta retrocessos na medida em que estigmas, estereótipos, medo, violência e ausência de condições de trabalho prejudicam a atuação profissional. A compreensão sobre a favela traz as marcas de episódios que ofuscam outras sociabilidades existentes naquele lugar, exaltando, sobretudo, e como única, a sociabilidade violenta. Nota–se que ao mesmo tempo em que a violência se constitui como expressão da Questão Social, a imprevisibilidade e o medo da violência física são motivos centrais que afastam o profissional desses espaços. Portanto, ao mesmo tempo em que nesse território se percebe uma ampliação da requisição profissional de assistentes sociais, em diversos projetos e programas como Favela Bairro, Morar Legal e o Minha Casa Minha Vida, muitas destas experiências que se apresentaram como ampliação do direto à moradia, significaram também, de forma contraditória, retirada de 6

Experiência desenvolvida em Minas Gerais, mais especificamente na cidade de Itabira, entre 1972–1975, por um projeto da Universidade Católica de Minas Gerais em articulação com a antiga Legião Brasileira de Assistência (LBA), que traz ações inovadoras sobre forma e conteúdo no tratamento aos usuários.

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direitos via processos de remoção e/ou gentrificação 7 e oferta de serviços de baixa qualidade. O que se percebe é que há no cenário urbano dezenas de questões que marcam o trabalho profissional nestes espaços, dentre eles a violência. Vale destacar que com a reabertura política, a partir de 1985, destaca–se o adensamento dos trabalhos com a educação popular e as ações profissionais na área habitacional, em especial a partir do governo de Itamar Franco (1992– 1995), com o Programa Habitar. Nesse projeto o trabalho profissional de assistentes sociais “[...] operacionalizou–se nos mutirões, na urbanização de assentamentos, na oferta de lotes urbanizados, na regularização fundiária e urbanística, nos projetos de instalação e funcionamento de redes de água e esgoto” (CFESS, 2016, p. 38). Programas como o Favela Bairro, na cidade do Rio de Janeiro, também foram marcantes, principalmente porque nesse período os profissionais que atuavam na política urbana passaram a ter uma orientação marcada pelas “diretrizes de agências multilaterais, notadamente o BID e o Banco Mundial (BM), e as alianças estabelecidas com as construtoras e com o mercado imobiliário” (CFESS, 2016, p. 38). De fato, a violência é um elemento que marca as favelas. A violência é entendida como parte constitutiva do agravamento das expressões da Questão Social, que se adensa e desorganiza a vida cotidiana. Devido a ela justificam–se outras violências que o próprio Estado produz: a diminuição da carga horária das escolas públicas das favelas8, a ausência de recreio e as constantes interrupções de dias letivos, devido aos conflitos armados, e a falta de identidade dos professores com estas escolas. Portanto, conforme Fontes (2019), vivemos um processo cada vez mais exacerbado de “policialização da existência” que afeta, sobretudo, as vidas periféricas com a intensificação do processo de mercantili7

O termo gentrificação refere–se a um processo de transformar determinados territórios pauperizados em espaços atrativos para segmentos da classe média e alta. Com isso promove–se desde a remoção de transeuntes, a remoção de moradores para intervenções de embelezamento urbano e a elevação do custo de vida em determinadas localidades, sempre com o objetivo de fazer de determinado espaço um lugar “revitalizado”, para outros moradores da cidade. Assim, territórios como o morro do Vidigal no Rio de Janeiro, alteraram sua conformação e passaram, a partir da “expulsão” dos antigos moradores e da valorização urbana, a ser ocupado por artistas, turistas e citadinos das áreas nobres. 8 Nota–se que as escolas do Complexo da Maré fecham às 15h30 devido a sua localização em áreas consideradas como de risco.

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zação da segurança e o aumento das milícias, hoje consideradas uma das expressões da necropolítica, como afirma Mbembe (2018). São múltiplos os desafios colocados aos profissionais que atuam nas favelas. Maiores ainda são os desafios colocados a quem vive nelas. E é sobre esses e com esses que o trabalho profissional do assistente social deve dirigir a atenção. Assim, no item subsequente abordaremos a relação possível entre a educação popular e a profissão, assim como os desafios colocados à formação e ao trabalho profissional para um exercício profissional ancorado na perspectiva defendida e vinculada aos interesses classistas. 2. SERVIÇO SOCIAL E EDUCAÇÃO POPULAR: DESAFIOS AO PROJETO ÉTICO–POLÍTICO (PEP) A vinculação entre Serviço Social, favela e educação popular passa necessariamente pela compreensão de que a categoria profissional, de forma diferenciada da maior parte das demais profissões, deveria pautar sua intervenção no Projeto–Ético–Político (PEP) que tem, entre outras diretrizes, a perspectiva de ser anticapitalista e de contribuir para o processo de emancipação humana. É a partir do horizonte da superação da ordem do capital e da compreensão de que a ação profissional, como afirma Iamamoto (1998), pressupõe uma direção social, que identificamos a educação popular como mediação possível para a prática profissional, tendo como referência o território de moradia dos segmentos da classe trabalhadora e o PEP. O assistente social em sua atuação possui uma face pedagógica ou formadora da cultura que, em sentido gramsciano ([1926–1937] 2001), significa a incisão no modo de pensar e agir dos sujeitos, como apontam Abreu, Cardoso e Lopes (2014). Tal pedagogia pode estar relacionada ao controle social ou ter caráter emancipatório. Assim, compreendemos que a pedagogia emancipatória, apresenta uma estratégia para a sustentação do Projeto Ético–Político, uma vez que possibilita uma prática profissional que se desenvolva para além das demandas institucionais, com vistas a fortalecer as lutas dos trabalhadores. Nesse sentido, compreende–se que a luta pela emancipação humana, nos termos de Marx ([1844] 2009), deve estar no horizonte do fazer profissional dos assistentes sociais, o que pressupõe mobilização, participação, organiza64


ção coletiva, resistência, irreverência e muitas experiências de educação popular junto e com a classe trabalhadora. Assim, as reflexões ora apresentadas partem de alguns pressupostos e análises conjunturais:  As reflexões, debates e ações sobre Educação Popular no Brasil, que se iniciaram, de forma mais sistemática, na década de 1960 com forte influência das experiências da Teologia da Libertação 9 na América Latina e das propostas do educador pernambucano Paulo Freire, foram gradativamente esvaziadas de sentido. A disputa se deu entre diferentes perspectivas sobre a educação popular, resumidamente pautadas como:  uma prática de educação inclusiva (incluir na ordem os pobres, diminuindo a desigualdade), 2) uma orientação para a libertação (propondo reformas dentro da ordem do capital) e 3) um conjunto de ações que estimulam a participação e a mobilização política, questionando a exploração do capital, tendo como horizonte a superação dessa sociabilidade. Dentre essas perspectivas, prevaleceu a da educação popular, mas em uma forma secundarizada ou, como afirma Iasi, “metamorfoseada em programas de “inclusão social”, “desenvolvimento de cidadania”, “educação para o trabalho”, ou, ainda, como meros “atos de propaganda e de informação” (IASI, 2004 p. 102);  Passados mais de trinta anos da aprovação da Constituição Federal de 1988 é necessário realizar um balanço crítico dos rumos e das possibilidades das políticas públicas no contexto de países de capitalismo tardio direcionados pelos preceitos neoliberais. E, assim, refletir sobre a formação profissional prioritária para o trabalho em políticas públicas e sociais, como se fosse um fim em si mesma;  As opções do Serviço Social, tanto na formação como no trabalho profissional, nos últimos trinta anos, foram prioritariamente pelo instituído, ou seja, pelo hegemônico e não pelo contra hegemônico, pois: a) estivemos mais distantes dos movimentos sociais e mais imbricados na luta institucional pelas políticas públicas, por dentro dos conselhos de direitos, desconsiderando o caráter de classe do Estado capitalista. Vale destacar que, na maior parte das vezes, a presença de assistentes sociais nos Conselhos se dá por um contrato de trabalho com o poder público; b) pouco foram valorizados o debate da educação popular, da ação pedagógica do Serviço Social, conforme aponta Abreu (2002), o papel do intelectual orgânico apontado por Gramsci ([1926–1937] 2001) e o significa9

A Teologia da Libertação é uma corrente teológica da Igreja Católica nascida na América Latina na década de 1960 que se consagrou como uma perspectiva cristã de opção preferencial pelos pobres a partir da década de 1970.

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do da emancipação humana nos termos de Marx ([1844] 2009), como explicitado, por exemplo, nas poucas pesquisas publicadas nos anais dos Congressos da Categoria e nos períodos da área; c) a maior parte dos projetos políticos pedagógicos dos cursos de Serviço Social públicos secundariza o debate e a relação com movimentos sociais, assim como é praticamente ausente o debate sobre educação popular. Isso se dá, em certa medida, pela desvalorização, por parte da universidade pública, desses debates, expressão da luta interna e da disputa pelos projetos educacionais e também pelo lugar secundarizado desses temas no campo das ciências sociais e políticas;  O atual estágio de participação e mobilização social deve ser analisado à luz da crise internacional do capital e da crise do socialismo real, ambos impactando a relação capital x trabalho em todo o mundo e também a organização autônoma dos trabalhadores;  Com a crise capitalista internacional iniciada na década de 1970 e sua impossibilidade de recuperar os patamares de lucro do capital, o receituário neoliberal se tornou uma imposição em quase todas as partes do mundo. Em países de capitalismo tardio, como o Brasil, que pouco conquistou direitos, os retrocessos se fazem sentir de forma avassaladora sobre os segmentos da classe trabalhadora mais pauperizados. Nem mesmo se havia implementado os direitos conquistados na CF/88 e o projeto neoliberal já avançava no Brasil, impondo derrotas e retiradas de direitos à classe trabalhadora.

Partindo desses elementos é possível fazer uma breve análise sobre a relação do Serviço Social com a Educação Popular e os desafios inerentes, tendo como referência o Projeto Ético–Político do Serviço Social, as limitações impostas pelo atual estágio do desenvolvimento do capitalismo no Brasil, os retrocessos em curso nas políticas públicas e o ataque à formação profissional a partir do desmonte das instituições públicas de ensino superior. A educação popular, que ganha destaque a partir de 1960 com a divulgação do termo por movimentos progressistas, se caracteriza, desde o início, por disputas políticas. Assim, houve diferentes concepções que nortearam as experiências de educação popular, com conotações políticas distintas. Para o Estado, a educação popular era vista como uma resposta à demanda do capital por uma força de trabalho mais qualificada; já para os movimentos progressistas era uma forma de contribuir para o desenvolvimento da consciência dos segmentos da classe trabalhadora, como demonstra a citação abaixo.

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A educação popular por nós entendida é necessariamente uma educação de classe. Uma educação comprometida com os segmentos populares da sociedade, cujo objetivo maior deve ser o de contribuir para a elevação da sua consciência crítica, do reconhecimento da sua condição de classe e das potencialidades transformadoras inerentes a essa condição. (VALE, 1992, p. 57)

Apesar das diferentes leituras sobre a educação popular, o eixo hegemônico que norteou grande parte das experiências tinha como objetivo principal possibilitar às camadas subalternas, da cidade e do campo, o acesso ao direito básico à educação. Como afirmava Paulo Freire, a educação não deveria se restringir ao aprendizado das letras, mas ter como objetivo primordial a leitura do mundo. Assim, as experiências de educação popular investiam na possibilidade de superação do senso comum enquanto única forma de crítica às relações sociais vigentes e apontavam para uma perspectiva de transformação social. As experiências progressistas de educação popular foram fortemente reprimidas pela ditadura empresarial militar (1964–1985), ficando restritas a pequenos espaços como igrejas, associações de bairro e à iniciativa de pequenos grupos que, tentando burlar a repressão, foram desenvolvendo suas ações, embora com menos fôlego e com restrita participação. Como afirma Brandão: A educação popular foi e prossegue sendo a sequência de ideias e de propostas de um estilo de educação em que tais vínculos são re–estabelecidos em diferentes momentos da história, tendo como foco de sua vocação um compromisso de ida–e–volta nas relações pedagógicas de teor político realizadas através de um trabalho cultural estendido a sujeitos das classes populares compreendidos não como beneficiários tardios de um “serviço”, mas como protagonista emergente de um “processo” (BRANDÃO, 2002, p. 142).

Porém, não há consenso sobre as possibilidades da educação popular e nem mesmo sobre uma conceituação comum entre os estudiosos. Para nós, na relação com o Serviço Social e na perspectiva da contribuição para a prática profissional, entendemos que a educação popular deve ser compreendida, nos termos de Brandão (2002, p. 174), como uma ação que:

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Se volta aos seus sujeitos como pessoas humanas e como atores sociais cujos direitos à participação dos processos de decisão sobre as suas vidas, sobre os seus destinos e, mais ainda, sobre os da sociedade onde vivem e da cultura de que são parte e partilha, vão muito além do âmbito da escola (BRANDÃO, 2002, p. 174).

Portanto, é no âmbito da questão social que se coloca o desafio da atuação do assistente social com a educação popular em todos os seus espaços sócio–ocupacionais. Consideramos que a educação popular pode ser uma forma de orientação do trabalho profissional, assim como foi e é para muitos educadores na educação formal, e que pode também contribuir para a direção social da prática profissional, nos termos defendidos por Iamamoto (1994). A perspectiva da educação popular também se articula com as reflexões sobre a ação pedagógica do Serviço Social, conforme Abreu (2002). Consideramos como horizonte da profissão não os limites impostos pela sociabilidade do capital, mas a superação da ordem capitalista tendo em vista a constituição de uma nova sociedade. Nesse sentido, é necessário, como apontado por Gramsci ([1926–1937] 2000), que sejamos capazes de construir no hoje, o germe da nova sociedade, a partir da elaboração de experiências autônomas e contra hegemônicas de organização dos trabalhadores. Neste momento em que se tende a incorporar uma profunda desesperança, a se internalizar a chamada crise de paradigmas propagada pela pós–modernidade e a se acatar o individualismo generalizado, permanece o desafio de recuperar o protagonismo real dos trabalhadores, em uma perspectiva de formação integral. Como afirma Nosella (1993, p. 99), “[...] uma educação omnilateral, no sentido de um humanismo pleno e moderno”, ou ainda como afirma Gramsci ([1926–1937] 2000, p. 136), no sentido de fazer do trabalhador “uma pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige”. O entendimento de que o projeto coletivo defendido pela categoria profissional irá, tal qual afirma Netto (1999), apontar para um projeto de sociedade cujas compreensões ideológicas e teóricas colidem com o projeto do capital nos impõe reflexões sobre a constante disputa no processo de formação profissional. Nesse sentido, se faz necessário refletir sobre os fundamentos da formação, do trabalho profissional e das transformações na atualidade da sociedade brasileira, tendo em vista que 68


[...] o conservadorismo como pensamento e orientador de modos de ser é de fato produto inerente à sociedade capitalista desde sua gestação – que reclama reação conservadora por parte de seus opositores iniciais – à sua consolidação, passando a marcar o conjunto das lutas de classe, resguardadas as particularidades de tempo e espaço, dessa formação social (GUAZELLI; ADRIANO, 2016, p. 246).

A partir da elaboração de um projeto profissional ético–político, evidencia–se o compromisso com os segmentos da classe trabalhadora e com a construção de possibilidades de organização coletiva e superação da condição de subalternidade. Ao assumir o compromisso de construção de uma nova sociabilidade, o assistente social pode, em seus espaços sócio–ocupacionais, impulsionar valores e questionamentos que contribuam para a consciência social e, assim, influir para a construção de uma nova ordem societária, impulsionando uma nova hegemonia. É nessa perspectiva que se pode compreender a presença de uma opção de classe, explicativa da efetiva aproximação e compromisso com demandas inerentes a classe trabalhadora. No interior desta intencionalidade se pode igualmente perceber a presença do assistente social como formador/educador. Essa concepção é o ponto de partida para tornar possível que o assistente social faça uma opção teórico– prática por um projeto coletivo de sociedade e supere as ilusões de um fazer profissional que paire ‘acima’ da história (IAMAMOTO, 1994). Essa perspectiva conforma, no discurso e no fazer profissional, a luta pela garantia dos direitos das classes subalternas, visando à inclusão das maiorias marginalizadas na luta por conquistas. Os equipamentos públicos como a escola, o CRAS, o CREAS e os Postos de Saúde, em especial os presentes nos espaços populares, podem ser espaços privilegiados de difusão de um campo contra ideológico, através da construção de novos valores e novas práticas junto aos sujeitos (crianças, jovens e adultos) que deles participam, ou seja, de uma nova hegemonia. Assim, buscando a formação de sujeitos sociais de novo tipo, ou no dizer de Gramsci (2001), a formação do novo homem e da nova mulher, que impulsione uma nova ordem. Segundo Gramsci ([1926–1937] 2001), uma nova hegemonia é necessariamente a perspectiva de construção de uma nova sociedade, que se opo-

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nha ao capitalismo, combata a exploração do homem pelo homem e ponha fim às classes sociais. Os assistentes sociais, ao assumirem novas atribuições profissionais, assumem um papel eminentemente político, como formador/educador junto à classe trabalhadora, contribuindo na desconstrução do imaginário social fortemente impregnado pela ideologia dominante, em especial nas últimas décadas pela ideologia neoliberal, que acirrou o processo de subalternização dos trabalhadores ao capital. Outra face da inserção profissional como formador/educador junto às classes populares se refere à perspectiva da educação popular, na qual se torna imperativa a contribuição para a construção de uma consciência de classe numa dimensão libertadora e desalienante. Como afirmou Paulo Freire (1992), a prática progressista e libertadora, deverá sempre assumir uma dimensão desveladora, que privilegie a desocultação da verdade e do aparente. Como afirma Iamamoto (1998, p. 20), [...] um dos maiores desafios que o assistente social vive no presente é desenvolver sua capacidade de decifrar a realidade e construir propostas de trabalho criativas e capazes de preservar e efetivar direitos, a partir de demandas emergentes no cotidiano. Enfim, ser um profissional propositivo e não só executivo. (IAMAMOTO, 1998, p. 20)

O que vai requerer do assistente social o rompimento com uma trajetória profissional, focalista e endógena, que limita o fazer profissional a dar respostas às demandas imediatas e cotidianas das classes subalternas, não impulsionando uma ação mais propositiva, como a organização dos trabalhadores, contribuindo, como afirma Iamamoto (1998, p. 24), “[...] para a construção de uma contra–hegemonia no bojo das relações entre as classes”. Segundo Iamamoto e Carvalho (1995, p. 107/108): “O modo capitalista de produzir supõe, pois, um ‘modo capitalista de pensar’, que expressa a ideologia dominante na sua força e nas suas ambiguidades”. Isto nos permite compreender o papel central que as políticas públicas exercem para legitimar e manter a ordem capitalista, sendo, portanto, uma ferramenta essencial na reprodução de sua ideologia e de sua cultura, “disciplinando” a classe trabalhadora. Portanto, temos como desafio não limitar o exercício profissional ao instituído e às requisições institucionais, se temos como referência o PEP. 70


3. CONSIDERAÇÕES INCONCLUSIVAS: REFLEXÕES E PROVOCAÇÕES PARA A CATEGORIA PROFISSIONAL A desigualdade das relações de produção se aprofunda, produzindo uma sociedade cada vez mais desigual, para a qual é necessário conformar, de forma passiva, os diferentes segmentos populacionais. Naturaliza–se a desigualdade e cria–se a perspectiva de sua superação, não pela reorganização do sistema produtivo, mas pelo impulso das competências individuais. A responsabilidade de desfrutar e participar do mundo mercantilizado produzido pelo capitalismo passa a ser de cada sujeito, de forma individual. Incentivou–se a formação para atender ao mercado com a venda da força de trabalho e hoje, no mundo da reestruturação produtiva, se incentiva o empreendedorismo, o padrão de si mesmo. Entendendo a consciência como um processo, que pode estar constantemente sendo alterada a partir das determinações materiais, um dos desafios postos para a categoria profissional pode ser o de contribuir no processo de formação da consciência dos trabalhadores com quem atuam, proporcionando novos elementos que colaborem para colocar em contradição o nível de consciência dos usuários, para que assim possam vislumbrar a superação de seus valores, preconceitos e limites de conhecimento, em especial a superação de uma consciência ingênua ou do senso comum por uma consciência crítica. A ascensão da extrema direita no Brasil, que desnuda o enraizamento do pensamento conservador e faz alastrar o bolsonarismo pelo país, a partir da disseminação do ódio com base na lógica miliciana, militarizada e fundamentalista, evidencia o nível de consciência de uma parte da classe trabalhadora, que viu nesse projeto de governo e de sociedade a alternativa para as mazelas vividas. Nesse sentido, entre tantos questionamentos possíveis nessa quadra histórica, para a categoria profissional dos assistentes sociais, fica o questionamento sobre a contribuição, dada ou não, para o processo de formação da consciência e superação do senso comum dos sujeitos usuários das políticas públicas e sociais. Certas de que a responsabilidade pelo processo de formação da consciência não é tarefa de uma categoria profissional, para não cairmos no messianismo trabalhado por Iamamotto (1994), é relevante considerar a mediação, en-

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quanto uma categoria que tem em seu horizonte a perspectiva da emancipação humana. Nesse sentido, compreendemos que combater a ideia das saídas individuais para os problemas coletivos passa necessariamente pela construção de espaços em que os trabalhadores se sintam sujeitos e com a possibilidade de superar a sua condição imposta de subalternidade. Esse processo pode ser muito facilitado pelas contribuições advindas das possibilidades emancipatórias da educação popular e da ação pedagógica do Serviço Social. Contudo, para essa superação, é necessário reafirmar a necessidade de uma formação profissional pública e de qualidade e também a necessidade de manutenção e ampliação das políticas públicas estatais. Assim, considerando os elementos trabalhados, deixamos como provocações para a categoria, algumas reflexões: a) O projeto de sociedade que o Serviço Social tem como horizonte, é anticapitalista, o que pressupõe uma formação profissional qualificada, baseada na reflexão e no pensamento crítico. Para isso, é necessário a defesa da educação pública, gratuita, laica, de qualidade, socialmente referenciada, antimachista, anticapitalista, anticapacitista, antilgbtefóbica e de ensino presencial; b) A formação do Serviço Social poderia considerar, de forma destacada e não secundária ou lateralizada, algumas temáticas como: questão racial, questão de gênero, educação popular, movimentos sociais, questão ambiental e território. Assim como deve ser pautada no tripé ensino– pesquisa–extensão, uma vez que uma formação baseada apenas no ensino torna–se deficitária se considerarmos a perspectiva da educação integral. Nesse sentido, a pesquisa e, especialmente, a extensão podem ocupar um lugar de maior destaque, possibilitando aos discentes, em seu processo formativo, experimentação, contato com realidades distintas e inserção junto a diferentes segmentos da classe trabalhadora; c) Desenvolver uma formação profissional que não hierarquize os debates de classe, gênero, raça, construindo–os no âmbito da teoria crítica, de forma a incorporar nos debates, produções, projetos e currículos; d) A partir do Projeto Ético–Político do Serviço Social, que tem como referência o currículo, a Lei de Regulamentação da profissão, o Código de Ética de 1993 e a teoria crítica, reconfigurar a inserção do debate sobre movimentos sociais e organização autônoma dos trabalhadores na formação profissional. Nesse sentido, compreende–se que o acesso à teoria crítica deve se dar, não apenas com centralidade no debate do méto72


do de análise da realidade social, ou seja, no materialismo histórico e dialético e das determinações da crítica da economia política, mas também na perspectiva da análise revolucionária da teoria crítica, que identifica na classe trabalhadora, nos termos de Marx ([1867] 2001), os agentes da destruição do capitalismo; e) Valorizar, a partir da teoria crítica, a análise do papel do Estado no sistema capitalista, para assim melhor dimensionar as “apostas” no instituído que a categoria fez ao longo dos últimos 30 anos. A luta e a conquista de políticas públicas e sociais devem ser uma prioridade para a categoria profissional, mas não deveriam significar o horizonte máximo da ação profissional, uma vez que se pretende contribuir não só no processo de emancipação política, mas, sobretudo com o processo de emancipação humana. Nesse sentido, a articulação e interação com os movimentos sociais autônomos não deve ser confundido com os espaços conquistados e instituídos do poder público, como os conselhos de direitos. A possibilidade de uma dimensão militante na vida dos assistentes sociais não deve se confundir com suas atividades profissionais, como o são as representações nos conselhos de direitos. A militância, que foi lateralizada no Serviço Social, deve ser compreendida como uma dimensão da vida, que deve e/ou pode contribuir para o fazer profissional, mas que não deve se confundir com ele; f) Recuperar, a partir da perspectiva gramsciana, a importância da tarefa dos intelectuais orgânicos10 da classe trabalhadora, assim como conceitos e categorias da teoria do autor italiano que nos ajudam na compreensão do mundo e das relações sociais, impulsionando uma formação e um fazer profissional mais crítico e comprometido com a superação da ordem do capital; g) Ter a educação popular como referência de estratégia de um fazer profissional comprometido com a construção de sujeitos sociais e com a elevação da consciência crítica dos mesmos, tendo no horizonte uma prática profissional comprometida com a direção social do PEP e que identifique, na ação profissional, espaços educativos e de possibilidades de criação de experimentações articuladas aos movimentos sociais autônomos da classe trabalhadora.

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Na perspectiva de Gramsci, o intelectual orgânico é aquele que por origem ou vinculação se coloca como construtor da direção social de uma determinada classe, afirmando que todo grupo social “por nascer na base originária de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe conferem homogeneidade e consciência de sua função no campo econômico”. (VOZA, P. Verbete Dicionário Gramsciano. São Paulo, Boitempo, 2017.)

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Para além das reflexões acima, entendemos que os desafios à profissão se colocam no processo formativo, mas também no fazer profissional. Inicialmente há que se considerar que o trabalho de assistentes sociais demanda uma análise para além da sua concretude, na perspectiva do trabalho abstrato. O que requer atentar para sua condição de trabalhador assalariado. Com isso, o debate que se estabelece aqui perpassa as mediações possíveis e considera as determinações entre a existência do projeto profissional balizado pelo PEP e o Projeto institucional. Este, muitas vezes, permeado pela incompreensão sobre o trabalho profissional e pelas “amarras” impostas pelos empregadores. O atual cenário do mercado de trabalho profissional impõe uma dinâmica marcada pela diminuição dos postos de trabalho, baixos salários, múltiplos vínculos empregatícios – como estratégia de sobrevivência material – e precarização das relações de trabalho. Esse quadro apresenta–se como um grande obstáculo ao desenvolvimento de um processo de trabalho que reitere o PEP e a Educação Popular. Portanto, atuar na perspectiva da educação popular demanda compreendê–la não em sua dimensão instrumental, mas pela forma como, através dela, é possível ampliar a concepção de mundo e sociedade dos e com os usuários. Se Paulo Freire difundiu um método de alfabetização de adultos importante, seu principal legado não se restringiu a dimensão instrumental, mas a forma como a Educação Popular influiu e continua influindo numa maneira de ler o mundo para centenas de pessoas no país e na América Latina. Nesse itinerário, a Educação Popular pode ser a chave mediadora nos diferentes espaços sócio– ocupacionais para forjar formas de ler a realidade para além do aparente. E nesse momento de intensificação do conservadorismo, de práticas autoritárias e de um momento histórico onde os usuários dos serviços não têm voz, reivindicar a Educação Popular como desveladora da realidade, desalienante e superadora da ordem do capital torna–se uma urgência. Ademais, uma das tarefas do período é ressignificar a discussão da participação popular, do trabalho de base e, sobretudo, repensar o lugar do trabalho de grupo no exercício profissional. Isso implica fomentar a participação popular, repensar a construção de ações coletivas e grupalizadoras que contribuam para a construção da identidade de classe dos trabalhadores e trabalhadoras que acessam os serviços públicos, assim como contribuir para o processo de indig74


nação com as desigualdades e combater o apassivamento e o enquadramento no instituído pela sociabilidade do capital. Portanto, indiscutivelmente, o assistente social, enquanto sujeito político dotado de uma capacidade intelectiva, pode e deve imprimir no seu exercício profissional as mediações necessárias para a explicitação do que está além do aparente na realidade política e social da estrutura social, fomentando a construção gradativa de organizações coletivas que questionem, a partir de uma identidade de classe, o status quo. Todavia, o ponto a se destacar é que esse processo não ocorre na imediaticidade, mas é processual e gradativo, com avanços e retrocessos, pois tem relação com o processo de formação da consciência e, portanto, com a perspectiva de superação do senso comum. Essa concepção demanda ousadia aos profissionais nos processos que possibilitem que o bom senso seja parido e trabalhado, mesmo que de forma incipiente. Assim, considerando esses elementos e a relativa autonomia forjada pelos assistentes sociais nas instituições empregadoras, é necessário construir alternativas que imprimam um fazer cujas ações estejam ancoradas no Projeto Ético–Político da profissão, sem que isso seja um devir, mas balizadas nas condições objetivas intrínsecas ao processo de trabalho. É sabido que as mudanças com as quais somos desafiados pelo PEP e a EP demandam processos revolucionários que superem a ordem capitalista, tal como debatemos ao longo do texto. Por fim, é importante reafirmar a possibilidade de se fazer Educação Popular não só nos espaços populares e educacionais, mas nos distintos espaços sócio–ocupacionais. Os educadores populares reivindicam que esta seja uma mediação que ocorra dentro da escola pública e nos demais espaços formais e informais do mundo do trabalho – defesa histórica que precisa ser assumida, inclusive, pelos assistentes sociais que atuam nas escolas. Negligenciar esse posicionamento pode colocar o profissional do Serviço Social como elemento mantenedor dos processos de exploração e de construção de desigualdade social.

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III

CRISE ECONÔMICA MUNDIAL, PANDEMIA E GOVERNO BOLSONARO* Osvaldo Coggiola1

INTRODUÇÃO A pandemia da Covid–19 marca um ponto de ruptura nos desenvolvimentos históricos globais. Ela desencadeou uma explosão em cadeia em todo o mundo e em cada país, com enormes consequências sociais, econômicas, políticas e geopolíticas. Estourou e continua a se expandir durante a crise capitalista global ainda não resolvida que explodiu em 2007–2008, em um momento em que esta já estava afundando em uma nova fase de deterioração em 2019. A pandemia está empurrando a economia mundial para o abismo. Os relatórios das instituições financeiras internacionais, o FMI, o Banco Mundial, a OCDE e o Banco Central Europeu, enviam mensagens cada vez mais sombrias. "A economia global na corda bamba", é a manchete do relatório da OCDE. "A pior recessão global em 80 anos chegou. Onde está o fundo?", se perguntam os think tanks do imperialismo. As comparações impressionantes e aterrorizantes com a Segunda Guerra Mundial, o Craque de 1929, a Grande Depressão dos anos 1930, são combinadas com novas definições ameaçadoras. O Bank of International Settlements, o chamado "banco central dos bancos centrais", fala sobre a “Grande Parada Global”, e o FMI sobre o “Grande Bloqueio Global”. Enquanto isso, a pandemia de coronavírus continua seu curso letal. DOI - 10.29388/978-65-86678-35-2-0-f.79-96 Historiador e Economista, estudou História e Economia na Universidade de Córdoba, da qual fui expulso em 1976 pela ditadura militar argentina Formou–se em ambas as disciplinas na Universidade de Paris VIII Especializado em História Econômica e História da América Latina. Mestre em História e Doutor em História Comparada das Sociedades Contemporâneas pela École des Hautes Études en Sciences Sociales. Professor Titular de História Contemporânea na Universidade de São Paulo (USP) *

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Há novos surtos, particularmente nos EUA, Brasil, Grã–Bretanha, Espanha, Paquistão, Israel, Bálcãs e outros lugares. E ainda estamos na primeira onda da pandemia da Covid–19. A ligação insolúvel entre a crise global sistêmica e a pandemia foi metaforicamente descrita como uma “tempestade perfeita”; uma varrendo o planeta, partindo do Norte Global, principalmente dos três grandes polos de fluxos internacionais de capitais, EUA, União Europeia e China, e estendendo–se então para o Sul Global, para todos os continentes e países, com taxas desiguais, gravidade e velocidades próprias em cada um. O epicentro hoje está situado, sem dúvida, no coração do capitalismo global, que também é o centro de sua crise sistêmica – a América imperial e em declínio de Trump. O que a humanidade está experimentando em 2020 não é apenas um desastre natural, independente da interferência humana, uma "maldição dos deuses" mitológica ou uma "invenção humana sombria", uma "conspiração das forças das trevas" ou uma "decisão" unilateral de mecanismos de poder autoritário. Não surgiu como o asteroide que os cientistas dizem que atingiu a Terra e exterminou os dinossauros, nem é o resultado da interferência puramente humana em um ambiente neutro, uma construção sociopolítica. A pandemia não foi o imprevisível “cisne negro” que surgiu acidentalmente do nada. O sistema capitalista e as classes dominantes têm enormes responsabilidades diretas pela propagação da pandemia, a morte e a miséria que ela causou e continua espalhando. Os governos capitalistas na Europa e na América, consciente e criminalmente, ignoraram durante meses para tomar qualquer ação após o primeiro surto da Covid–19 na China, no final de novembro de 2019, e para evitar sua transformação em uma pandemia total. Mesmo quando a Organização Mundial da Saúde (OMS), em janeiro de 2020, soou o alerta de pandemia, ou quando a pandemia atingiu a Itália e a Europa, os Estados Unidos e outros países e continentes, nenhuma ação foi tomada. O exemplo mais extremo é encontrado no próprio centro do capitalismo global, seu bastião mais forte, com o presidente Trump nos lembrando de Nero cantando enquanto incendiava Roma. Em 28 de fevereiro, ele declarou que a pandemia “[...] terá consequências muito menores” nos Estados Unidos. Em 4 de março de 2020, ele insistiu em que “[...] nada fecha, a vida e a economia continuam como de costume”, enquanto em 24 de 80


março, ele anunciou que a vida social e econômica seria retomada a partir da Páscoa, e em 12 de abril “as igrejas ficarão superlotadas por todo o país". Cegueira semelhante diante de uma catástrofe com risco de vida, com a única preocupação de salvaguardar o poder político e os lucros do capitalismo, foi chocantemente demonstrada não apenas nos Estados Unidos de Trump, ou na Inglaterra por Boris Johnson, com o conceito insano de “imunidade de rebanho” ou pelo fascistóide Jair Bolsonaro no Brasil. Uma posição semelhante, embora um pouco mais disfarçada, foi adotada pelos líderes da UE, incluindo inicialmente Emanuel Macron na França (conforme denunciado por seu próprio ex–ministro da Saúde), Angela Merkel na Alemanha, ou seus aliados europeus na região central e Norte da Europa (Holanda, Dinamarca, Suécia, Áustria) seguindo a doutrina “salve a si mesmo e deixe seu vizinho morrer”. Todos eles demonstraram o mais feroz nacionalismo, ignorando escandalosamente as necessidades dos seus "parceiros" na "União" europeia. Em primeiro lugar, eles fecharam hermeticamente as fronteiras dos estados nacionais. Os líderes dos países “ricos” do Norte da Europa, arrogantemente, viraram as costas aos “povos preguiçosos” do Sul da Europa, incluindo a Itália, aos quais a Alemanha se recusou até mesmo a enviar máscaras protetoras. O mito de uma União Europeia também foi demonstrado pela ausência de qualquer política de saúde pan– europeia face à pandemia. A hipocrisia dos "poderosos" na área de língua alemã foi exposta pela exploração dos trabalhadores do Leste Europeu pelos líderes "morais" da Áustria e da Alemanha. A irrupção da Covid–19 atingiu profundamente as relações sociais nos Estados Unidos – em deterioração desde muito antes, especialmente desde a crise financeira e a recessão econômica de 2007/2009. Em poucos dias e semanas, o desemprego e a queda da renda abalaram as condições de vida de milhões de trabalhadores. A incerteza sobre as perspectivas de saúde da população desequilibrou gravemente a acumulação capitalista, que o Estado ajudou com uma injeção sem precedentes de dívida pública e emissão de moeda. A restrição da atividade econômica, por meio de quarentenas mais ou menos parciais, desencadeou uma crise política entre o governo federal e os estados, e alimentou as provocações das milícias, que saíram às ruas em nome da “liberdade”. Em plena campanha eleitoral, Donald Trump lançou uma campanha de agitação nacional de características fascistas. Os abusos dessas milícias são auxiliados por 81


uma campanha sistemática em todo o país, apoiada por grandes fundos financeiros. Como acontece em todo o lado, a pequena propriedade tornou–se centro de ressentimentos fascistas, porque constitui o elo fraco da cadeia do capitalismo. Enquanto as empresas techno vêm suas ações subirem na Bolsa de forma frenética, alimentadas por dinheiro barato, uma parte considerável dos negócios e da indústria pede a falência. A pandemia teve um efeito sistêmico brutal sobre uma organização capitalista que, por um lado, descarta a disponibilidade de mão de obra para exploração e, por outro, pulveriza a proteção social dessa força de trabalho, em seu sentido mais amplo – salários, habitação, saúde, educação, através da precariedade e da superexploração. A pandemia expôs o declínio do capitalismo em maior extensão do que uma crise financeira, quando o capitalismo enfrenta um colapso econômico brutal, como evidenciado pelo resgate ilimitado que exige do Estado. O capitalismo está em declínio avançado, e na crise de sua globalização torna–se incompatível com a própria vida. A OMS já havia falado sobre a necessidade de uma abordagem “Um Mundo – Uma Saúde”. No entanto, distorce esta abordagem ao ignorar divisões sociais, desigualdades de classe, confrontos nacionais e imperialistas, envolvendo a ONU, autoridades estatais, organizações não governamentais, etc. A mutação das metrópoles em declínio no Norte global e grandes cidades no Sul global, com o florescimento de centros financeiros de especulação e favelas de miséria, criaram as condições do que os analistas críticos brasileiros acertadamente chamaram de “necrografia do capital”. A burguesia tenta esconder sua própria estranheza e pânico e, ao mesmo tempo, propor um "reinício da economia" sob a sombra sombria da ameaça persistente da Covid–19, falando incansavelmente sobre "um retorno à normalidade antes da pandemia" ou “uma nova normalidade”. A chamada “normalidade” antes da pandemia já era um pesadelo. A “nova normalidade” tende a ser muito pior. A propaganda burguesa de que a “situação difícil” se limita a 2020 e a partir de 2021 as coisas vão melhorar significativamente é uma notícia falsa, um fake new. O “cenário otimista” de que a economia após um mergulho na recessão recuperar–se–ia rapidamente em um ano, seguindo um curso em forma de “V”, é até considerado por economistas tradicionais, como o vencedor do Prêmio Nobel de Economia Josef Stiglitz, “uma fantasia”. 82


Nouriel Roubini, um dos poucos economistas que alertou em 2008 sobre o craque iminente, também alerta agora que “[...] a grande crise econômica está apenas começando”2. Roubini relaciona empiricamente os novos perigos crescentes em uma lista que dá origem a calafrios: a) Déficits orçamentários, dívidas incobráveis, falências. b) Redução de gastos com saúde, c) Deflação, e) Crises monetárias, f) Desemprego e intensidade da automação e teletrabalho. Nos EUA, 47 milhões de pessoas se cadastraram para receber seguro–desemprego, e cada forma de teletrabalho aprofunda a taxa de exploração e as desigualdades entre os trabalhadores. Desglobalização, guerra econômica dos EUA contra a China e Mudanças climáticas. Cada ponto nesta lista já começou a ocorrer, na crise pandêmica, alimentando a rápida deterioração do capitalismo global. Indiscutivelmente, o ponto mais crucial que tem levantado intensos debates e preocupações, especialmente após março de 2020, é o chamado processo de “desglobalização”. O fechamento das fronteiras dos Estados Nacionais para lidar com a pandemia, a política de "salvar a si mesmo", o aumento do nacionalismo econômico e político, o aumento das guerras econômicas e comerciais, acima de tudo a intensificação do conflito entre os EUA de Trump e a China, juntamente com a Rússia e a União Europeia (EU), a interrupção das cadeias de abastecimento globais nas condições de quarentena global (bloqueio global), os anúncios, ameaças ou mesmo ações para deslocar empresas multinacionais, a “autossuficiência” e os muros de proteção fazem muitos falar do “fim da globalização”, que parecia ter triunfado, de forma definitiva e irreversível, entre Thatcher e a emblemática dissolução da União Soviética em 1991. O termo “globalização”, no período 1978–2008, havia realmente prevalecido como o mito fetichista do capital financeiro globalizado. Houve uso deliberado, distorcido, ideológico e mau uso do termo, ligado à proclamação do “fim da história” com a “vitória completa e final” do capitalismo liberal em todo o globo; um capitalismo globalizado sem contradições internas, sem rival, sem alternativa (a notória noção thatcherista de ‘TINA’ – There Is No Alternative). O mito foi destruído pelo colapso da esfera financeira global em 2008. 2

Disponível em Outras Palavras, 02 de abril de 2020. <https://outraspalavras.net/?s=Nouriel+Roubini>. Acesso: 02 set. 2020.

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A pandemia, assim, entrou em erupção em condições de uma crise excepcional do sistema capitalista mundial, fortemente repercutida no Brasil. As guerras econômicas internacionais são a prova disso. Os 280 trilhões de dólares de dívidas mundiais (mais de três vezes o PIB mundial) são a prova da falência do sistema; não podem ser cancelados por décadas nem pelos lucros: 20% do capital mundial está em default. O capital e seu Estado não têm condições de retornar à situação pré–pandêmica, e busca tirar proveito da pandemia para impor uma saída que destrua as defesas dos trabalhadores. A "reativação da economia", que os governos proclamam como seu objetivo quando rejeitam o “mitigam” quarentenas, é uma mentira; o que está para vir, como os economistas não cansam de repetir, é uma recessão enorme. O grande capital pretende converter a retirada da força de trabalho em suspensões ou demissões em massa, redução de salários, maior flexibilidade do trabalho e abolição de acordos trabalhistas. O capital quer usar a pandemia para desencadear uma guerra de classes. O capitalismo está em um impasse e numa guerra intestina, com ataques a aviões nos aeroportos, que sequestram instrumentos de saúde destinados a estados rivais. Esse impasse se manifesta nas crescentes crises políticas. A indústria, os bancos e o capital internacional pressionam para desmantelar a quarentena e cancelar os contratos de trabalho. A Confederação Internacional dos Sindicatos estima em 2,5 bilhões de pessoas – mais de 60 % da força de trabalho do mundo – o número de trabalhadores informais, sujeitos a condições degradantes e precarização. Contra isso, existe uma multiplicação de lutas em defesa do distanciamento social, do emprego, dos salários, das aposentadorias. No início da pandemia, no Brasil, pesar da orientação inicial do Ministério da Saúde (Luiz Henrique Mandetta) ser parcialmente diversa da presidencial, subordinou–se a esta ao apoiar o “distanciamento seletivo”, em substituição da quarentena (o que não lhe poupou sua exoneração), com consequências catastróficas em regiões e estados como a Amazônia, pondo em risco a sobrevivência das populações indígenas. O cenário lembrou a ocupação das Américas no século XVI, quando os povos nativos foram infectados e dizimados por vírus e bactérias desconhecidas. Na Amazônia, a Covid–19 encontrou uma região previamente dizimada pela pobreza. Enquanto pouco mais de 400 empresas, na sua maioria multinacionais, geram uma enorme riqueza econômica, com cerca 84


de R$ 100 bilhões de faturamento anual, a população vive na mendicância. Isso explica por que foi tão avassaladora a expansão do vírus na região. Em São Paulo o número de casos no início de maio era de 824 contagiados por milhão de habitantes, no Amazonas de 2.230, no Amapá de 2.419 e, em Roraima, 1.539. Os problemas comuns a toda a região amazônica são: a questão da terra que expulsa quilombolas, ribeirinhos e povos originários; a devastação ambiental acompanhada de queimadas e contaminação dos rios e do maior aquífero do mundo – Alter do Chão; a exploração de mais de 50 mil operários da Zona Franca de Manaus; o desrespeito das culturas nativas pela ofensiva neopentecostal; além do saque permanente das riquezas da floresta. O Brasil passou a ser o país da América Latina com o maior número de casos de coronavírus, com o maior número de mortes e maior subnotificação. Uma pesquisa estabeleceu que o Brasil detectava apenas 11% dos seus casos de coronavírus. Pessoas infectadas que se sentiam saudáveis ou com sintomas muito leves espalharam o vírus, criando as bases para o desastre. Assim surgiram os panelaços de protesto com os “Fora Bolsonaro” dominando as vozes (embora o PT e Lula se opusessem a essa palavra de ordem), que se fizeram ouvir em todas as capitais e até em cidades de médio e pequeno porte do país. Às precárias condições sanitárias, devidas a décadas de desinvestimento e cortes orçamentários, em especial nas áreas de saúde, com o desmonte do SUS, e na educação (incluída a educação superior, base da formação de profissionais de saúde) somou–se a subordinação histórica do país às grandes potências capitalistas dominantes. O governo dos EUA, em atos de pirataria internacional, se apropriou, mediante subornos misturados com a força, de equipamentos de prevenção hospitalar (EPI), testes e respiradores artificiais para pacientes graves, fabricados na China e destinados a outros países, incluído o Brasil. A política de privatização e desindustrialização privou o Brasil da possibilidade de produzir esses equipamentos e reagentes em grande escala. Alguns países protestaram contra a atitude dos EUA, o responsável pela OMS o fez verbalmente, mas o Brasil de Bolsonaro ficou mudo. O governo Trump anunciou uma política de boicote financeiro à OMS, além de boicotar quaisquer meios de coordenação internacional para combater a pandemia. A ocultação da situação promovida pelo ministro da Saúde foi funcional à política ditada por Bolsonaro. O ministro anunciou que a política de pre85


venção do contágio nas favelas e periferias urbanas passava por um acordo com milicianos e traficantes. E, também, com o grande capital. O primeiro pacote econômico "anticoronavírus" autorizou as empresas a reduzir os salários, um auxílio mensal insignificante de 200 reais, durante três meses, para 40 milhões de trabalhadores lançados na informalidade, benefícios fiscais para as grandes empresas e compra de títulos públicos pelo Banco Central, em resposta à seca no mercado financeiro. O embate com o Legislativo acabou elevando o montante da ajuda para R$ 600, para evitar uma catástrofe social que poderia virar terremoto político. Para completar, sob o comando de Trump, Bolsonaro lançou uma provocação contra a China, que abriu uma fissura em sua base política de apoio. A pressão da burguesia do agronegócio (a China é o maior parceiro comercial do Brasil, responsável por 30% de suas exportações) colocou o governo em uma situação de fraqueza, no meio de uma crise política ao som dos panelaços e do aumento diário do número de casos de contágio e de mortes. A classe capitalista brasileira ficou dividida, com seu sistema político fraturado. A principal empresa de consultoria mundial para avaliação de “risco político” detectou a possibilidade de uma “crise institucional” no Brasil, acelerando uma fuga de capitais, mensurável cotidianamente. A única saída realista para evitar o desastre passou a ser impor a centralização de todos os recursos do país, com base em um plano social e econômico, sob a mobilização e liderança dos trabalhadores. As empresas começaram a demitir (inclusive no crítico setor de transportes, responsável pela logística de distribuição de alimentos e medicamentos), colocando na pauta de luta a proibição de toda demissão em situação emergencial. O controle do sistema financeiro pelos trabalhadores, para evitar a fuga de capitais e o esvaziamento do país, também foi posto ordem do dia, pondo a perspectiva de sua nacionalização. O combate à epidemia requer uma ação centralizada que coloque todos os recursos econômicos, materiais e humanos, da nação a serviço do travamento do contágio e do tratamento da doença enquanto não existir vacina comprovadamente eficiente, garantindo segurança alimentar e saúde para toda a população, ampliando a capacidade do sistema de saúde para atender todos os doentes, priorizando a produção e distribuição de itens de trabalho para os profissionais de saúde.

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A disposição de luta dos trabalhadores da área de saúde, em todos os níveis, se manifestou de modo explícito e foi assumindo os contornos de uma mobilização antigovernamental, que colocou a necessidade de transformar o sistema de produção, a economia como um todo. Os profissionais de saúde denunciaram a falta de equipamentos e suprimentos médicos básicos. O governo chegou ao ponto de impor que médicos e enfermeiros reutilizassem as máscaras de proteção. Trabalhadores de telemarketing, entregadores por aplicativo, trabalhadores industriais, distribuidores de alimentos e remédios iniciaram processos de luta para exigir garantias de segurança e higiene. Nas favelas e periferias, comitês da comunidade assumiram a tarefa de estabelecer vigilância sanitária para reduzir a propagação da praga. Houve até greve dos metalúrgicos em São Paulo exigindo férias remuneradas compulsórias. No sentido oposto, toda a linha política do governo foi orientada para explorar a catástrofe sanitária para avançar na sua agenda de ataques às condições de vida dos trabalhadores e de entrega nacional. O esvaziamento da política de saúde, com déficit de equipamentos e sem financiamento para a pesquisa, contrastou com a mobilização sem precedentes de recursos públicos em benefício dos bancos, fundos de investimento e grandes empresas. A primeira reação de Paulo Guedes (ministro da Economia) à epidemia foi pedir ao Congresso que votasse de uma só vez o pacote de privatizações e reformas administrativa e fiscal, com o argumento de que "salvariam" a economia brasileira na calamidade. Protelando, o Congresso aprovou a ajuda de emergência. Em resposta, o governo congelou sua sanção durante dez dias para condicioná–la à aprovação de uma PEC que daria ao Banco Central superpoderes para comprar títulos privados. O coronavírus acelerou a hora da ressaca. O "Orçamento de Guerra" veio reciclar a bolha financeira, em socorro do capital fictício, através de uma disparada do endividamento, que levou a dívida pública federal de 76% para 90% do PIB. Em 2019, a dívida pública aumentara 9,5%, chegando a R$ 4,248 trilhões. Desse aumento, R$ 330 bilhões referiram–se ao pagamento de juros. Nos últimos dez anos, a dívida pública mais que dobrou: em 2009, o estoque da dívida era de R$ 1,497 trilhões. Proporcionais ao crescimento imparável da dívida usurária e dos juros foram os cortes nas políticas sociais. Segundo o Conselho Nacional de Saúde (CNS), o Sistema Único de Saúde (SUS) perdeu pelo 87


menos 20 bilhões de reais desde 2016, a partir da MP do teto dos gastos públicos. Ao longo de duas décadas, os prejuízos estimados somariam 400 bilhões de reais. Os estados e municípios, sem alternativas de financiamento, ficaram diante de um horizonte de caos. As provocações de Bolsonaro aos governadores tiveram esse pano de fundo. A controvérsia com eles sobre as medidas de isolamento não foi apenas uma disputa política, mas teve também o objetivo de encurralar os estados, utilizando como arma a ameaça à vida de milhões de brasileiros. A farra que Guedes–Campos Neto (presidente do BC) ofereceram ao capital financeiro contrastou com a mesquinharia do financiamento para combater a Covid–19. No total, menos de um quinto dos recursos afetados à estatização de títulos privados pelo BC foram destinados ao enfrentamento do coronavírus. Se, na maior crise de saúde da história nacional, o SUS ocupa o último lugar na rubrica orçamental, o negócio capitalista da saúde celebrou novos triunfos. A Agência Nacional de Saúde (ANS) liberou R$ 15 bilhões para as empresas em troca de manter o atendimento aos inadimplentes durante a pandemia. As empresas foram obrigadas a manter um fundo de reserva para situações de emergência. A ANS demorou mais de um mês desde a primeira morte por coronavírus no Brasil para se pronunciar sobre tema, e precisou ser cobrada diretamente pela Procuradoria Geral da República. Nenhuma dessas empresas faz esforços extraordinários: os planos de saúde têm que atender segurados inadimplentes, mas só aqueles que se disponham a renegociar contratos. A quantidade de pessoas com seguro saúde atingiu 47 milhões, mais de 20% da população do país, com alto índice de inadimplência. O exame de Covid–19, em teoria, passou a ser obrigatório desde 13 de março de 2020, mas só é feito se algum médico do convênio autoriza. A maioria dos planos restringe ao máximo essa verificação, porque as empresas não fizeram nada para providenciar os kits necessários. Um quadro semelhante ocorre na área da pesquisa. A pandemia chegou em meio a cortes de bolsas, defasagem tecnológica dos laboratórios e desmoralização das universidades. A fila para testes expôs a vulnerabilidade de um país que escolheu não investir em ciência e tecnologia. O gargalo dos testes é resultado da falta de reagentes químicos e de profissionais capacitados para realizar os exames. Até outubro de 2019, as universidades e instituições de pesquisa brasileiras perderam 18 mil 88


bolsas de estudo. Em maio, o governo federal contingenciou 42% das despesas do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (a recriação do Ministério de Comunicações reduziu as verbas ainda mais). Quando a pandemia começava a reverberar, a comunidade científica foi surpreendida por uma portaria da Capes que alterava a metodologia para o financiamento da pós–graduação. Não admira que o governo tratasse a falta de kits de diagnóstico, sem os quais é impossível gerir a curva epidémica, com uma fatalidade do destino. O mesmo se aplica à falta de reagentes, insumos medicinais, respiradores e equipamentos de proteção individual. Longe de uma resistência face aos impactos econômicos da pandemia, a política do governo Bolsonaro é uma fraude histórica a favor do grande capital, com total desprezo pela vida humana. Em vez de garantir salários para viabilizar renda e evitar o afundamento econômico, a MP 936/2020, aprovada pelos congressistas, autorizou a suspensão dos contratos de trabalho e a redução dos salários em até 70%. Para implementar essa política perversa houve a aprovação, com o apoio de todos os blocos parlamentares, de um inédito duplo orçamento: um que reúne todas as áreas sociais, sujeito aos dogmas do ajuste fiscal e o pagamento dos juros da dívida, e outro, "extraordinário", que fica liberado de todo limite, destinado a socorrer os bancos, as grandes empresas e o parasitismo financeiro. A exigência de Guedes para avalizar a ajuda de R$ 600,00 para os trabalhadores informais foi à aprovação do “orçamento paralelo”. Os estados falidos, arcando todo o peso do enfrentamento à pandemia, foram deixados à míngua: a extorsão miliciana passou a guiar os mecanismos políticos e econômicos na cúpula do Estado. Sob essas condições, o Congresso promulgou a Projeto de Emenda Constitucional (PEC) que criou o orçamento destinado "exclusivamente a ações de combate à pandemia de coronavírus", separando do Orçamento Geral da União os gastos emergenciais, e estabelecendo que o orçamento paralelo não precisaria cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal. A lei autorizou o Banco Central (BC) a comprar e a vender títulos públicos nos mercados secundários local e internacional, e ações de empresas no mercado local, por valor de um trilhão de reais. O valor total do auxílio para os trabalhadores informais é (ou seria) de R$ 98 bilhões, uma décima parte dos fundos destinados aos banqueiros e grandes empresas. Apesar de o Senado estabelecer que as empresas só po89


deriam se beneficiar se houvesse o compromisso de manter empregos, esse artigo foi eliminado pela Câmara de Deputados. A emenda também concedeu poderes para o Banco Central injetar liquidez no mercado durante a crise, com a compra de títulos do Tesouro ou de títulos de crédito no mercado secundário de pagamentos, financeiro ou de ações. Foi ampliado o rol de ativos que o BC poderia comprar nos mercados secundários financeiros, de capitais e de pagamentos. O Senado havia permitido essas operações durante a pandemia, restringindo–a a seis tipos de ativos: a Câmara excluiu a lista do texto, o que liberou a compra de qualquer ativo. O “Orçamento de Guerra” teve apoio quase unânime no Congresso, incluindo os votos do PCdoB, PDT e PSB. O PT apoiou a PEC no Senado, e votou contra na Câmara, quando a tramitação já estava concluída, em protesto pela retirada da exigência de manutenção dos empregos. Diante da crise política, o movimento das Forças Armadas foi, numa tentativa de unir o útil ao agradável, o de aprofundar sua participação (e recepção de verbas) em todos os escalões governamentais, já não só através de militares reformados (como no início do ciclo bolsonariano) mas também de militares da ativa. A pandemia não criou, apenas aprofundou e acelerou, esses desenvolvimentos políticos. O Brasil levou 53 dias, a partir da primeira morte por coronavírus, para ultrapassar a marca de 10 mil vítimas. Mas foi necessária somente uma semana para superar os 15 mil mortos, até superar folgadamente os 60 mil e em setembro ultrapassar 135 mil mortos. Devido às subnotificações, algumas estimativas situam em casos muito mais elevados a quantidade real de mortes, enquanto outras advertem que o pico da pandemia não foi ainda atingido, prevendo 50 mil contágios diários. Segundo Miguel Nicolelis (autoridade mundial na área de neurociência e chefe do projeto Monitora Covid–19): "Vamos viver algo que nunca imaginamos na história do Brasil. E isso, nas proporções que vamos ver, não era inevitável" 3. O Brasil se transformou um dos epicentros mundiais de expansão da Covid–19, com uma velocidade de contágio superior àquela dos países que mais a sofreram.

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NICOLIS, Miguel. Entrevista a GZH Saúde, publicada em 15 de maio de 2020. Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/saude/noticia/2020/05/miguel–nicolelis–vamos–viver–algo– que–nunca–imaginamos–na–historia–do–brasil–e–isso–nas–proporcoes–que–vamos–ver–nao– era–inevitavel–cka89uqyt004j015n5u44sr42.html> . Acesso em: 02 set. 2020.

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No meio do colapso do sistema sanitário, a ocupação militar do Ministério da Saúde, exonerando profissionais de carreira para ser substituídos por pessoas sem nenhuma experiência, é um passo à frente no sucateamento da saúde pública e um crime contra o povo brasileiro. A militarização da saúde representa uma nova fase do ataque ao SUS, que sofre as consequências do desfinanciamento e o déficit de insumos e de pessoal, agravados a partir do congelamento dos gastos públicos. Desde 2018, a saúde deixou de receber pelo menos R$ 22,5 bilhões. Há mais de 200 mil profissionais de saúde com suspeita de contágio. A maioria dos casos (34%) é de auxiliares ou técnicos de enfermagem, a categoria mais precarizada e com salários mais baixos. Depois deles, os enfermeiros são a segunda categoria mais afetada, com 34.000 casos. São Paulo concentra a maior parte de diagnósticos, com mais de 15 mil profissionais de saúde com confirmação de Covid–19, ainda em julho. Com o governo em crise e soltando lastre para sobreviver, Paulo Guedes e o ministério da Economia elaboraram um programa para a saída da pandemia, uma tentativa de preservar o último e fundamental ponto de apoio do projeto de Bolsonaro, além da casta militar. Através dele, o grande capital tenta aproveitar um Brasil devastado por milhares de mortes, e pela desorganização econômica, para impor um ataque histórico. A "boiada" que Guedes quer fazer passar consiste em uma operação política, cozinhada com o Centrão, que contempla a um só tempo reformular a política social, aprovar uma nova contrarreforma trabalhista com o "Cartão Verde–Amarelo" e reintroduzir o projeto de previdência por capitalização: uma resposta ao fracasso político de Bolsonaro que visa organizar e enfrentar, com os recursos do capital financeiro, a fração da classe trabalhadora empurrada para a economia informal contra os trabalhadores de carteira assassinada, com o intuito de eliminar conquistas históricas, tomando como pontos de partida as medidas "excepcionais", o desespero e a desmoralização por causa do desemprego e a falta de perspectivas. Para isso, o governo agrava intencionalmente a miséria, recusando–se a estender a ajuda de emergência. O programa “Renda Brasil”, lançado por Guedes, unificaria todos os programas sociais, inclusive o Bolsa Família. Benefícios hoje em vigor seriam revistos, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC), pago as pessoas com deficiência e aos idosos de baixa renda; e o abono salarial, pago a quem ga91


nha até dois salários mínimos. Apologistas do plano falam em "privatizar" o orçamento público, dando aos destinatários o "poder de escolha" sobre os recursos. A ideia é reduzir drasticamente o salário indireto (políticas públicas de saúde, educação, saneamento) e, como compensação, proporcionar uma renda mínima em dinheiro. A pandemia virou um gigantesco laboratório político. Guedes admitiu que a experiência de cadastrar aqueles que não estavam inscritos em programas sociais, com a ajuda de emergência, está na base do novo plano. A inspiração veio após o impacto favorável (limitado) a Bolsonaro nas pesquisas verificado depois distribuição da ajuda emergencial, mantendo–se, porém, a queda do apoio popular ao governo. Segundo Guedes, o governo "aprendeu" que havia 38 milhões de brasileiros fora do mercado de trabalho. O objetivo é utilizar o banco de dados da ajuda emergencial para reciclar o projeto Carteira Verde–Amarela, a fim de reduzir encargos trabalhistas, estimulando a concorrência entre os trabalhadores. É a tática de usar o exército industrial de reserva, de proporções gigantescas no Brasil devido à crise econômica, para tentar impor uma mudança histórica. Com a Carteira Verde–Amarela, as empresas se beneficiariam da redução de encargos para contratação de jovens de 18 a 29 anos e maiores de 55 anos, que receberiam apenas até um salário mínimo e meio. A consequência será o aumento da rotatividade, com demissão daqueles que ganham mais, para serem substituídos por trabalhadores contratados pelo novo modelo. Com a substituição por trabalhadores que ganhariam um salário de miséria, o novo regime de contratação promoveria o achatamento da média salarial de inúmeras categorias. As empresas teriam isenção da contribuição previdenciária e das alíquotas do Sistema S. Em caso de demissão, o trabalhador receberia apenas 30% de multa sobre o FGTS, em vez dos 40% válidos para os demais contratos de trabalho. Atrelado ao projeto de ressuscitar a Carteira Verde–Amarela, Guedes voltou a propor a mudança do regime de previdência, resgatando a capitalização (derrotada no Congresso antes do casamento com o Centrão), formato em que cada trabalhador deve contribuir para a própria "poupança", e não para um fundo comum. O modelo não teria efeito para as classes mais baixas, pois a capitalização valeria a partir de uma linha de corte de remuneração. Seria criado um sistema complementar, em que o regime de repartição continuaria a existir, garantindo as aposentadorias da população de menor renda. A capitalização va92


leria para trabalhadores com remuneração acima da linha de corte, que seria de três salários mínimos. Para facilitar a aprovação, Guedes propôs a criação de um imposto sobre transações financeiras, cobrado da mesma forma que a antiga CPMF, ou seja, um novo imposto ao consumo popular. O imposto substituiria os encargos previdenciários que pagam as empresas, os custos do INSS seriam repartidos por toda a sociedade. O projeto era a base da reforma tributária do governo desde o início, mas ganhou tração devido à crise econômica. Levando em conta os primeiros impactos da pandemia, a contração do emprego no Brasil foi muito mais severa do que nos números oficiais. Houve perda de quase dez milhões de postos de trabalho em apenas dois meses, de 94,2 milhões trabalhadores ocupados em fevereiro para 84,4 milhões em abril, o nível mais baixo de toda série histórica. A elevação da taxa de desemprego ofi cial de 11,1% para 12,9%, entre fevereiro e abril deste ano, não captura a realidade, porque a força de trabalho (o conjunto das pessoas trabalhando ou buscando emprego) também despencou no período, de 106 milhões para 96,9 milhões, devido à epidemia. Como demonstrou um estudo da FGV, caso a força de trabalho tivesse se mantido inalterada (e os demitidos passassem imediatamente a buscar emprego), a taxa de desemprego estaria acima de 20%, a maior da história. Em síntese, a política é aproveitar a pandemia para fazer passar, de contrabando, os objetivos econômicos que viabilizaram o apoio da grande burguesia ao experimento Bolsonaro–Guedes em 2018. O programa está sendo reciclado para dar sustento a Bolsonaro no momento da maior fraqueza de seu governo. Esse programa também alinha parte das forças que se autoproclamam "defensoras da democracia". Isso vale não só para o Centrão, mas também para todas as variantes alternativas a Bolsonaro (Maia, Moro, Doria). A crise capitalista, que a pandemia evidenciou em toda a sua profundidade, acelerou os tempos e levou amplos setores para uma situação de desespero. Bolsonaro busca militarizar setores da pequena burguesia desesperada e arrastar uma fração da classe trabalhadora para atacar fisicamente as organizações operárias. Os acontecimentos revelam a consciência do grande capital de que, por enquanto, não é possível governar o Brasil só com um miliciano. Por isso existe um resgate do aparelho de dominação burguês (STF, Congresso, que o bolsonarismo define como "o establishment"). O “Renda Brasil”, que consagra as aspirações da burguesia de completar o trabalho iniciado no golpe de 2016, 93


surge como solução para recompor o regime. O problema é que ocorre no momento em que os países propiciadores dessa receita sofrem uma crise profunda, em que a luta de classes despertada pelos seus efeitos tem assumido dimensões enormes (Chile, Estados Unidos). O desafio da juventude precarizada e "uberizada" ao aparato fascista e às PM sinaliza o início de uma batalha estratégica que deve reunir trabalhadores ocupados e desempregados, formais e informais, em uma luta comum. O confinamento emergencial, única defesa comprovada contra a extensão da pandemia Covid–19, impede grandes iniciativas políticas presenciais. Com a honrosa exceção dos trabalhadores da saúde, notadamente as enfermeiras, das torcidas organizadas e dos antifascistas de Porto Alegre e outras cidades, há pouca presença nas ruas e os assassinatos na periferia persistem. Há uma contradição entre a luta pela sobrevida, que obriga a aceitar as recomendações da ciência, e, por outro lado, a necessidade de serem preservadas as condições para as lutas populares. Essa contradição é, entretanto, transitória. A luta contra a pandemia e contra o colapso do sistema de saúde pública colocou um programa claro: a necessidade de pôr todos os recursos nacionais no combate contra a pandemia, derrubando o congelamento dos gastos públicos por vinte anos (EC/95) e financiando o setor público (em primeiro lugar, o SUS e os institutos/universidades de pesquisa) mediante o não pagamento da dívida pública detida pelos tubarões financeiros e um imposto às grandes fortunas; a eliminação da “fila dupla” (pública e privada) para testes e atenção dos doentes; a colocação de todos os recursos sanitários (55% dos leitos de UTI se encontram em hospitais privados, só 45% no setor público, que atende, no entanto, mais de 80% da população) sob responsabilidade do SUS, este sob controle direto e democrático dos seus trabalhadores (médicos/as, enfermeiros/as, pesquisadores, agentes de saúde, assistentes sociais), que já se encontram na linha de frente, física e política, da luta contra a pandemia. E não só contra a pandemia, mas também contra as investidas dos tresloucados bandos fascistas, agentes da política genocida. Os trabalhadores da saúde, que arriscam a própria vida no combate ao coronavírus, se tornaram a vanguarda da luta contra a política genocida. A classe trabalhadora, empregada ou desempregada, está sendo duramente atingida pela epidemia, isso é o ponto de partida de qualquer política. A 94


quarentena recomendada pela ciência médica colide com as condições precárias de suas casas e bairros; com a falta de infraestrutura sanitária; com o desemprego e a precariedade crescente e permanente. No meio de uma crise sem precedentes do regime social e político do Brasil, se coloca uma luta pela sobrevivência física e social dos trabalhadores; todas suas organizações devem estar à altura do desafio, do qual não podem fugir.

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IV

A EDUCAÇÃO POPULAR E AS RADICALIDADES HISTÓRICAS NA AMÉRICA LATINA* La educación popular tiene que reconocerse como un proyecto necesariamente inacabado en los marcos de la sociedad no transformada o en vías de transformación en que se piensa y actúa, como una educación de y para hombres y mujeres nuevos que se cons truyen a sí mismos en el proceso de construir una nueva sociedad. Ello supone una creencia radical en la capacidad de autotransformación de los sujetos, una apertura también radical a las enseñanzas de la práctica social y también la asunción de ciertos elementos de método que demuestren su utilidad para superar las intencionalidades de sujeción incrustadas en las prácticas educativas vigentes (PEREZ, E. 2016, Grifo nosso)

Cristiane Sabino de Souza1 Roberta Traspadini2

INTRODUÇÃO Este capítulo tem por objetivo tratar a educação popular como brecha/fonte/revanche histórica, em meio ao modelo de desenvolvimento excludente e desigual, consolidado como espaço–tempo de fraturas e feituras; de contrastes e contradições ao longo do século XX. A exclusão da maioria, inerente ao projeto de desenvolvimento da Nação de poucos à custa do trabalho superexplorado de muitos(as), reflete–se no sistema educacional, que, para existir, dentro da lógica da propriedade privada, deixa de fora ampla parcela da clasDOI - 10.29388/978-65-86678-35-2-0-f.97-128 Doutora em Serviço Social. Professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina. Educadora Popular. Membro do Instituto de Estudos Latino– americanos (IELA/UFSC). E–mail: crisabino1@gmail.com 2 Doutora em Educação. Professora do curso de Relações Internacionais e Integração (UNILA) e dos programas de Pós Graduação em Relações Internacionais (UNILA), Serviço Social (UFSC). Coordenadora do Observatório de Educação Popular e Movimentos Sociais na América Latina (UFES–UNILA); e do Grupo de Pesquisa Saberes em movimento na luta por terra e trabalho na América Latina (UNILA). E–mail: robertatraspadini@gmail.com *

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se trabalhadora – em particular, negros/as, pobres, camponeses/as e indígenas. A educação pública brasileira segue as trilhas do capitalismo dependente (MARINI, 2011), sob atuação rigorosa de um Estado nacional burguês na particularidade da América Latina (CUEVA, 1983), cuja atuação de classe – burguesa – se reveste de antidemocracia, autoritarismo, subserviência aos projetos imperialistas–colonialistas, além do controle e repressão das demandas populares. É literalmente um Estado de coerção e consenso sem pausas na repressão para os/as que vivem e lutam por acessar o tão propalado universo do Estado de direito. Sob este caráter – Estado oligárquico dependente – próprio da condição estrutural latino–americana, se consolida um modelo formal–institucional de educação que restringe o popular à mera reprodução histórica da desigualdade econômica, política, social e cultural. É desse popular que não cabe dentro da ordem a não ser com o estigma dos/das “ninguéns”, que sofrerão todo tipo de estereotipação de uma condição à margem – não por opção, mas por falta de –, que a educação popular se forja e é forjada. Suas raízes profundas, abrem alas à produção, no presente, de uma recuperação histórica em que a memória entoa a cultura, a arte, o saber popular como revanches. Entendemos – nas premissas da teoria marxista da dependência 3 – que recuperar a trajetória histórica da educação, bem como suas formas recentes, no século XXI (e entender as disputas e contradições que a permeiam entre uma aparente democratização e o funil que demarca a sua real concretização), requer situá–la no processo metabólico particular da engrenagem da superexploração da força de trabalho, em sua dinâmica de produção e reprodução interna e externa do capital (MARINI, 2011; TRASPADINI, 2018; AMARAL, 2014). Exige, pois, não perder de vista a centralidade, na vida cotidiana da classe trabalhadora, das raízes históricas demarcadoras da presença colonial reiterada pelo imperialismo, através de suas estratégias coercitivas e consensuais contínuas de dominação (FERNANDES, 1983). Processo este, que reforça a manutenção e expansão do poder de uma classe (capitalista) sobre outra (trabalhadora) ao longo da história do desenvolvimento dependente, sob o qual o sistema educacional 3

Para uma aproximação ao tema da Teoria Marxista da Dependência ver: AMARAL, M. Verbete superexploração. In: MARINI, R. M. A dialética da dependência. São Paulo: Editora expressão popular. Documentário, 2014.

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exerce papel fundamental para a propagação ideológica das supostas verdades burguesas. Neste artigo, ao recuperarmos a trajetória de lutas pela educação, dos/ das dominados(das) e superexplorados(as), buscamos explicitar a constituição da educação popular como fruto da práxis dos sujeitos políticos (na diversidade de formas, tempos e processos de organização social da resistência que tal tema implica, na realidade latino–americana) (JARA, 2020) Além dessa introdução, trabalharemos três pontos conectados: 1) uma reflexão sobre o sentido da educação no capitalismo dependente; 2) um breve apontamento acerca do sentido da educação popular na América Latina; 3) algumas experiências de educação popular no Brasil do século XX e XXI. Na articulação entre eles, pretendemos demarcar, ao final, como a educação popular, articulada à luta dos/das dominados/das e superexplorados(das) – movimentos negros, camponeses, indígenas –, constitui–se em revanche histórica, manifesta na insubordinação, resistência e construção de alternativas à miséria material– espiritual da sociedade burguesa em geral, e do capitalismo dependente, em particular. 1. RETRATO DA EDUCAÇÃO FORMAL NO CAPITALISMO DEPENDENTE CONTEMPORÂNEO É na dinâmica do imperialismo e da dependência (DOS SANTOS, 1978), ao longo do século XX, e em suas diferentes fases de articulação dialética – entre os capitais transnacionais–financeiros e a oligarquia agrária e burguesia industrial nacionais –, que devemos buscar as pistas históricas das nossas atrofias sociais referentes à estrutura e à cultura educacional brasileiras. Educação e trabalho são indissociáveis na história do desenvolvimento brasileiro (FRIGOTTO; CIAVATTA, 2016). No século XXI, quanto maior o fosso entre emprego formal–informal–desemprego, tanto maiores os dilemas vividos no ambiente escolar no que tange à evasão, distorção ano–série, baixo tempo de escolaridade regular. A realidade brasileira do mundo do trabalho evidencia a força do emprego informal sobre o formal e, neste, a precarização do trabalho

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como gênese e tendência4. Segundo o IBGE (2020), são 12,8 milhões de pessoas desempregadas; 24 milhões desistiram de procurar emprego, e 27 milhões atuam por conta própria. No âmbito formal são quase 95 milhões de trabalhadores/as, com uma média salarial R$2.300,00; sendo que os trabalhadores informais ou por conta própria ganham 40% a menos, em média. Isto, se comparado ao estudo de agosto do DIEESE (2020), sobre o mínimo necessário para sobreviver com dignidade no Brasil atual – R$4.536,00 –, expõe a manutenção das Veias Abertas (GALEANO, 1971). Aliada a essa condição estrutural do desemprego–precarização está o alto número de pessoas que não sabem ler e escrever: quase 11 milhões. Além disso, 30% da população é considerada como analfabeta funcional, isto é, leem e escrevem, mas não conseguem interpretar (INSTITUTO PAULO MONTENEGRO, 2018). O movimento contínuo do desenvolvimento desigual e combinado no Brasil, palco do capitalismo dependente e da superexploração, aponta para uma educação distante, no século XXI, do próprio sentido do trabalho que a baliza. Uma escola e uma realidade cindidos. À precarização do trabalho se soma a precarização da educação como direito social com qualidade no sentido público da ação (ARROYO, 2007). Em 1977, Ruy Mauro Marini e Paulo Speller escreveram um texto sobre A Universidade brasileira. Os autores destacam que, no plano da dominação burguesa, a universidade cumpre três funções: 1) reprodução ideológica da condição de classe dominante; 2) conformação da ciência e da técnica para a manutenção e expansão do capital; 3) aliança de classes efetivada pela burguesia nacional, industrial–comercial, frente às históricas heranças do poder da burguesia agrária–oligárquica (MARINI; SPELLER, 1977). Em uma abordagem ancorada na formação social e histórica do Brasil colonial e sua herança escravocrata, os autores explicitam como, no fetiche manipulador da separação entre o trabalho intelectual e o trabalho manual, presentes em uma sociedade que segregou a população alforriada à condição de sem–terra, sem–letras, sem–moradias e sem– trabalho, a educação superior vai, ao longo do tempo, tornando–se em mera matriz ideo–política do capital (inter)nacional. Nas palavras dos autores: 4

Sugerimos o documentário brasileiro, “GIG: a uberização do trabalho”, sob a direção de Carlos Juliano Barros, Caue Angeli, Maurício Monteiro Filho, 2019.

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A escravidão leva a separação entre o trabalho manual e o intelectual ao seu limite extremo. O trabalho manual é considerado não apenas como algo desagradável, mas também degradante, sinal visível do status de sujeição. A formação educativa das camadas médias e superiores se distancia, então, até onde é possível, de tudo que tenha relação com a produção material. Onde o trabalho produtivo é identificado como sujeição e degradação, a cultura se cristaliza em outro polo como refinamento e excelência. Assim, a educação superior não tem como desenvolver as três funções que a caracterizam, no marco da sociedade burguesa, e aparece, mutilada e caricaturizada, reduzida à sua função puramente ideológica (MARINI; SPELLER, 1977, p. 6, grifo nosso)

Dessa relação indissociável entre o que se conformou no Brasil colonial e sua perversa condicionalidade escravista e oligárquica, assentada no monocultivo, forjou–se a produção político–econômica de uma independência formal de Portugal, sem destruir as raízes estruturais do colonialismo e do racismo. Tal condição, apresenta–se, sobre o controle da oligarquia agrária brasileira, no bojo da independência formal, em 1822, ao abrir novos processos de desenvolvimento, supostamente autônomos, mas renovando os vínculos de subordinação dos/das trabalhadores/as do campo, forçadas/os continuamente a migrarem para as nascentes cidades. Ao longo do século XIX, sob as mudanças jurídicas e políticas decorrentes da propriedade privada da terra – Lei de terras 1850 (BRASIL, 1850) e dos processos correntes de uma alforria condicionada à posição de sem direitos, na qual os sujeitos escravizados foram postos em liberdade no plano mercantil de venda e controle sobre sua força de trabalho, passando de “[...] bom escravo a mau cidadão” (MOURA, p.16, 1977), nasce um novo contexto, mediado por velhas práticas racistas, patriarcais, neocoloniais (SOUZA, 2019; TRASPADINI, 2016). A educação pública brasileira em geral, e superior em particular, retrata a história dos/das que, responsáveis pela edificação do desenvolvimento urbano e industrial no século XX, ficarão fora do sistema de educação superior. Esses/as trabalhadores/as, os/as “sem escola”, “sem título” e com trabalho superexplorado, edificam o complexo urbano industrial, ao mesmo tempo em que ocupam terrenos irregulares nas cidades, formando os territórios populares. Condição inerente à própria lógica desigual do capital. É dessa relação entre o 101


núcleo de trabalhadores fundadores do Brasil oligárquico, agrário e industrial, que a história da educação se apresenta como a história da exclusão formal. Assim, o século XX repõe, na esteira da história do Brasil, a trajetória da exclusão educacional, do analfabetismo, e do restrito ensino técnico vinculado ao padrão de desenvolvimento dependente, para a abertura de portos, metalúrgicas, edificações etc., como o epicentro profissional de estradas e rodagens. Sob a dominação ideológica imperialista–colonialista, internalizada pelos donos do poder, as ideias de ordem e progresso, tiveram ampla permeabilidade na consolidação do padrão ideológico de Nação. Ao tomar como modelo as nações que se desenvolveram da pilhagem das demais, e sem entender os seus males de origem (BOMFIM, 2008), as classes dominantes brasileiras, por meio do Estado, conciliaram a subordinação externa com a manutenção do seu status quo, ao mesmo tempo que buscavam justificar, na ideologia do desenvolvimento, tal malogro. Sob o colonialismo continuado, o racismo assume a forma da mais sofisticada arma ideológica de dominação, ou seja, o escravismo pleno (MOURA, 1994). Constitui–se, na territorialidade colonial, a ideia força de que a presença de raças inferiores – negros e indígenas – era a causa do subdesenvolvimento nacional, condição coercitiva de produção de um consenso que permeou a organização social em geral na realidade brasileira. Nisso se assentou a institucionalidade da eugenia e do higienismo, no esforço de eliminação da “mancha negra”, sob a influência do racismo pseudocientífico (SCHWARCZ, 1993). O que significou a marginalização da população negra, não apenas do sistema educacional, mas em todos os setores mais significativos da sociedade cortada pelo sentido desigual de classe no acesso, permanência e direito à vida. Isto ocorria em consonância com a repressão policial e diversas formas de perseguição por parte das entidades eugênicas, as quais internalizam a perspectiva de desenvolvimento e humanidade desenhada desde o colonialismo (MOURA, 1994; COSTA, 2007). A internalização colonialista do conhecimento, forjada desde os interesses centrais, erigiu as bases epistemológicas da universidade brasileira, cujos intelectuais reproduzirão largamente as ideias importadas, voltando–se pouco para a produção de um conhecimento próprio, ancorado nos interesses nacionais (BOMFIM, 2008; FERNANDES, 2006). 102


O século XX, em âmbito global, foi mediado por revoluções e, também, por fascismos e ditaduras militares. Na América Latina e Caribe, sob as bases coercitivas das ditaduras militares, que encontramos as consolidações mais amplas de sistemas de educação. A educação militar retirou da escola o compromisso democrático com a realidade histórica das desigualdades estruturais. A moral e cívica edificou, entre 1964 a 1984, a violenta narrativa de uma pátria amada, idolatrada, que seguiu na mesma trilha da ordem e progresso presente no início do século, cujo salve era a ode ao desenvolvimento e modernização – à custa da marginalização de ampla maioria da classe trabalhadora. Assim, as reformas educacionais regidas pela batuta do governo militar ocorrem em um contexto de intensificação da dependência e, consequentemente, da superexploração. Isto, mediado pelo coercitivo processo de desaparecimento político e de torturas que, quando resistiam, eram obrigados a migrar forçosamente. Para Marini e Speller (1977), tais reformas demarcam as características que definem um sentido mercantil de educação que, além de excludente da maioria, é também, um mecanismo de apropriação da riqueza socialmente produzida. Ao assumir uma forma expressamente mercantil, alheia às necessidades reais de grande parte dos/das que compõem a classe trabalhadora, refaz as rotas contínuas das ideias (neo)liberais, (neo)desenvolvimentistas no continente. Nas palavras dos autores: O liberalismo em matéria educativa, praticado pelo regime militar, se manifesta: a) na entrega da educação superior à empresa privada, o que conduz à privatização do ensino e converte o ensino em negócio; b) liberação da matrícula, que somente encontra limites na capacidade do capital privado para criar oportunidades de ensino e na capacidade dos estudantes em aproveitá–las (entende–se aqui que essa capacidade é tanto intelectual como sócio–econômica); e c) na adequação entre a oferta e demanda da mão–de–obra técnica e profissional segundo o jogo do livre mercado (MARINI&SPELLER, 1977, p. 13)

No entanto, não é somente o processo desigual do ensino “superior” que nos revela o caráter desigual da educação. Também o retrato da educação básica brasileira atual nos dá pistas sobre os elementos constitutivos de uma política educacional pública conduzida para a condição estrutural de superexploração. Segundo o Censo da Educação Básica (BRASIL, 2019; 2007): 103


– São 180,6 mil escolas de educação básica (infantil, fundamental I e fundamental II), com quase 48 milhões de matrículas, sendo que 80% destas, estão na rede pública. – 70% do total de escolas atende a creches e ensino fundamental (109.6440), e tem–se apenas 28.860 escolas cobrindo o ensino médio. 5 – Enquanto o ensino regular teve sua matrícula reduzida, o ensino profissional cresceu em 28,3%, chegando a um total de 623 mil matrículas; – A Educação de Jovens e Adultos, por sua vez, reduziu em média, 7,7%, contando com 3,3 milhões de matrículas. Nesta modalidade, a reflexão que merece ênfase é a do número de estudantes com menos de 20 anos (mais de 1 milhão de jovens matriculados). As mulheres da EJA têm majoritariamente mais de 30 anos e estão no ensino fundamental I. Na EJA também a questão de raça e etnia prevalece, sendo pessoas pretas e pardas prevalecentes em 75,8% no ensino fundamental e 67,8% no ensino médio. Miguel Arroyo reforça a tendência contemporânea da EJA como espaço de segregação, afirmação da exclusão, ausência de projeção de futuro, dada a realidade social concreta do mundo do trabalho (ARROYO, 20076). – Quase 89% das matrículas gerais estão efetuadas no perímetro urbano. Aqui merece destaque o fechamento de escolas do campo no período de 2002 a 2009, chegando à marca de 24.396 escolas a menos no período de 2002 a 2009 (BRASIL, 2019). – A taxa de distorção idade–série é elevada tanto no fundamental como no ensino médio 23,4% e 26,2% respectivamente. É a denúncia real de que educação só é prioridade se a sobrevivência estiver mantida (ARROYO, 2007). Quanto ao trabalho docente na educação básica, os dados também chamam a atenção, pois segundo o estudo do DIEESE (2014), Transformações recentes no perfil do docente das escolas estaduais e municipais de educação básica, evidencia–se a tônica 5

Um subsídio e tanto para a reflexão das distorções series–idades e a intencional demarcação da educação profissional e Educação de Jovens e Adultos (EJA) como mecanismos substitutos da educação regular. Para esta reflexão ver ARROYO (2007). 6 Nas palavras de Arroyo: “as velhas dicotomias, as velhas polaridades da nossa sociedade (e um dos pólos é o setor popular, os trabalhadores, e agora nem sequer trabalhadores) não estão se aproximando de uma configuração mais igualitária, ao contrário, estamos em tempos em que as velhas polaridades se distanciam e se configuram, cada vez mais, com marcas e traços mais específicos, mais diferentes, mais próprios. Mais distantes. A juventude popular está cada vez mais vulnerável, sem horizontes, em limitadas alternativas de liberdade” (ARROYO, 2007, p. 2).

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da precarização do trabalho na rede básica de educação. Vejamos: – São 2,2 milhões de docentes em 2019. – 32% trabalhava em uma jornada de 20 a 25h semanais, enquanto 46,8% trabalhavam de 36 a mais de 40h semanais. – O rendimento salarial real médio do país é de R$1.762,23. As regiões Norte e Nordeste ficaram abaixo desta média, e Sudeste, Sul e Centro–Oeste, acima. – A renda média dos professores estaduais e municipais em relação às demais profissões é 50% inferior na docência estadual e 83,8% inferior no plano municipal7. Analisemos também parte dos dados da educação “superior” (Censo da Educação Superior de 2018): – Apenas 21,7% dos jovens em idade universitária (de 18 a 24 anos) estavam matriculados em algum curso universitário em rede pública ou privada (BRASIL, 2019). – Existem 2.448 instituições de ensino superior no país e, ao contrário da educação básica, majoritariamente pública, a supremacia no número de instituições e matrículas é do ensino privado. Dessa forma, na era do negócio da educação são: 296 instituições públicas e 2.152 instituições privadas. Das quase 11 milhões de vagas ofertadas em 2017, apenas 823.843 eram públicas e 9.955.243, privadas. – Quanto aos turnos de estudo, enquanto instituições públicas têm 64.5% dos cursos ofertados pela manhã, as instituições privadas ofertam quase 70% de seu total à noite, situação que expõe que o ensino médio e superior são, ainda, uma realidade pouco concretizável para a classe trabalhadora (BRASIL, 2019). – No plano do trabalho, são 381 mil docentes, distribuídos 45% no setor público (171.231 professores) em comparação a 55% no setor privado (210 mil), em 2017. Outro paradoxo: se a educação privada detém o maior número de matrículas do ensino superior, o número de docentes deveria ser muito maior, como já apontavam Marini e Speller em 1977. Nesse sentido, mais uma vez a mercantilização da educação expõe os vínculos com a superexploração da força de trabalho no ensino superior priva7

A distância entre esta remuneração e mínimo projetado como digno pelo DIEESE (de R$4.420.11 em julho–2020) expressa as dimensões da superexploração, impondo a muitos profissionais que encontrem outras funções para complementar suas rendas, seja no setor educativo ou fora dele.

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do, assim como se verifica na rede básica de educação 8. Isto, somado ao aumento contínuo da educação à distância, revela a faceta contemporânea de um modelo educativo que anuncia a morte dos encontros, da centralidade da educação pública e de qualidade e revela, nos ultrajantes movimentos de propaganda sobre a mercadoria educação, o “bom negócio” do financiamento educativo em diversas carreiras. O retrato ampliado desse processo define, quando tratamos da educação superior, que chegar nela, fato bastante embarreirado se mantida idade– série, é uma condição de classe e de raça no Brasil. E chegar, não significa permanecer e concluir. Houve nas primeiras décadas dos anos 2000, a explicitação desse movimento de contraditória e disputada, ampliação do acesso à educação superior em dois processos: 1) o Programa do Governo Federal de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais Brasileiras (REUNI)9 de 2007; e 2) a Lei 12.711/2012 (BRASIL, 2012) 10, conhecida como “lei das cotas”. Ambos têm a intenção de corrigir os desvios históricos sobre o acesso, o que, infelizmente, está longe de acontecer. Dentre as contradições, es8

O fato da desigualdade ser mais explícita na educação básica e superior privada, não significa dizer que a educação pública “superior” garanta direitos e qualidade no campo do trabalho. O que vale, de fato, é a totalidade da fotografia. E nesta, os/as trabalhadores/as da educação pública “superior” também se inserem em um articulado movimento desigual que compõe a média salaria geral do país. Entre os salários mais altos de quem tem longo tempo de carreira e os mais baixos, dos/das contratadas, tem–se um tensionamento para baixo dos rendimentos salariais, demarcados pela trajetória intensiva da superexploração da força de trabalho no Brasil (em intensidade, prolongamento das jornadas e, consequentemente, no aumento dos adoecimentos físicos e psíquicos). No entanto, essa diferença tem permitido, na propaganda das reformas conservadoras, criar um cenário de disputas e concorrências desleais para a realidade geral da educação, como se o/a professora do ensino superior tivesse condições de trabalho melhores. 9 Foi instituído pelo Decreto Presidencial 6.096, de 24 de abril de 2007, com o objetivo de dar às instituições condições de expandir o acesso e garantir condições de permanência no Ensino Superior. 10 De acordo com essa lei, as vagas reservadas às cotas (50% do total de vagas da instituição) serão subdivididas — metade para estudantes de escolas públicas com renda familiar bruta igual ou inferior a um salário mínimo e meio per capita e metade para estudantes de escolas públicas com renda familiar superior a um salário mínimo. Em ambos os casos, também será levado em conta percentual mínimo correspondente ao da soma de pretos, pardos e indígenas no estado, de acordo com o último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O que não se efetiva, pois sendo a população de pretos e pardos no Brasil superior a 50% da população total, não se aplica uma reserva de vagas correspondente, pois impera a lógica da seletividade e não a da universalização do acesso.

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tão as parcas condições de permanência e conclusão dos cursos pelos matriculados, explicitando o afunilamento e seletividade na concretização da política. Nas universidades públicas, as políticas de permanência, restritas e precarizadas, desconsideram os critérios de entrada de pessoas negras e indígenas. Nesse sentido, dão passo às políticas afirmativas em geral, não havendo uma política de permanência específica para os estudantes cotistas. Temos, assim, um processo de educação “superior” que contribui para destruir e apagar o sentido da política de ação afirmativa para o ingresso desses sujeitos nas universidades e para instituir uma seletividade meritocrática, vinculada à produtividade e desempenho estudantil, desembocando na mesma definição histórica da universidade pública brasileira como lugar para poucos, sem diversidade de classes, de raças e etnias, para a manutenção do domínio do capital sobre o trabalho. Já na rede particular, a permanência está condicionada ao pagamento das mensalidades, ao acesso ao financiamento estudantil e a condições de sobrevivência que, para grande parte dos estudantes–trabalhadores, significa a conciliação de longas jornadas de trabalho e estudos. Os elementos destacados acima mostram que o “funil” que se apresenta no sistema educacional brasileiro expressa, não apenas, a histórica marginalização de grande parte da classe trabalhadora – em particular negros e indígenas – do acesso à educação, como, também, uma intencional padronização esquemática de saberes cristalizados na ordem hegemônica. 2. DAS LUTAS SOCIAIS À EDUCAÇÃO FORMAL: A EDUCAÇÃO POPULAR11 COMO PRÁXIS, LUTA POR DIREITOS E JUSTIÇA. A história da luta social latino–americana nos remete a doloridos processos de violação–destruição culturais, vivenciados no período de invasão colonial e em suas respectivas derivações (BÁEZ, 2010). Ao longo de mais de cinco séculos, a produção de hegemonias foi realizada, não sem resistências contínuas, do Norte ao Sul do continente. 11

Sobre o estudo da educação popular utilizaremos, ao longo de todo o texto, como referências diretas e indiretas: KOROL, C. (2016); PALUDO, C. (2015); JARA, O. (2019); TRASPADINI, R. (2016, 2018, 2006); DOS SANTOS, F. H. (2017); FREIRE, P. (1970); ALEJANDRO, M.; ROMERO, M. I.; VIDAL, J. (2012); BRANDÃO, C. (2007); CEPIS (2008).

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As derrotas, na esteira da luta de classes, dependeram, em muito, do teor das armas de morte massivas utilizadas contra os povos. Dessa destruição cultural violenta, entre o soterramento e ruptura concreta do que se encontrou, e a produção da resistência de forma reiterada, insistente, é que se erguem as experiências da educação popular na América Latina (RODRIGUEZ, 2013; KOROL, 2016). Na química12, os radicais livres, ao apresentarem o caráter ímpar dos elétrons no corpo, tendem a gerar oxidação, envelhecimento e morte celular/ molecular. Já na biologia, um agente externo encontra um hospedeiro para introjetar–se nele como corpo estranho, como no caso dos vírus, bactérias e parasitas em geral. Ao introjetarem–se em outros corpos, esses necessitam reagir, ou então, a doença progride e o corpo definha. Os intrometidos parasitas são hóspedes mal vindos à casa sem serem convidados. Na antítese da química e da biologia, ou seja, no contraponto orgânico natural, encontra–se a produção social da luta pela libertação. A trajetória histórica do DNA da luta social na América Latina, aberta contra as mazelas do capital ao longo dos últimos 520 anos, expõe a radicalidade como premissa de sobrevivência, existência e resistência. Na sociologia da revanche, da construção social e política de libertação, a figura do radical livre apresenta–se como abrigo das resistências. No plano social, o humano é o corpo–mente–sentido que hospeda, no processo par do encontro de classe, a consciência das resistências, ainda em meio à invasora e contínua tendência à colonialidade do ser, do saber e do poder (QUIJANO, 2000). Na estrada da colonização e do escravismo, a condição desumana a que parte do humano foi relegado, insiste, resiste e preside outros processos contrários à ordem da dominação – (MOURA, 2014; FREIRE, 1970; FALS BORDA, 2015). Enquanto na química os radicais livres são uma ameaça orgânica ao bem estar físico dos seres vivos, na sociologia e na política latino–americanas, os sujeitos políticos, no ato de radicalidade de luta pela libertação, são corpos 12

O objetivo com esse exercício é meramente didático, mas toma em conta também que, na produção ontológica dos povos pré–colombianos, a relação entre ser, natureza e demais seres era muito mais harmoniosa que a separação ocorrida entre a ciência ocidental moderna. Basta analisar o calendário Maia, Asteca e a história de Ollantaytambo.

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em movimento de aprendizagem contínua, e em parte, reativos à trágica história do capital. A radicalidade é o anticorpo político e social ante a daninha história de opressão–escravização–superexploração. Na política se faz revanche ao parasita social, o capital, que se apodera da vida social, da força vital do trabalho e da natureza viva, como se tudo fosse mercadoria. É na coisificação desses corpos orgânicos – e na padronização violenta de uma América Latina ao serviço da Europa e dos EUA – que o parasita do capital tende a não reinar sozinho nos corpos que habita e enferma ao longo da história passada e presente no continente. A educação espelhará, e servirá de reflexo, os males dos séculos de dominação. Mas não sem disputas. No Brasil, a presença da experiência como consciência e, posteriormente, da materialização das resistências e revoluções como transições possíveis, forjaram – na luta pela sobrevivência – os sujeitos radicais em busca de liberação, ante a opressão–escravização (1500–188) e posterior opressão–superexploração (1888–até o presente). Em todo o continente, a produção material da radicalidade é um ato educativo persistente. Radicalidade na manutenção de idiomas, de alimentações, de indumentárias, de culturas e tradições cujos sentidos de tempo, de vida, de ciência, de natureza, persistem ante à oxidação padronizadora do capital sobre o trabalho. Sobreviver mantendo a herança social das resistências, é um princípio da luta social latina. A subversão (FALS BORDA, 2015) e a libertação (FREIRE, 1970) forjam os temas–problemas da conscientização de classe em si e para si. Nos termos de Fals Borda, (2015, p. 288): [...] la palabra subversión es una de aquellas que no se entienden sino para referirse a actos que van en contra de la sociedad, y por lo tanto de signa algo inmoral. Sin embargo, llega el momento de preguntarse: ¿cuál es la realidad en que se mueve y justifica la llamada subversión? ¿Qué nos enseña sobre este particular la evidencia histórica? ¿Qué nos dicen los hechos actuales sobre los “subversores”, “antisociales” y “enemigos de la sociedad”?

E segue o sociólogo colombiano (BORDA, 2015, p. 392) [...] la subversión se descubre como una estrategia mayor y un proceso de cambio social y económico visto en toda su amplitud, y no sólo como una categoría para analizar la conducta divergente o los grupos margina109


les producidos por la industrialización.

A Educação popular (EP) na América Latina se inscreve, na diversidade que compõe a luta de classes – indígena, quilombola e camponesa – na radicalidade da existência e manutenção do modo de ser próprio, em meio ao movimento destrutivo de reiteração da ordem mercantil capitalista. Do sujeito coletivo latino–americano, em seus múltiplos tons, a radicalidade subverte a ordem e gera, em meio às cotidianas coisificações (KOSIK, 1969; LOWY, 2009), uma desordem plena de si mesma, plena do popular que se educa na luta, para depois se educar na consciência histórica sobre suas raízes presentes no hoje. Por isso, reitera Freire (1970), que toda radicalização frente à ordem opressora – superexploradora – do capital, é um promissor legado de humanização emancipadora. Um antepor–se ao sectarismo a partir da vida cotidiana em pauta, em movimento contraditório entre o dever ser oprimido e o poder ser liberto, como destino produzido como inédito viável. Sustenta FREIRE (1970, p. 14): O radical, comprometido com a libertação dos homens, não se deixa prender em “círculos de segurança”, nos quais aprisione também a realidade. Tão mais radical, quanto mais se inscreve nesta realidade para, conhecendo–a melhor, melhor poder transformá–la. Não teme enfrentar, não teme ouvir, não teme o desvelamento do mundo. Não teme o encontro com o povo. Não teme o diálogo com ele, de que resulta o crescente saber de ambos. Não se sente dono do tempo, nem dono dos homens, nem libertador dos oprimidos. Com eles se compromete, dentro do tempo, para com eles lutar.

É no forjar radical de homens e mulheres livres que se apresenta a EP, ao mesmo tempo como método, conscientização, práxis, resistência e revolução. Cada um desses temas e seus sentidos depende, no tom da luta, da realidade concreta da luta de classes presente nos territórios e o teor a partir do qual seus inimigos tecem a coerção e o consenso para conter a rebeldia. Isto ocorreu em todo o período histórico que vai do escravismo–colonialismo, passa pelas guerras de independências e chega na formalização dos Estados Nacionais latino–americanos. Momento este em que a educação formal e a popular atritam– se, mesclam–se, degeneram e regeneram o sentido do popular à luz do ato educativo opressor ou libertador. 110


No Brasil, ao longo de todo o século XX, à medida em que o nacional– desenvolvimentismo de Vargas se assentava no modelo urbano–industrial (1930–1945), em relação harmoniosa com o imperialismo estadunidense e seu bloqueio contra o perigo comunista, a história da educação formal correu em paralelo com as contestações, lutas, construções sociais. E desse movimento de apresentar–se como os visíveis, em uma sociedade que teima em desconsiderar sua existência, é que a EP se apresenta como brecha, contestação, movimento para além da exclusão. Herdeiros das lutas sociais pelo direito à vida, à terra e à outra concepção de humanidade – e suas relações criativas com o que entendem como o sentido de ser e natureza – camponeses, povos indígenas e quilombolas na América Latina e no Caribe, apresentaram seus processos de contestação à ordem. Ora com lutas abertas nas ruas, ora como guerra de guerrilha, em vida orgânica na selva, como viabilidade histórica contrária à tirania da superexploração e da exclusão. A EP, no entanto, parece estar fora da educação formal como resultado da intencionalidade do capital contra e sobre o trabalho. No entanto, em essência, como revanche, está sempre dentro, como resultado histórico daqueles e daquelas que chegam ao ensino formal e carregam consigo suas histórias, trajetórias e feituras do ser, sentir e viver como popular. A educação formal insistirá em não os(as) tomar em conta. Elas/eles resistirão ao ataque, enquanto produzirem vida para além da escola. A EP é o que reveste de sentido a luta social e de classes no Brasil ao longo do tempo. Ela é vinculada à experiência camponesa, mas também à urbana, sendo que nesta se destaca a atuação dos movimentos negros ao longo do tempo. Em ambas, atende as necessidades daqueles/as formalmente analfabetos/as ou com pouca escolaridade. No entanto, no plano real, a educação popular hospeda o DNA da resistência. Da luta por direitos – à moradia, à educação pública, à educação do campo, à terra, à alimentação, entre outras – à luta elei toral, de disputa do institucional, passando pela luta pela sobrevivência no campo do trabalho formal ou informal, lido como legítimo e/ou legal ou não. A EP se apresenta como o reverso do não poder dizer a palavra: Grita, dança, canta, cria culturas populares de contestação à ordem desigual. E dessa elaboração criativa, porque popular, irrompem novas personagens de históricos sujeitos em cena na luta social brasileira. A herança da educação popular é a luta 111


social. E a luta social no caso brasileiro demarca a construção de uma nação e seus nacionalismos, que deixa de fora parte expressiva dos seus, como apontou Hobsbawm (1999). 3. EXPERIÊNCIAS DE EDUCAÇÃO POPULAR NA PRÁXIS DOS MOVIMENTOS SOCIAIS BRASILEIROS A educação popular protagonizada pelos movimentos sociais camponeses , indígenas e negros no Brasil, está fora dos livros de história, de geografia e de literatura formais da educação básica e superior. Mas é inerente à vida cotidiana de milhões de trabalhadores/as que vivem de dar conta de sobreviver por dentro, ou por fora, da lógica formal assalariada. As experiências dos movimentos negros brasileiros, demarcam a revanche daqueles/as cuja experiência histórica, assentada no racismo, perpassa pela ampla política de marginalização e dominação. No início do século XX, a experiência da Frente Negra Brasileira – (FNB, 1931–1937) – e a sua atuação no sentido da educação do povo negro no Brasil precisa ser lembrada como pioneira na educação popular. Em que pese as contradições da Frente e o caráter conservador dos seus principais dirigentes, em um momento em que o racismo pseudocientífico influenciava fortemente as instituições no país, ela teve uma incursão importante na reivindicação de igualdade e da inserção social da população negra, então recém saída da escravidão. A FNB criou uma escola exclusiva para negros e negras, e também teve iniciativas que extrapolavam a educação formal, com a criação de espaços comunitários de expressão artística e organização política etc. (BARBOSA, 1998). A FBN foi encerrada em 1937 por Getúlio Vargas, mas no tempo em que esteve atuante, logrou concretizar projetos importantes com uma significativa filiação a nível nacional, cerca de duzentos mil inscritos. Além disso, criou diversas Frentes Negras estaduais, cujos projetos eram semelhantes, como a Frente Negra Pernambucana, fundada pelo poeta Solano Trindade (BARBOSA, 13

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Para um debate sobre movimentos sociais na América Latina sugerimos: SVAMPA, Maristela. Protesta, Movimientos Sociales y Dimensiones de la acción colectiva en América Latina(2009). Disponível em: <http://www.maristellasvampa.net/archivos/ensayo57.pdf>. Acesso em : 5 set. 2020. E GHON, Maria da Gloria. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. SP: Editora Loyola, 5ª. edição, 2006.

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1998). Assim como os demais movimentos sociais, os movimentos negros foram, ao longo da história do Brasil, perseguidos e interrompidos em seus objetivos e atuação. Mas o surgimento de novos, na esteira e no resgate da memória– história dos anteriores, desde Palmares, tem sido a resposta contra o autoritarismo e racismo que expressam a atuação política e ideológica das elites brasileiras. Todos14 eles terão a educação como pauta. As propostas do Teatro Experimental do Negro – TEN – (1944– 1961), criado por Abdias do Nascimento, iam no sentido de uma atuação política que cobrava do Estado o dever de garantir o direito à educação a todos os cidadãos. Pautava, assim, o “[...] ensino gratuito para todas as crianças brasileiras, admissão subvencionada de estudantes nas instituições de ensino secundários e universitário, de onde foram excluídos por causa de discriminação e da pobreza resultante de sua condição étnica” (NASCIMENTO, 1978, p. 193). De acordo com Gonçalves e Silva (2000, p. 149), há no TEM, um entendimento de que a educação e a cultura deveriam estar entrelaçadas. Sendo assim, Entendem seus idealizadores que a escolarização, pura e simples, não bastaria para criar aquilo que Guerreiro Ramos chamou de “estímulos mentais apropriados à vida civil”. Segundo ele, os negros desenvolveram um profundo sentimento de inferioridade cujas raízes estão na cultura brasileira. Para libertá–los desse sentimento não basta simplesmente escolarizá–los; seria preciso produzir uma radical revisão dos mapas culturais, que as elites e, por consequência, os currículos escolares, elaboraram sobre o povo brasileiro.

Essa perspectiva de atuação sobre a educação também se destaca no Movimento Negro Unificado (MNU), criado em 1978, e que tem um papel fundamental não apenas em pautar o acesso à educação pela população negra, mas em reivindicar que essa educação seja de fato emancipadora e não reprodutora da alienação, disputando, dentro das instâncias formais a condução de um processo de educação com ensino da história afro–brasileira, a execução de ações antirracistas, a denúncia e combate aos conteúdos racistas dos livros didáticos, 14

Além da FNB (1931), cabe destacar a Associação Cultural do Negro (ACN), criada em São Paulo em 1954; Instituto de Pesquisa e Cultura Negra (IPCN), constituído no Rio de Janeiro em 1975; e o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNU) em 1978.

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etc. (GONÇALVES; SILVA, 2000). Tal movimento teve, também, um papel fundamental na defesa das ações afirmativas para inserção de negros/as nas universidades públicas, implementadas recentemente. A luta dos movimentos negros organizados pelo direito à educação formal, para que o Estado cumpra o seu dever de garanti–la, esteve sempre no centro dessas organizações. Entender a perspectiva da EP enquanto parte da luta política pelo acesso ao direito social, pelo direcionamento da educação que se quer – antirracista, anticolonialista, para a desalienação e emancipação – possibilita entendermos que, mesmo quando aponta para a inserção formal e institucional, o processo é popular. Reivindica e se faz pela história e resistência daquelas e daqueles excluídos do formal/institucional. Atualmente, isso se expressa de maneira contundente nos cursinhos populares preparatórios para o vestibular.15 Face à ausência de universalização do acesso à educação, estas estratégias demarcam a organização social e comunitária para que jovens negros/as, e moradores/as das amplas periferias de todo o Brasil, tenham chances maiores de ingressar na Universidade. Mas eles são, sobretudo, espaços de formação e construção de perspectivas calcados também nas experiências e necessidades desses sujeitos, e nisso se explicita o seu caráter popular. A trajetória da luta pela educação, por parte dos movimentos negros ao longo da história do Brasil, explicita o processo de acúmulo e amadurecimento no qual o próprio sentido educativo, vai se ampliando junto à crítica da sociabilidade que cria a exclusão e o racismo. O sujeito principal da educação popular é coletivo. Apresenta–se, na consciência em si, em um contínuo processo de formação de consciência para si. Enquanto sujeito coletivo, educa–se enquanto luta. Essa razão dialética explicita que sua pauta não é somente a do direito, ainda que o reivindique, e sim a da justiça. Como tal, há a compreensão de que a luta pontual necessita afinar–se com um outro projeto societário em meio à compressão violenta da ordem vigente.

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Destes, podemos citar a experiência do EDUCAFRO e da UNEafro Brasil– União de Núcleos de Educação Popular para Negras/os e Classe Trabalhadora. Ambos com ações políticas e sociais que integram cultura, educação, organização comunitária etc., na luta contra a exclusão, a exploração e o racismo. Ver mais em: <http://www.educafro.org.br/site/conheca–educafro/> e <https://uneafrobrasil.org/uneafro–brasil/> Acesso em: 07 set. 2020.

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Ao menos para parte dos movimentos sociais contemporâneos – que não se confundem com o Terceiro Setor protagonizado pelas ONG´s, dado que sua herança é a da luta pela sobrevivência, essa perspectiva de atuação social comprometida com a transformação é a base na qual se finca a reivindicação e desenvolvimento de concepções de educação para além da manutenção e/ou inserção na ordem estabelecida. Nesse sentido, podemos elencar também as experiências de educação popular que se desdobram da luta pela terra, cujo processo educativo é da práxis reflexiva e revolucionária (VÁZQUEZ, 2007), como as do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil (MST), do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC). Estes expressam uma práxis que envolve uma reflexão enquanto atuam e uma atuação refletida. Portanto, suas pautas, como a luta pela terra, em plena expansão da fronteira agrícola do agronegócio, ganham, ao longo do tempo, a necessária apreensão de um projeto democrático, soberano e popular. E se conectam com as heranças da mesma ordem existentes em Canudos (Bahia, 1896–1897); Contestado (Santa Catarina e Paraná, 1912–1916); Porecatu (Paraná, 1946–1951); dentre outros. Também das lutas organizadas sem grandes movimentos sociais consolidados, mas com intensa apreensão sobre o vivido: as quebradoras de coco do Tocantins; as mães na luta pela justiça por seus filhos desaparecidos; os movimentos que brotam das ruínas da exclusão, os sem direito à vida mercantilizada. As experiências recentes de educação, cultura e produção de vida, remanescentes do século XX, originadas para e desde o popular, como as protagonizadas pelos movimentos sociais – como TEN, MNU, MST, MMC e MPA –, nos brindam bons exemplos da recuperação da ontologia do ser social para além da forma mercadoria na América Latina. Vejamos alguns exemplos da centralidade da luta social na educação popular: Entre 2018–2019, a soma da produção de 362 famílias de 15 assentamentos do MST no sul do país, chegou à cifra de 16 mil toneladas de arroz or gânico. Isto, somado à mais de 22 mil sacas de sementes limpas de venenos. A maior produção de arroz orgânico da América Latina e o Caribe, em apenas 3.456 hectares, mesclados com outros modelos agrícolas vinculados à educação 115


agroecológica (RAUBER; MST, 2019). Um integrante do MST do setor de produção, Zarref (2019), relata que a agroecologia mais do que uma técnica presente somente nos espaços com forte escala de produção vinculada ao processo produtivo, de organização coletiva, das cooperativas agrícolas: este modelo abarca uma concepção de desenvolvimento que envolve todas as esferas da vida. A agroecologia é um modo de organização da vida familiar e coletiva, em que a produção se harmoniza com outro jeito de conceber a natureza e as relações sociais vinculadas a ela. É, por tanto, uma matriz de produção em transição, dos conservadores processos à renovadas aprendizagens educativas no âmbito dos acampamentos e assentamentos do MST (ZARREF; MST, 2019). Na agroecologia, a educação popular pulsa como movimento de negação da ordem mercantil via uma práxis contestatária e de reflorescimento tanto do humano, como deste em sua relação com a natureza. Via educação popular, a agroecologia tensiona na via de um outro sentido técnico de educação formal. Nas escolas, nos cursos de formação e nas aprendizagens de socialização entre diferentes organizações, as trocas explicitam um valor de uso muito superior à ideia força mercantil do valor de troca. Outro importante exemplo da educação popular, que reorienta nas disputas cotidianas como práxis o sentido de educação formal, para quê e para quem, está a experiência do Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil (MMC). Tal experiência engloba a produção de alimentos, o cultivo de sementes e o combate de todo tipo de ação cotidiana referenciada no machismo, cujas raízes remontam à força do patriarcado. Na afirmação de princípios consolidadores de novos valores – na consigna de Che Guevara e de Alexandra Kollontai e a necessidade do nascimento da nova mulher e do novo homem – as mulheres camponesas aprendem, enquanto dialogam, estudam e produzem vida cotidiana, que a história do papel da mulher na sociedade é muito maior do que a subjugação efetivada na lógica da colonização em diante. Historicidade, relacionamentos e aprendizagens coletivas, tornam–se o centro de uma produção de alimentos arraigada em outras dinâmicas da divisão social do trabalho na família e na terra. O mundo camponês, assim como o cotidiano das cidades, está impregnado de violências objetivas e subjetivas orientadas ao condicionamento da mulher como refém da autoridade e/ou autorização 116


dos homens, sejam eles patrões ou maridos. A mudança na narrativa, patriarcal, de meu homem, para a construção de um sentido comum de companheirismo, apresenta–se no MMC como práxis real cotidiana. Aprender a dizer, aprender a fazer, aprender a reviver e ressignificar os encontros. No documento base de fundamentação de sua práxis (2007), encontramos: A missão é a libertação das mulheres trabalhadoras de qualquer tipo de opressão e discriminação. Isso se concretiza nas lutas, na organização, na formação e na implementação de experiências de resistência popular, onde as mulheres sejam protagonistas de sua história. Lutamos por uma sociedade baseada em novas relações sociais entre os seres humanos e deles com a natureza (MMC, 2007, p. 1).

Outro destaque similar ao do MST e do MMC é o do Movimento dos Pequenos Agricultores. No livro “Trincheiras da resistência camponesa sob o pacto de poder do agronegócio” (2017) Frei Sergio Görgen, expõe que a luta dos movimentos no campo é em um duplo sentido: 1) contra as políticas venenosas do agronegócio; 2) a favor de um novo modelo de desenvolvimento assentado no plano camponês, cujas raízes históricas são as das resistências latino–americanas. Nas palavras do Frei GÖRGEN (2017, p. 16, grifo nosso): “O MPA, assim como um rio, tem muitas nascentes, surgiu em vários lugares do país na mesma época e pelas mesmas razões, construído pela força da luta, pela pressão da base, pela vontade da militância e para mudar a situação vivida pela classe camponesa”. É do fazer–se na luta, repensar–se a partir da aprendizagem explicitada na cotidianidade de defesa de um outro sentido de humano, de natureza e de produção, que a educação popular que brota do MPA revigora o sentido de que há formalização da experiência ainda quando, institucionalmente, não se reconheça. Na aprendizagem manifesta na cultura popular camponesa, os desafios que se abrem, na produção do novo em meio ao velho modo hegemônico que se espraia de forma onipotente são diversos: a) produção diversificada; b) produção para o autoconsumo; c) produção com baixo custo; d) produção da própria energia; e) o valor do trabalho; f) produção dos princípios da agroecologia (GÖRGEN, 2017). Juntas, estas experiências demarcadoras do sentido de latino–americani117


dade forjado na luta pela terra ou pela dignidade – de uma trajetória histórica de luta pela terra no Brasil –, reforçam a partir de um processo cotidiano de aprender a aprender (FREIRE, 1987), que a educação popular ganha expressão e comunicação a partir do movimento dos corpos em ação reconstrutiva do DNA social latino–americano e caribenho. Mais do que a idealização destas experiências, o que narramos é a possibilidade aberta da revanche, ainda quando isto pareça ser impossível. Das contradições do modo de produção ancorado na propriedade privada, nascem movimentos que se apresenta, ao longo do tempo, como sua antítese. Ora mais evidente, ora menos, a depender da correlação de forças presente entre o viver–sobreviver, e o viver–bem viver. No desenho histórico da trajetória de lutas – ao longo dos séculos XV em diante no Brasil –, também se apresentam sujeitos, religiosos e/ou militantes sociais, que se colocaram a serviço das experiências populares. Irmã Doroth16, Padre Josimo17 e Padre Gabriel18, por exemplo, pagaram com suas próprias vidas por defenderem a luta social. Dom Pedro Casaldáglia 19 teve uma vida larga de luta ao longo do velho Chico. 20 Esteve ao lado, aprendeu junto, enquanto caminhou defendendo a saga das marchas camponesas e indígenas da região. Assim também o foi com Chico Mendes 21 e demais defensores e defensoras das lutas sociais e da vida para além de sua apropriação privada para o giro do capi tal. 16

Dorothy Mae Stang, irmã Doroth, membro da CPT, foi assassinada em uma emboscada em 2005 com cinco tiros a queima roupa, em Anapu, Pará. 17 Padre Josimo Morais Tavares, conhecido como o caminhante, padre, negro de chinelos surrados e boa prosa, também integrante da CPT, foi assassinado em 1986 em Tocantins, Araguaia. Assassinado a queima roupa com 2 tiros. 18 Padre Gabriel Felix Roger Maier, morto em Cariacica–ES, em 1989, com crime prescrito após mais de 30 anos sem punição. 19 Um dos mais importantes nomes da defesa dos povos amazônicos e dos sistemas ambientais, morreu em 2020 após uma vida inteira entregue ao trabalho social. Único entre os aqui citados que resistiu com vida às contínuas barbaridades dos latifundiários, violências concretas com ameaças veladas ou explícitas. 20 Rio São Francisco que, como muitos foi agredido pela leitura unívoca e onipotente do desenvolvimento para a lógica de produção e reprodução do capital, tendo como consequência alagamentos, mortes de vidas e de habitats tanto de humanos, como de uma diversidade grande de espécies. A transposição com o nome político institucional de "Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional" narra a saga do desenvolvimento desigual brasileiro. 21 Grande referência da defesa dos povos da floresta e da natureza, Chico Mendes foi mais uma vítima da luta pela terra no Brasil, assassinado nos fundos de sua casa, em 1988.

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A EP floresce dessas sementes germinadas na ação contestatária à violência da ordem do capital. Seja nas escolas de formação sindicais, ou nos cursos de trabalho de base das Comunidades Eclesiais de Base (BETTO, s/d), a EP se apresenta como voz–ação dos que reagem à ação insistente de morte em vida que paira sobre os territórios que são forçados a migrar continuamente. CONSIDERAÇÕES NADA FINAIS O título do presente texto apresenta uma síntese da relação contraditória e complementar que há entre educação popular e educação formal no Brasil. Ancoradas na tradição marxista entendemos que a radicalidade é um ingrediente vital da luta social no passado e no presente. Nos termos de Marx (2010, p. 151–152): A arma da crítica não pode, é claro, substituir a crítica da arma, o poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria também se torna força material quando se apodera das massas. A teoria é capaz de se apoderar das massas tão logo demonstra ad hominem, e demonstra ad hominem tão logo se torna radical. Ser radical é agarrar a coisa pela raiz. Mas a raiz, para o homem, é o próprio homem. A prova evidente do radicalismo da teoria alemã, portanto, de sua energia prática, é o fato de ela partir da superação positiva da religião. A crítica da religião tem seu fim com a doutrina de que o homem é o ser supremo para o homem, portanto, com o imperativo categórico de subverter todas as relações em que o homem é um ser humilhado, escravizado, abandonado, desprezível. Relações que não podem ser mais bem retratadas do que pela exclamação de um francês acerca de um projeto de imposto sobre cães: “Pobres cães! Querem vos tratar como homens!”

Na radicalidade das resistências, buscamos situar o debate da educação popular e da sua importância, na trajetória histórica da luta de classes na América Latina. Ao entendê–la como práxis radical, em meio às contradições inerentes à estrutura capitalista dependente, acenamos no próprio movimentar dos/ das explorados/das e dominados/as contra o imperialismo–colonialismo, que se forja a riqueza da educação popular. Mais do que alfabetizar, letrar, suprir as lacunas deixadas pela excludente educação formal, a EP se faz viva como parte integrante do processo de luta por igualdade, justiça e emancipação. 119


A educação popular é um movimento contínuo de construção–reconstrução em meio às mais desumanas condições de destruição ambiental e ontológica. No fluxo–refluxo da vida, o vento, o fogo, a água e o ar, dão o tom da resistência. Na força dos quatro elementos, a EP ora burla, ora fere, o sentido da educação formal no capitalismo dependente. E no movimento contínuo de dispersão–difusão do seu poder ser, os/as protagonistas da EP não aceitam a rota de desenvolvimento excludente como via de mão única que os/as condena à margem, à morte em vida. Enraizado na EP, o popular expõe sua cultura de luta, e provoca a educação formal sobre a função do saber em meio à ordem da precarização do trabalho. Insiste, na resistência, em expor as veias abertas pela alienação colonialista. Os sujeitos, suas territorialidades produzidas na conformação do popular (como cultura, educação e território), tensionam a ordem do capital, com a desordem da educação popular. Nas bordas dos oceanos Atlântico e Pacífico, movimentos indígenas, negros/as, camponeses e sem tetos, sem pão, dão a tônica da maré de lutas. No vai e vem das ondas, as lutas de lá (Norte), apren dem com as resistências de cá (Sul) e juntas dimensionam o teor tectônico do popular latino–americano. Território vulcânico, de lavas e rochas sedimentadas pelo movimento das placas, a EP forja, no presente, a aliança histórica com o passado de luta. E deixa aberta a aprendizagem sobre o porvir à luz do real vivido. O retrato da educação formal no Brasil, evidenciado pelos dados, mostra o abismo entre a grande maioria da classe trabalhadora, em particular sua parcela mais pauperizada, negros/as e indígenas, e o acesso, permanência e conclusão restritos. A negação do acesso à educação se define em concomitância à consensual e coercitiva ordem colonialista e repressora (LEHER, 2016). Esta, erige–se como um projeto que já nasce destruído, como afirmou Darcy Ribeiro. As muitas reformas, ocorridas ao longo do recente século XXI, apenas acentuaram a destruição e a afirmação do sentido mercantil, de domínio ideológico do capital, sobre os necessários processos de emancipação e libertação populares. Ao trazermos algumas experiências de educação popular no Brasil do século XX e XXI, evidenciamos que, de diferentes modos, os sujeitos coletivos organizados, pleiteiam, historicamente, processos educacionais contrários aos 120


interesses dominantes. Assim, o apagamento da memória–história das suas lutas e a repressão do seu movimento de contestação refletem na invisibilidade, no âmbito da educação formal, da sua presença social e das disputas que lançam sobre as instituições, bem como no silenciamento e reiteradas tentativas de exclusão daqueles e daquelas que trazem consigo o DNA da luta e resistência nas cores latinas. A inserção no formal/institucional gera incômodos ao ordenamento “normal”, excludente e elitista, das escolas públicas em seus diferentes graus de ensino. Tanto estudantes – que com a sua presença impõem a experiência e resistência, às misérias da vida superexplorada e das violências cotidianas, reivindicando saberes que deem conta de explicar e expressar a suas vidas –, como professores/as comprometidos/as com uma perspectiva crítica, articulada com as lutas dos povos e oriundos/as das parcelas mais pauperizadas da classe trabalhadora, expressam a dinâmica desse incômodo e abrem conflitos e disputas de grande importância para a construção de outra perspectiva de educação. Desta condicionalidade brota a EP como revanche histórica, insubordinação, resistência e construção de alternativas à miséria material–espiritual da sociedade burguesa no capitalismo dependente. A educação popular, referenciada na história, projeta a memória de luta de nossos povos. REFERÊNCIAS ALEJANDRO, M.; ROMERO, M. I.; VIDAL, J. ¿Que es la educación popular? Havana: Editorial Caminos, 2012. AMARAL, M. Verbete da superxploração do trabalho. In LUEDEMANN, C.; YOSHIDA, M. M. C. (Org.). Ruy Mauro Marini e a dialética da dependência. São Paulo: Expressão popular, 2014. ______. Balanço da EJA: o que mudou nos modos de vida dos jovens–adultos populares? SP: Revista de Educação de Jovens e Adultos, v. 1, n. 0, p. 1– 108, ago. 2007. BÁEZ, F. A história da destruição cultural da América Latina. São Paulo: Vova Fronteira, 2010.

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DO QUILOMBO ÀS FAVELAS: FACES DO RACISMO TERRITORIAL NA PRODUÇÃO DAS CIDADES* Maria Helena Elpidio1

INTRODUÇÃO A expressão “do quilombo à favela” muito utilizada nos estudos acadêmicos, literários e em conhecidos versos e prosas do universo cultural negro e periférico, expressa como modos de se produzir o espaço definem as vidas e as formas de produzir e se reproduzir em uma sociedade. A produção capitalista do espaço, que tem como base fundante a propriedade privada da terra e a transformação deste bem universal da humanidade, em mercadoria se apoia no racismo estrutural também nas formas de constituição dos espaços urbanos. Daí, lidamos com uma dura realidade cotidiana do povo negro no Brasil, onde o racismo se materializa também nos processos de produção e ocupação socioterritorial. O texto busca evidenciar como este modo de produção capitalista do espaço incide diretamente em formas desiguais e desumanas de uma lógica genocida (nos termos de Adbias do Nascimento), onde a cor da pele define as formas de viver e ocupar os territórios e como o Estado, apoiado no racismo estrutural e institucional, reproduz e amplia a violência e o silenciamento do povo negro para a manutenção da hegemonia capitalista. Ora, se a produção do espaço revela as contradições do sistema capitalista e seu esgotamento, contraDOI - 10.29388/978-65-86678-35-2-0-f.129-150 Mulher negra, origem de Caratoria (morro da cidade de Vitória–ES), candomblecista, assistente social, professora do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós–graduação em Política Social da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), pós–doutoranda pela FSS/PPGSS/UFJF, doutora em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Membro do Grupo de Estudos Octavio Ianni (UERJ) e do Núcleo de Estudos Interfaces (UFES). Presidente da ABEPSS (gestão 2017–2018). E–mail: lenaeabreu@gmail.com https://orcid.org/0000–0001–8243–542 *

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ditoriamente, são nesses espaços de maior repressão e imposição deste modelo destrutivo que se configuram formas de resistência e luta por novos quilombos. 1. O RACISMO TERRITORIAL: QUILOMBOS E FAVELAS COMO ESPAÇOS PRODUZIDOS O modo de produção capitalista do espaço incide diretamente em formas desiguais e desumanas de uma lógica genocida, nos termos de Adbias do Nascimento (2016), onde a cor da pele define as formas de viver e ocupar os territórios e como o Estado, por meio do racismo institucional, reproduz e amplia a violência e as formas de silenciamento e marginalização do povo negro, bem como, a uma divisão racial do trabalho e do espaço. A este processo, considero que há na sociedade hodierna um processo avassalador de racismo socioterritorial, alimentado pela lógica capitalista de produção do espaço. Daí, para romper com os muros e barreiras da cidade do capital, torna–se imperativo, romper com o racismo e com o modo de produção capitalista. A expressão “do quilombo à favela” muito utilizada nos estudos acadêmicos, literários e em conhecidos versos e prosas do universo cultural negro e periférico, marcado recentemente no samba enredo de 2018, da escola de samba “Unidos do Tuiutí” – Rio de Janeiro, expressa como modos de produzir o espaço se define historicamente, e com ele, formas de produzir e reproduzir a vida em uma sociedade, são marcados dialeticamente, pela forma de organizar e construir territórios a partir dos sujeitos sociais em movimento (ABREU, 2016). Começamos com os quilombos, pois “nossos passos vêm de longe”. Caracterizado por uma estrutura coletiva de uso e produção da terra, sem posses individuais e apropriação de excedentes. No quilombo, metaforicamente todos/as trabalham, se alimentam, dançam ao som dos tambores para saudar os seus deuses e deusas, protegem a natureza e produzem tudo o que é necessário para si e para a sua comunidade. As decisões são coletivas e o maior bem cultural está pautado da cosmogonia africana “Eu sou, porque nós somos”! Segundo Gomes (2015), os quilombos e mocambos se formavam, via de regra, por escravos fugitivos de canaviais e engenhos do Nordeste e os primeiros registros instam de 1575, considerando um mocambo no interior da 130


Bahia. Já o mais conhecido, foi e continua sendo o quilombo de Palmares, que surgiu no final do século XVI, no território da capitania de Pernambuco, mais precisamente em uma região em que hoje está localizado o estado de Alagoas. O quilombo foi formado por escravos que tinham fugido de engenhos da região de Pernambuco e que escolheram a região da Serra da Barriga, na zona da mata de Alagoas. O primeiro registro conhecido que faz menção ao Quilombo dos Palmares remonta a 1597, embora existam algumas teorias que sustentam que o quilombo já existia antes disso. A historiografia conta que o mesmo foi destruído em 1694 e seu líder, Zumbi, foi morto no ano seguinte em uma emboscada. No entanto, a história de Palmares resiste em outros moldes, sua experiência e legitimidade reconquistada pelo movimento negro o coloca como hoje como patrimônio histórico da América Latina. Moura (1981, 2019), a despeito da historiografia branca e acadêmica sobre o papel dos negros na sociedade brasileira, mostra como Palmares se constituiu como força motriz econômica, cultural, sociológica e política de insurreição contra o regime escravista, pois foi sendo construído a partir da junção de mocambos, pequenos assentamentos de escravos fugidos, na divisa de Alagoas e Pernambuco (mas na época, tudo fazia parte da mesma capitania). No caso de Palmares, os mocambos formavam uma confederação quilombola que se estendia por um território razoavelmente vasto que incorporava além de negros escravizados fugitivos, alforriados, nascidos livres em Palmares, os indígenas, camponeses brancos sem terras e demais etnias e grupos oprimidos pelo regime colonial. Outro destaque ao território de Palmares trata da organização política, tendo as mulheres, sacerdotes e sacerdotisas de diferentes cultos e tradições, bem como as pessoas mais velhas aquelas referências que possuíam papéis de destaque nas estruturas internas, devido à tradição africana e valorização da oralidade como memória e registro coletivo. Somente esta região chegou a ter cerca de 20 mil habitantes, sobre este aspecto o autor constata: Transformou–se Palmares no mais sério obstáculo ao desenvolvimento da economia escravista da região. Como a região na época, era a mais importante para a prosperidade desse tipo de economia, podemos aquilatar

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a preocupação que Palmares representava para as autoridades da Metrópole. (MOURA, 2019, p. 196).

Ao relatar como eram retratados os quilombos por uma série de autores do período colonial, destacou Esta forma de organização dava, como consequência, uma economia de abundância. É outro estudioso do assunto, Décio Freitas, quem a caracteriza da seguinte forma: “Faziam largo consumo de banana pacova, abundante na região. Criavam galinhas e suínos. Pescavam e caçavam. [...] E acrescentava mais: “É que nas comunidades negras reinava uma fartura que oferecia um vivo contraste com a perene miséria alimentar da população do litoral. A abundância da mão–de–obra, o trabalho cooperativo e a solidariedade social haviam aumentado extraordinariamente a produção. O superproduto social se tornara abundante. Depois de alimentada a população, atendidos os gastos coletivos e guardadas em celeiros as quantidades destinadas à épocas de más colheitas, guerras e festividades, ainda sobrava para trocar por produtos essenciais das povoações luso–brasileiras. (MOURA, 1981, p. 39–40)

É ilusório prever que em um modelo de cidade pautada pelo modo de produção do espaço na sociedade capitalista, haja um compasso possível de criação de igualdade na forma de uso, produção e ocupação dos territórios. Vale lembrar que o processo de colonização e posteriormente, a constituição da República, se faz em tempos históricos que caminham para permitir o processo de desenvolvimento da acumulação capitalista e assim como Palmares, outros quilombos que possuíam a mesma lógica e os maiores já caminhavam para estruturas próximas desta república quilombola. Obviamente, se tornaram alvo no caminho destrutivo das elites brasileiras e internacionais em diferentes tempos históricos, o que prevalece até o presente. (GOMES, 2015; MOURA, 2019) Outro dado negado pela historiografia hegemônica corresponde ao poder de insurreição dos quilombos e mocambos, Moura (2019, p. 189) afirma que “[...] preferiram as liberdades entre as feras que a sujeição entre os homens”. As forças militares dos quilombos se ergueram pela necessidade constante de proteção diante da negação da ordem colonial e à própria condição de escravização. A existência de grupos armados no interior dos quilombos era necessária, pois estavam em constante prontidão para defender a vida e as formas 132


de produção que garantiriam a sobrevivência nestes territórios. Tais contingentes de defesa passaram a se organizar como exércitos, com estratégias e táticas desenvolvidas para fazer frente aos constantes ataques promovidos pela Metrópole e seus representantes. Via de regra, os levantes e revoltas ocorridas no país que questionavam poderes instituídos que procuravam se erguer como forças de oposição e organização, tinham em suas bases, os grupos armados dos quilombos, como constam em registros das revoltas e insurreições urbanas como Revolta dos Búzios (dos Alfaiates/Conjuração baiana) – Bahia, 1798, Revolução Pernambucana – Pernambuco, 1817, Revolta das Carrancas – Minas Gerais, 1833, Revolta dos Malês – Bahia, 1835, Balaiada – Maranhão, 1838–1841, Revolta de Manoel Congo – Rio de Janeiro, 1838, Revolta de Queimado – Queimado/ES, 1849*, A Greve Negra – Bahia, 1857, dentre outras (GOMES, 2015; MOURA, 1981) Apagar memória desta construção social tem sido uma tarefa constate do Estado Brasileiro, pois fica evidente a ameaça que o movimento subjacente de recuperação destes princípios pode representar ao modelo destrutivo hegemônico capitalista, branco, machista e sexista. Neste caso, em se tratando do sistema escravocrata da monarquia para o modelo liberal da república, advoga–se ao sujeito livre uma transposição de status formal, desvinculado de uma profunda mudança na estrutura patrimonialista, patriarcalista e fundiária do país. Daí, temos os traços de uma abolição inconclusa que impede a verdadeira transformação do escravizado em cidadão neste país (IANNI, 1972). Neste processo, o Estado age como indutor de um simulacro republicano com crescimento de uma política eugenista de migração, branqueamento e reforço da lógica discriminatória onde negros permanecem como subumanos mediante teorias racialistas, que ainda hoje, buscam justificar a supremacia da raça branca/caucasiana sobre as demais (GOES, 2018). Tal processo evoca uma trajetória tenebrosa de violência, expropriações e explorações sucessivas, onde o Estado possui uma função primordial para o desenvolvimento e a manutenção do sistema capitalista. Moura (2014) destacou que mesmo com o processo de abolição, não houve mudança qualitativa na estrutura da sociedade brasileira, o sociólogo afirmou que “O Brasil arcaico preservou os seus instrumentos de dominação, pres133


tígio e exploração e o moderno foi absorvido pelas forças dinâmicas do imperialismo que também antecederam à Abolição na sua estratégia de dominação”. (MOURA, 2014, p. 152) Neste sentido, as relações intrínsecas entre o racismo estrutural e o Estado capitalista dependente perpetram à população negra condições de vida em permanentes e persistentes desigualdades, que violam os princípios das estruturas que se reivindicam democráticas no mundo moderno. Assim, o mito da democracia racial segue causando uma cortina de fumaça, cercado de confusões e desorientações que limitam a compreensão dos fundamentos da dependência e dos profundos processos de exploração e ruptura com o arcaico projeto de nação, onde não cabem as aspirações e demandas de todos os segmentos que a compõe (FERNANDES, 2007) Por isso, os inúmeros impasses atuais em torno da legitimidade dos quilombos no Brasil, que historicamente sofrem com as sucessivas intervenções do Estado para seu aniquilamento histórico e relevância cultural para o povo brasileiro, em especial, para a maior parcela da sua população que é negra ou de sua descendência. Embora a maioria esmagadora encontre–se na zona rural, também existem quilombos em áreas urbanas e peri–urbanas. Nos termos do Decreto n. 4.887, de 2003, são as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos e utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural. De acordo com o artigo 68º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988, aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir– lhes os títulos respectivos. O uso comum da terra pelas comunidades é outra característica marcante desses territórios (IBGE, 2020). Oficialmente no Brasil, considera–se agrupamento quilombola o conjunto de 15 ou mais indivíduos quilombolas em uma ou mais moradias contíguas espacialmente, que estabelecem vínculos familiares ou comunitários e pertencentes a Comunidades Remanescentes de Quilombos (CRQs), ou simplesmente Comunidades Quilombolas, que são grupos étnicoraciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a

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relacionada com a resistência à opressão historicamente sofrida, nos termos do Decreto n. 4.887, de 2003 (IBGE, 2020). Os agrupamentos quilombolas são nomeados pelas comunidades locais de diversas formas, incluindo “comunidades negras rurais”, “terras de preto”, “terras de santo”,“mocambo” etc. (IBGE, 2020). Em 2019, foram mapeados cerca de 5.972 localidades quilombolas, estão espalhados em mais municípios: 1.672. Do total de localidades, 2.308 são agrupamentos, 3.260 têm outra identificação e 404 são territórios oficialmente reconhecidos. Mais da metade das localidades quilombolas (3.171) está no Nordeste, seguido do Sudeste (1.359). Só a Bahia tem 1.046. Logo depois, Minas Gerais aparece 1.021. Os dados populacionais ainda não podem ser constatados, pois apenas no censo 2020 que o item de identificação como quilombola será acrescido ao formulário (IBGE, 2020). Vale o registro que boa parte destes quilombos, ainda que reconhecidos sofrem constante pressão e repressão por parte do Estado e do capital, com constantes ameaças de despejos (reintegração de posse). Além da ausência de políticas efetivas que garantam a sobrevivência e a produção nestas comunidades tradicionais, nas quais incluo ainda as comunidades tradicionais de religiões de matriz africanas que também se organizam com bases comunais de habitação e posse coletiva dos bens da comunidade. Uma vez expropriados da terra e diante do forte processo de urbanização modernizadora do país nos moldes do desenvolvimento capitalista periférico, temos as origens dos desastrosos resultados do crescimento das cidades voltadas a atender as demandas e voracidade do capital ao se apropriar do modelo de desenvolvimento urbano. Na sociedade capitalista, como outros valores de uso, a terra e a moradia se convertem em mercadorias, com especificidades que merecem ser destacadas das demais, pois trata–se de mercadorias das mais caras, dentre os componentes necessários à reprodução do trabalho na vida privada e familiar dos trabalhadores. Tratando de forma específica a questão da moradia, Royer (2014) afirma Que “trata–se, portanto, de uma mercadoria complexa, a comercialização envolve o capital específico de incorporação além dos capitais de construção e de financiamento, [...] de um bem imóvel que se valoriza a partir

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de atributos do entorno e à renda da terra, [...] tornando–a objeto de disputas acirradas” (ROVER, 2014, p. 07).

Cabe ressaltar que as políticas urbanas, dentre elas a habitação, são decorrentes do processo de conformação contraditória das cidades. O Estado exerce importante função no atendimento dos interesses do desenvolvimento produtivo capitalista, segundo exigências da industrialização e da urbanização. E quando necessário, atende a uma parte das demandas dos trabalhadores, principalmente, àquelas imprescindíveis a sua manutenção como força de trabalho e consumidores por exigência da dinâmica capitalista (FARAGE, 2012). As expressões mais contundentes da produção capitalista do espaço em tempos de capitalismo financeiro ajudam a revelar os motivos reais das desigualdades sociais e raciais no Brasil e como estas se aprofundam no quadro perverso de organização/planejamento das cidades. Na sequência, alguns dados estatísticos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010 oferecem tal dimensão. Em uma série histórica que remonta este breve século XXI, retomando dados de 1993 e 2007, o percentual de residências que se encontravam em favelas ou semelhantes passou de 3,2% para 3,6%. Considerando a distribuição de acordo com o chefe da família, tem–se que 40,1% dessas casas são chefiadas por homens negros, 26% por mulheres negras, 21,3% por homens brancos e 11,7% por mulheres brancas. De acordo com o estudo, essa distribuição mostra a predominância da população negra em favelas, o que reforça que as desigualdades socioterritoriais têm cor e raça no Brasil. Outro ponto analisado, referente à condição de habitabilidade da população, é o adensamento excessivo, ou seja, o número muito grande de pessoas na residência. Os dados mostram o racismo pesa na perversa estatística da questão urbana novamente, pois apenas 3% dos domicílios chefiados por brancos se encontram nessa situação, entre as famílias com chefes negros o percentual mais que dobra, chegando a 7%. Também são mais comuns os domicílios excessivamente habitados quando é o homem quem chefia: 5,1% contra 4,5% nas famílias chefiadas por mulheres.

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O Brasil em 2010 possuía 15.868 áreas ocupadas consideradas como subnormais2 (ou mais usualmente, assentamentos precários), que somavam 169.170 hectares e comportavam 3.224.529 domicílios particulares permanentemente ocupados. A Região Sudeste foi a que apresentou a maioria de tais áreas do País (55,5%), e também o maior percentual de domicílios nestas condições (49,8%). O estudo indica ainda a concentração de ocupações significativas em áreas consideradas insalubres e degradantes, como palafitas sobre manguezais, canais pluviais e de esgoto, aterros sanitários, lixões, áreas de declives acentuados, de servidão da rede elétrica, gasodutos, rodovias, ferrovias, áreas de conservação ambiental, etc. De um total populacional de 11.425.644 pessoas residentes em assentamentos precários, 59,3% (6.780.071) estão concentradas nas Regiões Metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro, Belém, Salvador e de Recife. O IBGE neste mesmo período, identificou ainda 6.329 favelas em todo o país. Segundo o levantamento, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo concentram 49,8% do total de casas nessas áreas (IBGE, 2013). O avanço desta lógica perversa prevalece nos últimos levantamentos estatísticos, uma vez que em 2015, o déficit habitacional estimado correspondia a 6,355 milhões de domicílios, dos quais 5,572 milhões, ou 87,7%, estão localizados nas áreas urbanas e 783 mil unidades encontram–se na área rural. Em contra partida, o grande montante dos domicílios vagos, de acordo com a Pnad 2015, o Brasil possuía 7,906 milhões de imóveis vagos, 80,3% dos quais localizados em áreas urbanas e 19,7% em áreas rurais. Desse total, 6,893 milhões es2

O Manual de Delimitação dos Setores do Censo 2010 classifica como aglomerado subnormal cada conjunto constituído de, no mínimo, 51 unidades habitacionais carentes, em sua maioria, de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e estando dispostas, em geral, de forma desordenada e densa. A identificação atende aos seguintes critérios: a) Ocupação ilegal da terra, ou seja, construção em terrenos de propriedade alheia (pública ou particular) no momento atual ou em período recente (obtenção do título de propriedade do terreno há dez anos ou menos); e b) Possuírem urbanização fora dos padrões vigentes (refletido por vias de circulação estreitas e de alinhamento irregular, lotes de tamanhos e formas desiguais e construções não regularizadas por órgãos públicos) ou precariedade na oferta de serviços públicos essenciais (abastecimento de água, esgotamento sanitário, coleta de lixo e fornecimento de energia elétrica) (IBGE, 2013). Vale registrar que se trata de uma nomenclatura oficial, que serve de parâmetro de avaliação das condições de moradia e por esse motivo, a utilizo neste texto.

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tão em condições de serem ocupados, 1,012 milhão estão em construção ou reforma. (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2015). De acordo com este estudo, existiam neste mesmo ano, cerca de 7,225 milhões de domicílios carentes de, pelo menos, um tipo de serviço de infraestrutura, onde estes imóveis estão localizados? Qual o perfil dos moradores que sofrem as maiores privações no acesso à moradia digna e aos equipamentos urbanos? De acordo com a estimativa, em 2019 haviam 5.127.747 milhões de domicílios ocupados em 13.151 mil aglomerados subnormais no país. Essas comunidades estavam localizadas em 734 municípios, em todos os estados do país, incluindo o Distrito Federal. Em 2010, havia 3.224.529 domicílios em 6.329 aglomerados subnormais, em 323 cidades, segundo o último Censo Demográfico3. Este crescente corresponde ao período de agravo da crise de 2008 e do desmonte de políticas públicas e perdas de direitos sociais assistidos nos últimos anos frente ao avanço do conservadorismo e ultraliberalismo no Brasil. Os dados não deixam dúvidas, pois é perceptível a diferença entre negros e brancos, especialmente no que diz respeito aos domicílios localizados em assentamentos subnormais, ou seja, favelas e assemelhados. Uma mediação para a crítica a este processo é a compreensão do estatuto da propriedade privada capitalista e suas contradições, pois o ponto central para a questão da moradia, se estrutura na questão fundiária e na posse da terra. Esta é, certamente, a base da produção do espaço moldado ao desenvolvimento urbano capitalista ou, nos termos de Lefebvre, “A Cidade do Capital”, que marca a efetivação do processo de produção e da reprodução da vida social considerando cada estágio do avanço das forças produtivas. Tendo em vista que é neste modelo de cidades “que a concentração de bens atinge seu grau mais elevado, que os costumes e as condições de vida do bom e velho tempo são radicalmente destruídos” (LEFEBVRE, 1999, p. 12). O Brasil se constituiu em menos de um século como país predominantemente urbano, produzido em bases de transformações industriais de subordinação ao capital externo relativamente recentes, sem romper plenamente com o modelo patrimonialista rural de concentração de terras, de patriarcado e de con3

Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020 –05/duas–em–cada– tres–favelas–estao–a–menos–de–dois–quilometros>. Acesso em: ago. 2020.

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servadorismos não superados de sua base agrária desigual (FERNANDES, 2005, 2009). Esta urbanização, assim como o processo republicano e democrático brasileiro, ocorre de forma totalmente descomprometida com a transformação das bases sociais e com o cumprimento da função social e fundiária nas cidades e no campo. Aprofundam–se, pois, as desigualdades socioterritoriais e raciais, cria–se uma dimensão particular das cidades no país que autoriza processos institucionais de expulsão, de segregação, de marginalização que se expressam no cotidiano de trabalhadores “desalojados e despejados” da cidade do capital. Cotidianamente assiste–se à judicialização da questão urbana, em que a moradia, compreendida como um direito é encarada como caso de polícia devido à complexidade e aos interesses econômicos e políticos em torno da propriedade urbana. Resultado: a privatização desmedida dos espaços públicos. Repete–se cotidianamente as ações violentas de reintegração de posse em áreas urbanas como a de Pinheirinhos, São Paulo, no ano de 2012, da Aldeia Maracanã, no Rio de Janeiro, em 2013 e de Cais Estelita, Recife, em 2014 e relatos em Belo Horizonte e São Paulo em plena pandemia da Covid 19, em 2020. Ainda sobre as atrocidades do racismo territorial, temos o exemplo trágico da pandemia da SARs–CoV–19, que em todos os estudos epidemiológicos apontam a maior propagação e letalidade em territórios aonde o vírus chegou antes do saneamento básico e que as condições de vida e moradia de trabalhadores, expõe à população negra os danos mais sérios provocados pela doença. Tais considerações são fundamentais para pensar como os impactos de uma história de racismo estrutural e institucional são agravadas mediante a crise do capital que ao longo das últimas décadas e governos, que contribuíram para a precarização e intensificado da exploração da força de trabalho, acompanhada de perdas sucessivas de direitos e proteções sociais com governos neoliberais e agora, ultraliberal e neoconservador capitaneadas pelo presidente Jair Bolsonaro. O abandono histórico da questão urbana, que via de regra negligencia a questão racial, alimentada por um mito da democracia racial abre precedentes alarmantes para o seu agravamento na fase atual do capitalismo financeiro, que preconiza e estimula um modelo concorrencial entre as cidades, voltadas para o aperfeiçoamento gestionário de governança, apresentando territórios como vi139


trines de oportunidades/atratividades para a especulação financeira e fundiária do grande capital (ABREU, 2016). A tônica de apropriação do espaço é capacitar as cidades para concorrer entre si na captação e obtenção de recursos públicos e privados. Como exemplo evidente experimentado no Brasil e em outros países, tivemos a fábrica dos sonhos dos megaeventos, do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) e agora com o programa Casa Verde e Amarela. Como já dito, a moradia como mercadoria contém além de capitais fundiários, que permitem a especulação da terra urbana (o que nos ajuda a compreender facilmente a perda de sua função social) um volume expressivo de capitais fictícios. Na fase atual, pode–se ver que a habitação se converteu em iguaria apetitosa para o capital financeiro portador de juros, tendo em vista a mola propulsora de financiamentos habitacionais com recursos de contribuições sistemáticas dos trabalhadores formais. Como exemplo, o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), recursos do BNDES e da CAIXA. No Brasil, historicamente estas são as principais fontes de composição do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) (ROLNIK, 2015). É possível afirmar que os padrões de financiamento da política habitacional traduzem o movimento de transformações dos padrões de acumulação capitalista, onde o fundo público há anos se constitui como principal fonte de financiamento da política habitacional. Nesta dinâmica, as expressões do racismo territorial são subsumidas em processos de higienização, pasteurização e uniformização de projetos de urbanização de áreas populares e degradadas, ampliação de serviços privados, além da forte ocupação militar para contenção e controle da vida social das áreas periféricas das cidades. O fundo público funciona como um “balcão” ao gerar empréstimos, dividendos, passivos e títulos controladores de novas centralidades e nichos de produção, espaços que possam abrigar provisoriamente recursos fluídos e voláteis ao bel prazer das necessidades de rentabilidade do capital, fixadas de acordo com a submissão e/ou adaptação dos gestores públicos ao modelo gerencial capitalista engendrado na organização do Estado neoliberal e mais recentemente, ultraliberal. Nota–se que a questão social, a questão racial, a questão fundiária no campo e na cidade caminham juntas, e por isso, ainda que intervenções urba140


nísticas e de desenvolvimento territorial isoladas do conjunto das definições no âmbito da economia política se mostram historicamente incapazes de superar a chamada crise urbana. Pelo contrário, esta tende a se agravar. A população favelizada representa cerca de 78% dos habitantes urbanos em países menos desenvolvidos e corresponde a um terço da população urbana mundial. Apesar de a maior incidência deste fenômeno ocorrer em países do hemisfério sul e parte da Ásia (principalmente na China e na Índia), observa–se o crescimento da favelização nos grandes centros urbanos em países centrais do capitalismo (ROLNIK, 2015). É fato evidente que em países afrodiaspóricos e no território africano a população negra constrói suas moradias de forma adensada em espaços urbanos precários, denominados mais popularmente no Brasil, como favelas (mas que tem diferentes denominações a depender da cultura local). A autora salienta que a “mercantilização da moradia, bem como o uso crescente da habitação como ativo integrado a um mercado financeiro globalizado, afetou profundamente o exercício do direito à moradia adequada pelo mundo”. (ROLNIK, 2015, p. 32) Considerando aspectos das favelas, por mais que estas possuam formas de riquezas essenciais resguardadas em seus domínios territoriais (que são as pessoas, a cultura e ancestralidade do povo negro que nelas habitam), foi construída a partir de uma lógica perversa, da produção capitalista do espaço, que tem como base fundante a propriedade privada da terra e a transformação deste bem universal da humanidade, em mercadoria. (FARAGE, 2012) Daí, lidamos hoje com uma dura realidade cotidiana do povo negro no Brasil, onde o racismo se materializa também nos processos de produção e ocupação socioterritorial. Carolina Maria de Jesus, em seu Quarto de Despejo: diários de uma favelada, escreveu em 1968 a denúncia: Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetas de viludo, almofadas de sitim(sic). E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo. (JESUS, 2005, p. 33)

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2. A CIDADE CAPITALISTA ALIMENTA O RACISMO SOCIOTERRITORIAL: O PERIGO NÃO MORA NO BECO, MORA NO ASFALTO. Quando a rebeldia quilombola e periférica das favelas, produtoras de vida se choca com a falsa passividade liberal e o cinismo fascista que na crise atual se materializam no ultraliberalismo como referência para um projeto de nação que segue seu genocídio, massacrando negros e negras, com o seu chão repleto de sangue pisado desde as pedras dos cais até o corpo arrastado no camburão e metralhado em via pública, é que se evidencia o esgotamento do projeto de democracia e do Direito à Cidade. Na lógica da cidade que tenta expurgar a favela, nota–se que não vem dos becos as nossas principais ameaças. Para que tenhamos uma outra sociabilidade onde se possa circular livremente, é imperativo a construção de processos radicais de capazes de reconstruir os espaços roubados pelo capital, alimentado pelo ódio racista e fascista que segrega e marginaliza corpos e territórios em todos cantos urbanos e rurais deste país. Mais do que os números que elencamos quando tratamos do racismo e sua face institucional, trata–se de vidas humanas banalizadas pela lógica ultraliberal que coloca o mercado e os lucros acima de tudo e de todos, balizados ainda por uma supremacia que procura recuperar um nacionalismo enviesado com slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos!” que embala um violento processo de dilapidação da coisa pública por parte do presidente Jair Bolsonaro desde o início de seu governo, em 2019. Falar em luta antirracista e anticapitalista, passa pela derrota do projeto neoconservador que assola o país e exige uma profunda transformação na estrutura fundiária e posse da terra no campo e nas cidades, para que possamos pensar em construir um novo modo de produção e dialeticamente de (re)produção social. Neste sentido, quilombo e favela se opõem radicalmente aos modelos privatistas da cidade do capital de apropriação da terra e dos seus territórios. Mais do que mostrar as disparidades nas condições habitacionais que geralmente são exploradas nos estudos sobre territórios, temos a intenção de apontar como as bases do racismo no Brasil, historicamente impedem a supera142


ção das desigualdades por meio de um conjunto de contrarreformas que direcionam indubitavelmente às ações para a posse privada da moradia e concentração de terras e riquezas voltadas exclusivamente para a ampliação das formas de expropriação e exploração que sustentam o modo de produção capitalista e suas formas destrutivas do meio ambiente e da humanidade. A barbárie da privatização da cidade do capital revela historicamente o abismo social e as profundas desigualdades de classe no acesso e usufruto à moradia digna, ao ambiente salubre, à mobilidade e à produção. As desigualdades e o racismo socioterritorial são inerentes ao modo de produção do espaço no capitalismo, que tem na posse da terra, um dos seus pilares e se aprofunda na medida em que todas as coisas se convertem em mercadoria. A consolidação do modelo especulativo, segregador e privatizante é dialeticamente racista desde as origens do processo de diáspora, escravização e inserção negra na formação social brasileira. Em se tratando dos lugares e territórios forçadamente destinados ao povo negro pelas elites dominantes, vimos que a questão territorial é estruturante pela ausência da posse da terra, combinadas à perversa superexploração dos territórios afrodiaspóricos, via de regra, frutos das invasões coloniais e do imperialismo. Neste sentido, há uma relação dialética das determinações sociais que unificam racismo e capitalismo, por isso a necessidade da apreensão do debate que não separa raça e classe, uma vez que se encontra no cerne da questão o Trabalho como mediação imprescindível à superação da sociedade de classes. Por isso, o território se encontra como alvo constante de disputas, pois o seu desenho se dá a partir de mediações relacionadas ao modo no qual os trabalhadores/as produzem riqueza (que no caso do modo de produção capitalista, dá origem à miséria, conforme lei geral da acumulação, apresentada em “O Capital”, de Karl Marx). O resultado deste processo promoveu uma acentuada segregação espacial nas cidades brasileiras desde metade do século XX, se estendendo até os dias atuais. Resultou ainda, na proliferação das favelas, que se constituíram o primeiro alvo do governo sobre a política habitacional na chamada Nova República, considerando a questão da habitação como mero déficit e resultado de uma crise habitacional agravada pelo processo de urbanização acelerado, tendo como foco, o controle e a coerção das classes tidas como perigosas. 143


Os conjuntos habitacionais criados para o reassentamento dos moradores de favelas (muitas vezes por meio de remoções violentas) eram distantes dos locais de trabalho e do acesso ao conjunto de estruturas urbanas e sociais, além de demandarem novos custos da cidade regulada, como água, luz, etc, e, é claro, o ônus das prestações, que certamente estavam acima daquilo que este contingente de famílias poderia pagar. Assim, a política habitacional brasileira vive a em constante crise expressa por elevados índices de inadimplência e gentrificação4. Este modo de interpretação expressa a materialização da concepção privatista que se tem do espaço urbano, longe da dimensão de universalidade e acesso coletivo aos bens e serviços produzidos socialmente. Sob outra face, o acesso à moradia quando subsidiada por políticas de governo – com o endividamento das famílias direto pelas prestações ou indireto pelos novos encargos, urbanos –, resvala diretamente na esfera de lucratividade das empresas construtoras. Além de explorar mais–valia no processo direto de construção de moradias e especulação imobiliária, recebem uma fatia do fundo público para execução de obras caras, mal acabadas, sendo ainda um poderoso canal de desvio de recursos por corrupção. As maiores empresas do setor, são as mesmas que acumulam as listas de financiamentos ilícitos de campanhas políticas e pagamentos de propina para obtenção de vantagens e lucros incalculáveis no país. Neste processo histórico repleto de determinações sócio–históricas, formaram–se senzalas, cortiços, “barracões de zinco pendurados no morro”, palafitas, barracas de lona e de papelão. Se erguem “Cidades de Deus, Coroadinhos, Sol Nascente, Brasílias Teimosas, Abolições, Casas Amarelas, Marés, Pa-

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Processo desencadeado, via de regra, por processos de urbanização na lógica da cidade capitalista e/ou com a criação de infraestruturas urbanas que incidem na criação de custos mais elevados da terra e dos serviços urbanos em ocupações já consolidadas, que leva trabalhadores a se deslocarem voluntária ou involuntariamente para novos territórios desprovidos de infraestruturas adequadas de moradia e geralmente, mais distantes de espaços centrais nas cidades. Exemplos marcantes deste processo estão na história da política urbana brasileira como a construção da Cidade de Deus, no Rio de Janeiro e ainda com todo processo recente em várias capitais envolvendo a realização dos megaeventos, como a Copa do Mundo de 2014 e as Olímpiadas de 2016, bem como os super projetos de infraestrutura do setor energético, como as usinas de Belo Monte, Santo Antônio e Jirau, no norte do Brasil.

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raisólis, Pinheirinhos” como expressão territorial marcada pela voracidade destrutiva do modelo capitalista de produzir o espaço desigual. Acordar no primeiro de maio de 2018 e ver um arranha céu de papelão se desmanchando em fogo no Centro da maior metrópole da América Latina é a representação do esgotamento do modelo de cidades que nada atende à classe que a constrói e a ocupa como ato legítimo. São milhares de vidas e de casas levadas nas águas ou por terras nos morros de Recife, Salvador, Niterói ou Pará. Pessoas que para se deslocar suportam reedições de carros de boi em paus–de– arara, barcaças e trens da supervia. O racismo territorial também deixa suas marcas por meio da ação violenta do Estado. A criação de projetos inspirados nas Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), a invasão do exército nas favelas do Rio de Janeiro, a presença intimidadora e violenta da polícia e de milícias que se espraiam em diversos territórios são parte do nítido movimento de contenção do povo negro, seja violência que intimida, pela presença ostensiva ou pelo extermínio, o objetivo é de provocar o silêncio! Vale lembrar, como já citado, que a cada 23 minutos morre um jovem negro nas periferias, as chacinas que reeditam os pelourinhos e o caso emblemático do assassinato da vereadora Marielle Franco e Anderson, em abril de 2018, têm como traço comum: o lugar de origem das vítimas. Novos negreiros surgem neste contexto paralelo às favelas. É quando jovens negros/as perdem a suposta “liberdade”, o sistema reedita a senzala, que é o cárcere. Um novo território de segregação perverso que é habitado predominantemente por negros e suas famílias. Tais lugares ganham a objetivação de uma naturalização que não podem ser internalizadas, dentro e fora do Serviço Social, como se o “lugar” dos negros, tenha como marcas o lugar da violência, da pobreza e da criminalização. Romper as barreiras da segregação socioterritorial implica derrubar o modelo social que a produz. Superar o racismo e o capitalismo está no centro do processo. A partir deste elemento é possível constatar o potencial mobilizador a partir da apropriação crítica da análise do território a partir da produção do espaço, uma vez que os elementos aqui arrolados expõem evidentemente as contradições deste sistema.

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3. PARA TERMINAR: UM FUTURO SEM CERCAS E SEM CORRENTES Notamos que o debate do racismo estrutural e institucional presente nas formas de ocupação dos territórios, contribuem ainda para decifrar o debate da questão urbana e da questão social. Apoiamo–nos em Engels (2013), ao travar um debate valioso sobre a “Questão da Habitação” diante das propostas dos conservadores e reformistas burgueses para resolver o crescente problema do crescimento das cidades e a situação de pauperização dos trabalhadores agravados pela ausência de condições dignas de moradia. O autor, nos idos de 1872, já indicava que não se tratava de um problema a ser resolvido com medidas paliativas, pois está intimamente ligado ao modo de produção capitalista e à sua reprodução no modelo de ocupação e apropriação das cidades. Por isso, não pode ser resolvido no âmbito de propostas reformistas. Assevera ainda: E, enquanto o modo de produção capitalista existir, será disparate pretender resolver isoladamente a questão da habitação ou qualquer outra questão social que diga respeito à sorte dos operários. A solução reside, sim, na abolição do modo de produção capitalista, na apropriação pela classe operária de todos os meios de vida e de trabalho (Idem, p. 73– 74).

Duas formas extremas de urbanização na cidade do capital tratam de esvaziar a dimensão da vida pública e da sociabilidade pautadas na convivência coletiva, pasteurizando a dimensão da vida cotidiana. A primeira trata da urbanização de favelas ou áreas tidas como degradadas, cuja marca é de introdução de um modelo de padronização do urbano em relação à organização e integração social. Em outro extremo, o modelo de “cidade de muros” que privilegia os condomínios fechados de luxo, objeto de desejo de parte da população mais abastada, cuja formatação nega o espaço e a vida pública e reforça o niilismo social (ABREU, 2016). Em ambas prevalece a relação com o promissor mercado de serviços urbanos fortemente privatizados. Não obstante a esta realidade, com o acirramento das expressões da questão racial e da social, nos últimos anos contra as relações de exploração, opressões e expropriações servem como combustível para os movimentos de 146


resistência com bandeiras e lutas por garantias democráticas e defesa de direitos. Por isso, a insurgência dos movimentos urbanos e rurais, de trabalhadores organizados precisam ser marcadas pela presença radical da luta anticapitalista, antirracista e antimachista/sexista (incluindo todas as lutas em torno das formas de opressão e exploração). Retomo ao aprendizado dos quilombos e das favelas, onde a urgência da retomada da sociabilidade que não separa ser humano da natureza, próprios da cosmogonia africana, para que tantas Carolinas e Marias não continuem a ser despejadas. A população negra em movimento como classe, é uma potência nesta sociedade de classes, por isso, a busca incessante da classe dominante pelo seu silenciamento (seja ideológico ou físico). Mas, não esqueçam que “somos sementes”, com a força das origens que contrariam e alimentam as lutas cotidianas e coletivas que se enchem de inspiração de Dandaras e Zumbis. Que das favelas venham os novos quilombos com a ginga da capoeira e do samba, da batida do tambor, a inteligência e consciência afiada do Rap, as formas explosivas do grafite, o bailado coletivo do Jongo, as cores vivas das vestes das negras, a delícia da comida boa e farta, o riso solto, o pé no chão, a sabedoria do cultivo e da cura das ervas, a dinâmica do cuidado. Esta força está presente na ocupação viva dos territórios e dessas lições estamos a construir as bases de uma sociabilidade que de forma organizada, pode despontar um verdadeiro território substantivamente livre de despejos, apartheid e guetos. Anunciando, “é tudo nosso”, nossa pátria é Palmares! REFERÊNCIAS ABREU, M. H. E. Território, política social e serviço social: caminhos e armadilhas do social–liberalismo. Campinas: Papel Social, 2016. BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. ______. Decreto n. 4.887. Brasília, 20 de novembro de 2003. ENGELS, F. A questão da habitação. São João Del Rei: Estudos Vermelhos, 2013.

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VI

CRISE ECOLOGICA E CAPITALISMO A ALTERNATIVA ECOSSOCIALISTA* Michael Löwy1

INTRODUÇÃO A crise econômica e a crise ecológica resultam da mesma causa: um sistema que transforma tudo – a terra, a água, o ar que respiramos, os seres humanos – em mercadoria e que não conhece outro critério a não ser a expansão dos negócios e a acumulação de lucros. As duas crises são aspectos interligados de uma crise mais geral, a crise da civilização capitalista industrial moderna. Há alguns anos, quando se falava dos perigos de catástrofes ecológicas, os autores se referiam ao futuro dos nossos netos ou bisnetos, algo que estaria no futuro loginquo, dentro de cem anos. Agora, porém, o processo de devastação da natureza, de deterioração do meio ambiente, e de mudança climática se acelerou a tal ponto que não estamos mais discutindo um futuro a longo prazo. Estamos discutindo processos que já estão em curso – a catástrofe já começou, esta é a realidade. E realmente estamos numa corrida contra o tempo para tentar impedir, brecar, tentar conter esse processo desastroso. Quais são os sinais que mostram o caráter cada vez mais destrutivo da acumulação capitalista em escala global? O mais óbvio e perigoso é o processo de mudança climática que resulta dos gases emitidos pela indústria, agro–negócio e sistema de transporte existentes nas sociedades capitalistas modernas e que produzem o efeito estufa. Esta mudança, que já começou, terá como resultado não só o aumento da temperatura em todo planeta, mas a desertificação de DOI - 10.29388/978-65-86678-35-2-0-f.151-158 Michael Löwy, sociólogo, nascido no Brasil, formado em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, e vive em Paris desde 1969. Diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). *

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setores inteiros de vários continentes, a elevação do nível do mar, o desaparecimento de cidades marítimas – Veneza, Amsterdã, Hong–Kong, Rio de Janeiro – debaixo do oceano. Uma série de catástrofes que se colocam no horizonte dentro de vinte, trinta, quarenta anos, isto é, no futuro próximo. Tudo isso não resulta do excesso de população, como dizem alguns, nem da tecnologia em si, abstratamente, ou tampouco da má vontade do gênero humano. Trata–se de algo muito concreto: das consequências do processo de acumulação do capital, em particular na sua forma atual, da globalização neoliberal sob a hegemonia do império norte–americano. Este é o elemento essencial, motor desse processo e dessa lógica destrutiva que corresponde à necessidade de expansão ilimitada – aquilo que Hegel chamava de “má infinitude” –, um processo infinito de acumulação de mercadorias, acumulação do capital, acumulação do lucro, que é inerente à lógica do capital. Não se trata da “má vontade” de tal ou qual multinacional ou governo, mas da lógica do sistema capitalista, baseada na concorrência impiedosa, nas exigências de rentabilidade, na corrida atrás do lucro rápido; uma lógica que é necessariamente destruidora do meio ambiente e responsável da catastrófica mudança do clima. Os marxistas não são os únicos a terem chegado a esta conclusão. Na sua Encilica "Laudato Si” (2015) o Papa Francisco observa que a destruição do meio ambiente resulta de um sistema econômico mundial, “[…] um sistema estruturalmente perverso de relações comerciais e de propriedade” baseado exclusivamente no “princípio de maximização do lucro” 2. A palavra “capitalismo” não aparece na Encíclica, mas a descrição do sistema não deixa muitas dúvidas. A questão da ecologia, do meio ambiente é a questão do capitalismo; para parafrasear uma observação do filósofo da Escola de Frankfurt Max Horkheimer, – “[...] se você não quiser falar do capitalismo, não adianta falar do fascismo” – eu diria também: se você não quer falar do capitalismo, não adianta falar do meio ambiente, porque a questão da destruição, da devastação, do envenenamento ambiental é produto do processo de acumulação do capital.

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FRANCISCO, Carta Encíclica Laudato si,Vaticano, 2015.189 p. Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/ papafrancesco_20150524_enciclica–laudato–si.html> Acesso em 10 de fevereiro de 2020.

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Logo, a questão que se coloca é a de uma alternativa, mas de uma alternativa que seja anti–sistêmica, isto é, anticapitalista. As tentativas de soluções “moderadas” ou “compatíveis com a economia de mercado” se revelam completamente incapazes de enfrentar esse processo catastrófico. O chamado Tratado de Kioto está muito aquém, quase infinitamente aquém, do que seria o necessário, e ainda assim, o governo norte– americano, principal poluidor, campeão da poluição planetária, recusa–se a assinar. O Tratado de Kioto, na realidade, propõe resolver o problema das emissões de gazes de estufa através do assim chamado “mercado dos direitos de poluir”. As empresas que emitem mais CO2 vão comprar de outras, que poluem menos, direitos de emissão. Isto seria “a solução” do problema para o efeito estufa! Obviamente, as soluções que aceitam as regras do jogo capitalista, que se adaptam às regras do mercado, que aceitam a lógica de expansão infinita do capital, não são soluções, são incapazes de enfrentar à crise ambiental – uma crise que se transforma, devido à mudança climática, numa crise de sobrevivência da espécie humana. A conferência das Nações Unidas sobre a Mudança Climática de dezembro de 2009 em Copenhagen foi mais um exemplo clamoroso da incapacidade – ou da falta de interesse – das potências capitalistas em enfrentar o dramático desafio do aquecimento global. A montanha de Copenhagen pariu um rato, uma miserável “ declaração política”, sem nenhum compromisso concreto e cifrado de redução das emissões com efeito de estufa. Finalmente, tivemos a Conferência de Paris (2015) em que se reconheceu a necessidade de impedir o aquecimento global de mais de 1,5 graus (acima da temperatura pré–industrial). Cada país (com exceção dos Estados Unidos, mais uma vez) se comprometeu voluntariamente a reduzir em uma certa porcentagem suas emissões de CO2. Grande avanço! Dois pequenos problemas: 1) nenhum país cumpriu suas promessas (salvo algumas pequenas ilhas do Pacífico); 2) se todos os países cumprissem suas promessas, segundo cálculos de cientistas, ainda assim a temperatura do planeta superaria os 3,3 graus. O fracasso destas reuniões internacionais ilustra a impossibilidade de uma solução nos marcos do sistema. Precisamos pensar, portanto, em alternativas radicais, alternativas que coloquem um outro horizonte histórico, mais além do capitalismo, mais além das regras de acumulação capitalista e da lógica do lu153


cro e da mercadoria. Como uma alternativa radical é aquela que vai à raiz do problema, que é o capitalismo, essa alternativa é o ecossocialismo, uma proposta estratégica que resulta da convergência entre a reflexão ecológica e a reflexão socialista, a reflexão marxista. Existe hoje em escala mundial uma corrente ecossocialista: há um movimento ecossocialista internacional que por ocasião do Fórum Social Mundial de Belém (janeiro de 2009) publicou uma declaração sobre a mudança climática, e existe aqui, no Brasil, uma rede ecossocialista que publicou também um manifesto, há alguns anos. Ao mesmo tempo, o ecossocialismo é uma reflexão crítica. Em primeiro lugar, crítica à ecologia não socialista, à ecologia capitalista ou reformista, que considera possível reformar o capitalismo, atingir um capitalismo mais verde, mais respeitoso ao meio ambiente. Trata–se da crítica e da busca de superação dessa ecologia reformista, limitada, que não aceita a perspectiva socialista, que não se relaciona com o processo da luta de classes, que não coloca a questão da propriedade dos meios de produção. Mas o ecossocialismo é também uma crítica ao socialismo não ecológico, por exemplo, da União Soviética, onde a perspectiva socialista se perdeu rapidamente com o processo de burocratização e o resultado foi um processo de industrialização tremendamente destruidor do meio ambiente. Há outras experiências socialistas, porém, mais interessantes do ponto de vista ecológico, a experiência cubana, por exemplo. Deste modo, o ecossocialismo implica uma crítica profunda, uma crítica radical das experiências e das concepções tecnocráticas, burocráticas e não ecológicas de construção do socialismo. Isso nos exige também uma reflexão crítica sobre a herança marxista, o pensamento e a tradição marxista, sobre a questão do meio ambiente. Muitos ecologistas criticam Marx por considerá–lo um produtivista, tanto quanto os capitalistas. Tal crítica me parece equivocada: ao fazer a crítica do fetichismo da mercadoria, é justamente Marx quem coloca a crítica mais radical à lógica produtivista do capitalismo, à ideia de que a produção de mais e mais mercadorias é o objetivo fundamental da economia e da sociedade. O objetivo do socialismo, explica Marx, não é produzir uma quantidade infinita de bens, mas sim reduzir a jornada de trabalho, dar ao trabalhador tempo livre para participar da vida política, estudar, jogar, amar. Portanto, Marx fornece as armas para uma crítica radical do produtivismo e, notadamente, do produtivismo capitalista. No primeiro volume de “O Capital”, Marx explica 154


como o capitalismo esgota não só as energias do trabalhador, mas também as próprias forças da Terra, esgotando as riquezas naturais, destruindo o próprio planeta. Assim, essa perspectiva, essa sensibilidade está presente nos escritos de Marx, embora não tenha sido suficientemente desenvolvida. O problema é que a afirmação de Marx – e mais ainda, de Engels – de que o socialismo é a solução da contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção, foi interpretado por muitos marxistas de forma mecânica: o crescimento das forças produtivas do capitalismo se choca com os limites que são as relações de produção burguesas – a propriedade privada dos meios de produção – e portanto a tarefa da revolução socialista seria simplesmente destruir as relações de produção existentes, a propriedade privada, e permitir assim o livre desenvolvimento das forças produtivas. Parece–me que essa interpretação de Marx e de Engels deva ser criticada, porque ela pressupõe que as forças produtivas sejam algo neutro; o capitalismo as teria desenvolvido até um certo ponto e não pode ir além porque foi impedido por aquela barreira, aquele obstáculo que deve ser afastado para permitir uma expansão ilimitada. Essa visão deixa de lado o fato de que as forças produtivas existentes não são dotadas de neutralidade: elas são capitalistas em sua dinâmica e seu funcionamento e, portanto, são destruidoras da saúde do trabalhador, bem como do meio ambiente. A própria estrutura do processo produtivo, da tecnologia e da reflexão científica a serviço dessa tecnologia e desse aparelho produtivo, é inteiramente impregnada pela lógica do capitalismo e leva inevitavelmente à destruição dos equilíbrios ecológicos do planeta. O que se necessita, por conseguinte, é uma visão muito mais radical e profunda do que seja uma revolução socialista. Trata–se de transformar não só as relações de produção, as relações de propriedade, mas a própria estrutura das forças produtivas, a estrutura do aparelho produtivo. Isto é, na minha concepção, uma das ideias fundamentais do ecossocialismo. Há que aplicar ao aparelho produtivo a mesma lógica que Marx aplicava ao aparelho de Estado a partir da experiência da Comuna de Paris, quando ele diz o seguinte: os trabalhadores não podem apropriar–se do aparelho de Estado burguês e usá–lo à serviço do proletariado, não é possível, porque o aparelho do Estado burguês nunca estará a serviço dos trabalhadores. Então, trata–se de destruir esse aparelho de Estado e criar um outro tipo de poder. Essa lógica tem que ser aplicada também ao 155


aparelho produtivo: ele tem que ser, senão destruído, ao menos radicalmente transformado. Ele não pode ser simplesmente apropriado pelos trabalhadores, pelo proletariado, e posto a trabalhar a seu serviço, mas precisa ser estruturalmente transformado. A título de exemplo, o sistema produtivo capitalista funciona há séculos com base em fontes de energia fósseis, responsáveis do aquecimento global – o carvão e o petróleo – de modo que um processo de transição ao socialismo só é possível quando houver a substituição dessas formas de energia pelas energias renováveis, que são a água, o vento e, sobretudo, a energia solar. Por isso, o ecossocialismo implica uma revolução do processo de produção das fontes energéticas. É impossível separar a ideia de socialismo, de uma nova sociedade, da ideia de novas fontes de energia, em particular do sol – alguns ecossocialistas falam do comunismo solar, pois entre o calor, a energia do Sol, o socialismo e o comunismo haveria uma espécie de afinidade eletiva. Mas não basta tampouco transformar o aparelho produtivo, é necessário transformar também o estilo, o padrão de consumo, todo o modo de vida em torno do consumo, que é o padrão do capitalismo baseado na produção massiva de objetos artificiais, inúteis, e mesmo perigosos. A lista de produtos, mercadorias e atividades empresariais que são inúteis e nocivas aos indivíduos, é imensa. Tomemos um exemplo evidente: a publicidade. A publicidade é um desperdício monumental de energia humana, trabalho, papel, árvores destruídas para gasto de papel, eletricidade etc., e tudo isso para convencer o consumidor de que o sabonete X é melhor que o sabonete Y – eis um exemplo evidente do desperdício capitalista. Logo, se trata de criar um novo modo de consumo e um novo modo de vida, baseado na satisfação das verdadeiras necessidades sociais, que é algo completamente diferente das pretensas e falsas necessidades produzidas artificialmente pela publicidade capitalista. Uma reorganização do conjunto do modo de produção e de consumo é necessária, baseada em critérios exteriores ao mercado capitalista: as necessidades reais da população e a defesa do equilíbrio ecológico. Isto significa uma economia de transição ao socialismo, na qual a própria população – e não as “ leis do mercado ” ou um Burô Político autoritário – decide, num processo de planificação democrática, as prioridades e os investimentos. Esta transição conduziria não só à um novo modo de produção e à uma sociedade mais igualitária, 156


mais solidaria e mais democrática, mais também à um modo de vida alternativo, uma nova civilização, ecossocialista, mais além do reino do dinheiro, dos hábitos de consumo artificialmente induzidos pela publicidade, e da produção ao infinito de mercadorias inúteis. Se ficarmos só nisso, porém, seremos criticados como utópicos. Os utópicos são aqueles que apresentam uma bela perspectiva de futuro, e a imagem de uma outra sociedade, o que é obviamente necessário, mas não é suficiente. O ecossocialismo não é só a perspectiva de uma nova civilização, uma civilização da solidariedade – no sentido profundo da palavra, solidariedade entre os humanos, mas também com a natureza –, como também uma estratégia de luta, desde já, aqui e agora. Não vamos esperar até o dia em que o mundo se transforme, não, nós vamos começar desde já, agora, a lutar por esses objetivos. Assim, o ecossocialismo é uma estratégia de convergência das lutas sociais e ambientais, das lutas de classe e das lutas ecológicas, contra o inimigo comum que são as políticas neoliberais, a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Fundo Monetário Internacional (FMI), o imperialismo americano, o capitalismo global. Este é o inimigo comum dos dois movimentos, o movimento ambiental e o movimento social. Não se trata de uma abstração, há muitos exemplos; aqui mesmo no Brasil, como um belo exemplo do que seja uma luta ecossocialista, tivemos o combate heróico de Chico Mendes, que pagou com sua vida seu compromisso de luta com os oprimidos. Como essa, há muitas outras lutas. Seja no Brasil, em outros países da América Latina e no mundo inteiro, cada vez mais se dá essa convergência. Mas ela não ocorre espontaneamente, tem que ser organizada conscientemente pelos militantes, pelas organizações, é preciso construir uma estratégia ecossocialista, uma estratégia de luta convergindo as lutas sociais e as lutas ecológicas. Esta me parece ser a resposta ao desafio, a perspectiva radical de uma transformação revolucionária da sociedade para mais além do capitalismo. Sabendo que o capitalismo não vai desaparecer como vítima de suas contradições, como dizem alguns supostos marxistas – já um grande pensador marxista do começo do século XX, Walter Bejamin, dizia que, se temos uma lição a aprender, é que o capitalismo não vai morrer de morte natural, será necessário acabar com ele. Precisamos de uma perspectiva de luta contra o capitalismo, de um paradigma de ci157


vilização alternativo, e de uma estratégia de convergência das lutas sociais e ambientais, desde agora plantando as sementes dessa nova sociedade, desse futuro, plantando sementes do ecossocialismo. A alternativa ecossocialista implica, em última análise, numa transformação revolucionária da sociedade. Mas que significa revolução? Walter Benjamin escrevia o seguinte em 1940: “As revoluções não são as locomotivas da história, como pensávamos. Elas são o ato da humanidade, que viaja neste trem, de tirar os freios de urgência”3. “O trem da civilização capitalista, do qual somos todos passageiros, está avançando, com uma velocidade crescente, em direção à um abismo constituído pela catástrofe ecológica e a mudança climática. Precisamos puxar os freios de urgência da revolução, antes que seja tarde demais.

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Lowy. Michael. A revolução é o freio de emergência:Ensaios sobre Walter Benjamin. Disponível em <https://autonomialiteraria.com.br/a–revolucao–e–o–freio–de–emergencia– atualidade–politico–ecologica–de–walter–benjamin/>. Acesso em: 10 fev. 2020.

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PARTE II SERVIÇO SOCIAL, FAVELAS E MOVIMENTOS SOCIAIS

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VII

DESENVOLVIMENTO GEOGRÁFICO DESIGUAL, RACISMO E ILEGALIDADE DO ESTADO NA MARÉ* Camila Barros Moraes1

INTRODUÇÃO As reflexões a seguir surgem a partir da experiência como coordenadora da área de produção de conhecimento do eixo de Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes de Desenvolvimento da Maré 2. O eixo em questão tem como objetivo central que todos os moradores das 16 favelas da Maré compreendam a Segurança Pública e o acesso à justiça como direito em todos os espaços da cidade. Os projetos buscam de forma articulada a ampliação da cidadania dos moradores, assim como a superação da violação de direitos oriundas da violência armada. As ações visam pautar o paradigma vigente na política de Segurança Pública, caracterizado pelo enfrentamento bélico da criminalidade, sob a justificativa de combate e repressão a grupos armados que coDOI - 10.29388/978-65-86678-35-2-0-f.161-178 Assistente Social, mestre pelo Programa de Pós–Graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional, doutoranda no Programa de Serviço Social da UFRJ e Pesquisadora na Redes da Maré. 2 A Redes da Maré é uma instituição da sociedade civil que produz conhecimento, elabora projetos e ações para garantir políticas públicas efetivas que melhorem a vida dos 137 mil moradores das 16 favelas da Maré. A criação da Redes de Desenvolvimento da Maré, instituição da sociedade civil, é resultado de um longo processo de implicação dos seus fundadores com o movimento comunitário no conjunto de favelas da Maré e, também, na cidade do Rio de Janeiro. As ações, pesquisas e reflexões desenvolvidas pela Redes da Maré ao longo de seu percurso, marcado pela atuação de seus integrantes em organizações locais e em outros espaços da cidade, nos diferentes campos das políticas sociais, pautam–se pelo interesse comum de trabalhar, de forma integrada e abrangente, com temáticas relativas à cidade do Rio de Janeiro e, mais especificamente, aos seus espaços populares. Com essa estratégia de atuação, a instituição busca desenvolver projetos dentro de cinco eixos: Arte e Cultura, Desenvolvimento Territorial, Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça, Educação e Identidades e Memória. Fonte: <http://redesdamare.org.br/br/quemsomos/historia>. *

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mercializam drogas ilícitas. O objetivo é que esta realidade seja modificada com a mobilização dos próprios moradores e com parcerias de instituições e órgãos governamentais e não governamentais. O eixo realiza o monitoramento da violência armada no território a partir do projeto “De Olho na Maré”, que atua na coleta de dados sobre violências e violações de direitos a partir da seguinte metodologia: a) coleta de dados sobre violações de direitos in loco, durante os confrontos armados e até 48h depois de seu início; b) articulação de rede de colaboradores locais que reportam e validam evidências sobre as violências ocorridas; c) coleta de dados oficiais; d) levantamento em meios de comunicação de massa e redes sociais; e) produção e manutenção de banco de dados, f) publicação anual do Boletim Direito à Segurança Pública da Maré. O projeto “De Olho na Maré”, surge com objetivo de produzir dados e narrativas sobre os impactos da violência armada nas 16 favelas da Maré que condissessem com a realidade do cotidiano observado. Historicamente, a produção de conhecimento, assim como a narrativa da grande mídia e do senso comum negligenciam ou não demonstram a verdade sobre os impactos negativos da política de segurança pública promovida pelo Estado e vivida pelos moradores no território. Tais análises não partem da realidade material, mas partem de uma ideia formulada com base na ideologia hegemônica de que todo morador de favela tem relação com a criminalidade. Uma ideia sobre a favela, sobre o que é ser favelado e de como a violência é reproduzida nesse espaço. Esse método de análise reduz a realidade concreta e material à subjetividade da consciência cognoscente resultando num conhecimento estigmatizado e desconectado da realidade. O texto deste artigo segue dividido em três pontos: no primeiro, objetivamos destacar as principais contradições do capitalismo e sua necessidade de expansão para acumulação, entendendo que o desenvolvimento do capital acontece de maneira desigual e combinada nos diferentes países. Dessa forma, essa configuração cria diferenças geográficas proporcionalmente à intensidade de investimentos de capitais, garantindo que regiões com abundância de capital fiquem mais ricas enquanto as carentes fiquem mais pobres. No segundo ponto, a ideia é compreender a relação do surgimento das favelas no Rio de Janeiro com o processo de escravidão, assim como destacar a produção do espaço ur162


bano e a criminalização das favelas e territórios populares. No terceiro ponto, trazemos algumas considerações sobre como a ilegalidade da ação do Estado se materializa na Maré. Consideramos que o Estado organiza o espaço urbano numa divisão hierarquizada através do modelo de desenvolvimento geográfico desigual e utiliza a violência como principal elemento de gestão dos territórios desprivilegiados de investimento, onde vive a população mais pobre e majoritariamente negra. 1– DESENVOLVIMENTO GEOGRÁFICO DESIGUAL E AS PARTICULARIDADES DO CAPITALISMO NO BRASIL O capitalismo, apesar de ter se tornado um sistema econômico universal, se caracteriza nas diferentes regiões de maneira desigual e combina. No entanto, para compreender essas particularidades, é necessária uma revisão, ainda que introdutória, sobre os elementos universais da ordem burguesa, seus eixos estruturantes e como esses aspectos se manifestam no tempo e no espaço através da história. O sistema capitalista jamais sobreviveria sem seus ajustes espaciais, pois a “[...] produção do espaço geográfico é fundamental e intrínseca na dinâmica da acumulação do capital e da geopolítica da luta de classes” (HARVEY, 2004, p.81). Por isso, o sistema capitalista tem recorrido às reorganizações geográficas buscando soluções parciais para seus impasses e crises constantes. O crescimento econômico é um processo de contradições internas que de tempo em tempo desencadeiam em crises estruturais que são inerentes a esse modo de produção. Segundo Marx (1867): A contradição, expressa de forma bem genérica, consiste em que o modo de produção capitalista implica uma tendência ao desenvolvimento absoluto das forças produtivas, abstraindo o valor e a mais–valia nele incluídos, também abstraindo as relações sociais, dentro das quais transcorre a produção capitalista (MARX, [1867] 1996, p. 188).

Harvey (2016) argumenta que as crises são manifestações internas do capitalismo e se propõe a analisar 17 contradições que são inerentes a esse sistema. O autor divide essas contradições em: fundamentais, dinâmicas e perigosas. Nesse sentido, a 11º contradição são os desenvolvimentos geográficos desiguais 163


e a produção do espaço. Ponto central para nossas análises nesse ensaio. O autor aponta que o desenvolvimento da tecnologia possibilitou a expansão da produção e concomitante com o aumento da produção, foi fundamental a expansão do mercado para a circulação da mercadoria produzida. Esta circulação denota um sentido de integração do espaço e uma redução do tempo, criando um espaço novo para que o capital possa ser acumulado de forma mais expansiva. Da necessidade de criação de novos espaços para a acumulação, o capitalismo se consolidou plenamente e alcançou uma difusão espacial significativa tornando–se mundialmente um só organismo econômico e político. No entanto, apesar de o sistema capitalista ter se mundializado, sua evolução aconteceu de forma desigual e combinada 3. Cada país entrou na divisão internacional de trabalho sobre a base do mercado mundial capitalista, mas cada nação participou de forma peculiar e em grau diferente na expressão e expansão do capitalismo e teve etapas distintas no seu desenvolvimento. Harvey (2016) destaca os “desenvolvimentos geográficos desiguais” como uma das “contradições mutáveis”, que evoluem de modo diferente e fornecem grande parte da força dinâmica que está por trás da evolução histórica e geográfica do capital. Novack (1988) apresenta um importante ensaio sobre o curso desigual da história, onde pretende sintetizar a partir de um viés teórico, o que denomina uma das teorias fundamentais da história humana, a “teoria do desenvolvimento desigual e combinado”. A essência desta teoria apresenta–se no processo de progresso da humanidade, que o autor entende que a evolução do domínio do homem sobre as forças de produção, acontece de maneira mais lenta ou mais rápida nos distintos países, continentes e demais espaços geográficos, por 3

Segundo Novack (1988), a essência da lei do desenvolvimento desigual está no fato de que o progresso da humanidade, que o autor entende como a evolução do domínio do homem sobre as forças de produção, acontece de maneira mais lenta ou mais rápida nos distintos países, continentes e etc. por questões naturais, culturais e históricas. Essas disparidades causam a expansão ou compressão de determinadas épocas históricas, conferindo diferentes proporções de desenvolvimento aos diferentes povos. A contradição aparece quando percebemos que apesar das peculiaridades, as diferentes formações sociais interagem de forma combinada de modo a produzir um “salto qualitativo” na evolução de seus povos permitindo que cada um desses, sobretudo os “mais atrasados”, adote e assimile formas e elementos provenientes dos outros. Isenta de repetir todas as fases evolutivas das “nações mais avançadas”, as “nações atrasadas”, importam daquelas a última novidade em tecnologia, economia ou política e implantam em condições sociais “arcaicas”.

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questões naturais, culturais e históricas. Essas disparidades causam a expansão ou compressão de determinadas épocas históricas, conferindo diferentes proporções de desenvolvimento aos diferentes povos. Segundo Novack (1988): [...] estas duas leis, estes dois aspectos de uma só lei, não atuam ao mesmo nível. A desigualdade do desenvolvimento precede qualquer combinação de fatores desproporcionalmente desenvolvidos. A segunda lei cresce sobre a primeira e depende desta. E, por sua vez, esta atua, sobre aquela, afetando–a no seu posterior funcionamento. (NOVACK, 1988, p. 10)

A contradição se expressa no fato de que apesar das peculiaridades, as diferentes formações sociais interagem de forma combinada de modo a produzir um “salto qualitativo” na evolução de seus povos permitindo que cada um desses, sobretudo os “mais atrasados” no desenvolvimento do capitalismo, adote e assimile formas e elementos provenientes dos outros. Isenta de repetir todas as fases evolutivas das “nações mais avançadas”, as “nações atrasadas”, importam daquelas a última novidade em tecnologia, economia ou política e implantam em condições sociais “arcaicas”. A combinação só é possível justamente porque o ritmo histórico aparece desigual quando se compara as distintas formações sociais no que se diz respeito ao desenvolvimento da economia, cultura, política, tecnologia e etc. Os “saltos históricos” das “nações atrasadas” acabam por tornar ainda mais contraditórias as realidades econômico–sociais. O processo de desenvolvimento desigual e combinado torna–se indispensável para a acumulação de capital, essencialmente nos países de capitalismo avançado. A ideia de que o processo de desenvolvimento de determinadas formações sociais acaba por conter em si elementos correspondentes a distintas etapas do desenvolvimento de outras formações sociais destaca–se para nos auxiliar na compreensão da particularidade da formação social brasileira. O Brasil não evolui para o capitalismo por causa das suas estruturas econômicas e sociais, o capitalismo só ganhou significado interno após a ruptura com o antigo regime colonial e mesmo assim ainda mantinha condições análogas a organização social anterior, onde repousava o poder econômico dos grandes proprietários rurais, mesmo após o desaparecimento da escravidão. Entretanto é a estrutura 165


agrária dessas nações que fornece ao mesmo tempo a base política e os fundamentos econômicos ou sociais para a absorção inicial do capitalismo. (FERNANDES, 1967) Nessa conjuntura, o arcaico não aparece como resquício de outra temporalidade que cria obstáculos para o desenvolvimento. A presença de elementos anticapitalistas e semicapitalistas que produziria funcionalidade ao capitalismo nos países periféricos; o arcaico seria necessariamente o complemento histórico do moderno. Era necessário a utilização de formas não capitalistas nos países periféricos para a acumulação de capital no mundo globalizado. Aspectos mais arcaicos assim como aspectos mais modernos da estratificação social do capitalismo dependente organizam internamente os interesses socioeconômicos que produzem as classes. A introdução do trabalho assalariado e a consolidação da “ordem econômica competitiva”, no final do século XIX, não liberaram completamente as potencialidades da racionalidade burguesa. Antes promoveram a acomodação de formas econômicas opostas, gerando uma sociedade híbrida e uma formação social, marcada pela modernização do arcaico e pela arcaização do moderno. A modernização equivale a europeização, operando um salto em várias esferas da vida social. Europeização das aspirações das classes dominantes locais que se ajustaram os seus interesses socioeconômicos toscos e imediatistas às estruturas econômicas e políticas das classes dominantes. Dessa forma, a classe dominante brasileira advém tanto dos antigos senhores de engenho que se aburguesaram e se enquadraram na modernização do capitalismo, reatualizando seus laços conservadores e mantendo as estruturas arcaicas do passado, como também de imigrantes europeus que vieram para o Brasil e se estabeleceram como parte da classe dominante. A Revolução Burguesa teria conduzido o Brasil à transformação capitalista, mas não a esperada revolução nacional e democrática. Na ausência de uma ruptura enfática com o antigo regime este cobra seu preço a cada momento do processo, em geral na chave de uma conciliação que se apresenta como negação ou neutralidade da reforma. A monopolização do Estado pela burguesia, tanto econômica, como social e política, estaria na raiz do modelo autocrático, da democracia restrita que marca o Século XX no Brasil. Toda essa realidade consolidou uma forma específica de dominação capitalista, que se particulariza no aprofundamento da barbárie social, da opressão 166


patriarcal, da violência, das dimensões do mundo de trabalho, das formas de opressão e exploração, da relação do Estado com a sociedade brasileira e sobretudo do racismo advindo no período de escravização. 2– A PRODUÇÃO DOS ESPAÇOS CRIMINALIZADOS NO RIO DE JANEIRO E O LUGAR DO NEGRO NA CIDADE Encontramos na cidade espaços diferenciados, que visam definir o lugar de cada pessoa e de cada grupo a partir de um movimento de separação que atribui uma função a cada localidade. As cidades brasileiras são hoje a expressão urbana de uma formação social que nunca conseguiu superar sua herança colonial para construir uma sociedade que distribuísse de forma menos desigual suas riquezas. Sua construção foi marcada pela concentração de terra, renda e poder, pelo exercício do coronelismo ou política do favor e pela aplicação arbitrária da lei. Com a intensidade da urbanização, espaços diferenciados são produzidos, identificando seus moradores de maneira distinta, sendo dividido entre os bairros elitizados e populares. O surgimento das favelas no Brasil é fruto de um desenvolvimento urbano que se caracteriza pela desigualdade de investimento público nas diferentes regiões da cidade. A segregação urbana ou socioespacial é a reprodução geográfica da segregação social, que está diretamente relacionada com a divisão entre classes sociais e grupos étnico–raciais distintos. Dessa maneira, os grupos sociais historicamente postos como subalternos tendem a residir em áreas mais afastadas, menos acessíveis aos grandes centros econômicos e com acesso precário a serviços públicos. No Rio de Janeiro, a formação das favelas tem forte relação com o período colonial. No processo de ruptura com o modo de produção escravocrata, os proprietários de terra passam a se livrar de parte da força de trabalho escravizada, mesmo antes da Abolição. Neste período acontece uma migração da população negra para os centros urbanos. Campos (2005) afirma que no ano de 1821, a população da cidade do Rio de Janeiro era composta por 60% de pessoas negras, entre escravizados e forros. O autor nos diz que a quantidade consi derável de negros na metrópole permitiu a ocupação de áreas que ainda estavam inabitadas próximas às áreas centrais, como os charcos e as encostas dos 167


morros. Essas áreas serviam como lugares ocultos para construção de quilombos. O autor segue sua análise pontuando que o Estado não deu conta de extinguir os quilombos durante o período colonial e imperial, dessa forma, a cidade teve que incorporá–los ao espaço urbano ou rural. Ele avalia que os quilombos como espaço de resistência, em sua modalidade urbana são pouco estudados. Por isso, o eixo central de sua análise é a ideia de que os quilombos se transmutam no espaço da favela contemporânea, entendendo que a população mais pauperizada e marginalizada, através de sua apropriação do espaço periurbano contribuiu e participou da construção do espaço urbano das cidades. Ambas as estruturas espaciais foram e são estigmatizadas ao longo da história sócio–espacial da cidade. Se, no passado, a resistência era constituída em torno do não–aprisionamento dos negros (primeiro ocorrendo apenas com escravos e, posteriormente, com negros que se tornaram livres), ao longo do século XX a resistência aconteceu em torno da permanência nos locais “escolhidos” para moradia. (CAMPOS, 2005, p. 31)

As favelas e territórios populares são o principal alvo de reprodução das diversas formas de opressão, exploração e dominação, produzindo espaços de extrema desigualdade, onde a violência física e simbólica e as violações de direitos humanos fundamentais praticadas pelo Estado se apresentam como regra. A dimensão geográfica é essencialmente importante para a compreensão dessa dinâmica, pois a produção capitalista do espaço é capturada quando nos movimentamos e reproduzimos, no pensamento, as leis ontológicas e objetivas da realidade. Pensar na produção do espaço é dar ênfase na importância do espaço geográfico como mecanismo de manutenção do modelo de desenvolvimento capitalista. Lefevbre (2006) analisa a produção do espaço da seguinte forma: O espaço não é jamais produzido como um quilograma de açúcar ou um metro de tecido. Ele não é mais a soma de lugares e praças destes produtos: o açúcar, o trigo, o tecido, o ferro. Não. Ele se reproduziria como uma superestrutura? Não. Ele seria antes de tudo, a condição e o resultado: o Estado e cada uma de suas instituições que o compõem, supõem um espaço e a organizam segundo suas exigências. O espaço não tem, 168


portanto, nada de uma “condição” a priori de instituições e do Estado que a coroa. Relação social? Sim, decerto, mas inerente as relações de propriedade (a propriedade do solo, da terra, em particular), e de outras partes ligada a forças produtivas (que parcelam essa terra, esse solo), o espaço social manifesta sua polivalência, sua “realidade” ao mesmo tempo formal e material. Produto que se utiliza, que se consome, ele é também meio de produção, redes de troca, fluxo de matéria prima e de energias que recortam o espaço e são por ele determinados. Este meio de produção, produzido como tal, não pode se separar nem das forças produtivas, das técnicas e do saber, nem da divisão do trabalho social que o modela, nem da natureza, nem do Estado e das superestruturas. (LEFEVBRE, 2006, p. 11)

A partir dessa perspectiva, a produção do espaço, historicamente vem acompanhada da estigmatização das favelas e territórios populares. Campos (2005) destaca que o morador de favela é considerado como uma “classe perigosa” por representar o “diferente” na construção do espaço urbano. A cor continua sendo um elemento fundamental, pois o estigma, apesar de ser generalizado nos espaços mais pobres ocupados pela classe trabalhadora, atinge, sobremaneira a população negra e de maneira mais violenta o negro favelado. O controle exercido pelo Estado sobre a parcela mais pobres da sociedade é marcado basicamente pela ação violenta da segurança pública. Uma violência tácita, seja na ocupação do espaço, seja nas ações repressivas utilizada pelas polícias. A narrativa imposta pela ideologia dominante, principalmente expressa pela grande mídia, utiliza palavras e expressões que estigmatizam os territórios e os moradores das favelas, contribuindo para a criminalização desses espaços. Uma vez constituídas como “verdade”, informam condutas e comportamentos de atores sociais. A repetição não é uma coincidência, é um recurso. Algumas palavras e frases repetidas à exaustão nos noticiários de jornais e telejornais, nas revistas, em conversas, ganham estatuto de verdade, transformando em afirmações não contestadas, cujo grau de evidência é pensado como dispensado demonstração. Por força de repetição, tais afirmações passam a fazer parte do imaginário popular. A criminalização do favelado, quando se incorpora à narrativa do senso comum, legitima e justifica os diversos tipos de violência e violações de direitos fundamentais praticados pelo Estado nos territórios de favela.

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O Rio de Janeiro seguiu, historicamente, uma estratégia de repressão e negligência em relação a população mais pobre e não–branca, essencialmente àquela que ocupa as favelas. Temos observado um modelo policial e de segurança pública que fortalece uma lógica de repressão e violência bélica nas fave las, não reconhecendo a população que vive nestes territórios como cidadãos da cidade. Os serviços públicos em geral são ofertados de maneira precária nesses territórios, sobretudo, quando se trata da política de segurança pública. A percepção que os territórios periféricos são violentos por excelência, tendem a reforçar a atuação truculenta do Estado, marcada pela violação sistemática de direitos fundamentais garantidos por lei. 3– ILEGALIDADE DO ESTADO NA FAVELA DA MARÉ: O RACISMO COMO PRINCIPAL ELEMENTO DA VIOLAÇÃO DO DIREITO À VIDA. Por volta de 12h, um jovem de 21 anos foi executado no Morro do Timbau. Ele teria sido baleado na perna com um tiro de advertência, se entregou e pediu para ser enca minhado para delegacia, no entanto, agentes da segurança pública executaram–o com diversos tiros na frente dos moradores do local. (...) Dois homicídios com indícios de execução sumária pelos agentes de segurança pública foram relatados nesta operação. Dois jovens adentraram uma casa no Morro do Timbau para se abrigarem, no momento em que foram surpreendidos por policiais. Os rapazes foram torturados e assassinados à facadas pelos policiais em uma casa, em seguida seus corpos foram carregados em lençóis de moradores (...)Dois homens foram mortos durante a operação: um de 27 e um de 29 anos. Um deles foi morto em uma loja por um grupo de policiais. A família alega que o jovem estava em casa e achou que a operação policial havia terminado. No momento em que foi para rua foi atingido por um disparo na perna e entrou em uma loja para se abrigar quando policiais dispararam mais quatro tiros e o executaram. O outro jovem foi avistado por policiais que se escondiam na laje de uma casa, dispararam contra o mesmo que foi atingido com um tiro no pescoço, ainda que estivesse desarmado.

Fonte: Redes da Maré A partir da pesquisa quantitativa e qualitativa realizada pelo eixo “Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça” foi possível identificar 6 mortes em operações policiais no mês de julho de 2019, no conjunto de favelas da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro. Essas operações caracterizam–se pela ilegali170


dade da ação do Estado, sobretudo pelo grande número de relatos de homicídios com indícios de execução praticados pelos agentes da segurança pública. Todas as mortes são de jovens entre 15 e 29 anos, negros, acusados pelos policiais de envolvimento com grupos armados e por isso sentenciados e executados. Os relatos dos moradores dão conta de que os jovens que morreram estavam desarmados ou se renderam, e ainda assim foram executadas pelos policiais que atuavam no território. Na pesquisa qualitativa foi possível observar a semelhança na descrição dos moradores, ainda que os fatos tenham ocorrido em ocasiões e localidades diferentes. Os depoimentos apresentam um padrão de narrativa onde as mortes são descritas como praticadas por policiais escondidos nas lajes, que aguardam o melhor momento de abater os que consideram suspeitos e recorrentemente reproduzem a fala de policiais que afirmam que: “aqui a ordem é matar!” A equipe do eixo de Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça identificou que as marcas de tiro no local dos assassinatos indicam ausência de confronto, ao mesmo tempo em que a perícia não foi realizada em nenhum dos casos. A resposta das assessorias da Polícia Civil e Militar assumem a narrativa que “suspeitos foram feridos em troca de tiros, socorridos e encaminhados ao hospital”. Narrativa esta, oposta aos relatos dos moradores do território, assim como as informações fornecidas pelos hospitais que afirmam que o paciente chegou em óbito. A dinâmica observada nas operações policiais ocorridas no mês de julho de 2019 no conjunto de favelas da Maré, ilustra o conceito de “necropolítica” cunhado pelo filósofo e cientista político camaronês Achille Mbembe, que questiona os limites da soberania quando o controle da vida está nas mãos do Estado. Mbembe (2018) estabelece uma correlação entre o poder e a morte quando o poder político se apropria da morte como objeto de gestão pública, definindo quem morre, como morre e em que condições morre. A “necropolítica” cria um Estado de exceção que se caracteriza por configurações sociopolíticas em que alguns dos direitos fundamentais dos cidadãos são suspensos em determinadas regiões da cidade. A política de morte estabelecida pela segurança pública, dessa forma, não é um episódio, não é um fenômeno que foge a uma regra. Ela é a regra. Ela se instaura as margens da legislação e ainda que não es teja dentro da jurisprudência, sua prática rotineira faz com que se institua como 171


um modo de existência., onde o Estado não prioriza a vida da população que mora nas favelas e territórios populares, mas sim o seu extermínio. Essa política administrada de morte, reproduzida principalmente pela segurança pública, é uma marca do racismo4 no Brasil. Mbembe (2018) destaca o componente racial como principal elemento dos corpos matáveis. A população negra, sobretudo, os jovens e moradores de favela historicamente são destituídos de valor, postos como subalternos e nem sequer quando morrem aos montes gera comoção social. A formação social brasileira quando vista a partir de uma perspectiva histórica ampla, demonstra que a questão racial sempre foi, tem sido e continuará sendo um dilema fundamental na formação e transformação desta sociedade. Segundo Almeida (2018), o racismo é estrutural no Brasil, dessa forma, constitui a política, a economia e as instituições. “O racismo fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para as formas de desigualdade e violên cia que moldam a vida social contemporânea” (ALMEIDA, 2018, p. 6) De acordo com o monitoramento da violência armada realizado pelo eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré, de 2016 a 2019 aconteceram 129 operações policiais na Maré e, em consequência delas, 92 pessoas foram feridas por arma de fogo, 90 pessoas foram assassinadas, as escolas ficaram 89 dias sem aula e as unidades de saúde tiveram suas atividades interrompidas por 92 dias.

4

A partir da crença na existência das raças naturalmente hierarquizadas cria–se o conceito de racismo por volta de 1920, que se fundamenta na ideia de que a humanidade é dividida em raças com características físicas hereditárias comuns, que determinam as características psicológicas, morais, intelectuais e estéticas. O racismo entende a raça no sentido sociológico, de maneira a hierarquizar grupos sociais com características diferentes. É, portanto a reafirmação de uma ideologia do projeto hegemônico de dominação político–econômico do capitalismo. Na sociedade capitalista tem a importante função de garantir a dominação de classe da forma mais perversa, dividindo a classe trabalhadora em setores que são mais oprimidos e mais explorados. (MORAES, 2016)

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Tabela 1: Violações de direitos em operações policiais na Maré Dias sem atividades Dias Sem nas unidaAula des de saúde

Ano

Número de Operações

Mortos

Feridos

2016

33

17

8

28

20

2017

41

20

41

27

36

2018

16

19

13

10

11

2019

39

34

30

24

25

Total

129

90

92

89

92

Fonte: Redes da Maré O racismo estrutural brasileiro estabelece a banalização da letalidade do jovem negro e morador de favelas e periferias. A violência historicamente vem interrompendo a vida desses jovens ano após ano. Essa realidade se reproduz na Maré tanto em operações policiais, como nos confrontos entre os grupos armados. Em 2017, 88 % dos mortos em decorrência da violência armada na Maré eram pretos ou pardos. Em 2018, esse número subiu para 92%. Já em 2019, 95% dos mortos eram pretos ou pardos. É importante destacar que neste último ano todos os mortos em operação policial pertenciam a esse grupo étnico racial. As operações policiais na Maré têm utilizado a força como o principal e praticamente único instrumento de intervenção. Intervenções essas caracterizadas pela desqualificação, inconsequência e ilegalidade da ação, que impactam negativamente na vida dos moradores e não garante o direito à segurança pública, pelo contrário, aparecem como principal instrumento de violação de direito. A intersecção entre raça, classe social, pertencimento territorial e perfil etário tem sido determinante na produção dos critérios de suspeição na prática da política de segurança pública brasileira. Jovens negros, pobres e moradores de fa173


velas configuram a parcela da sociedade que sofre com as violações de direitos fundamentais, sobretudo a violação do direito a vida. Segundo Mészáros (2018), o problema da violência está, principalmente na ilegalidade do Estado, socialmente fundamentada e sustentada, que emerge regularmente e afirma–se como determinações da crise sistêmica. O autor analisa que a questão da violência, não importa quão grave ela seja, é apenas uma parte do problema mais geral e também muito mais fundamental. As análises de Mészáros (2018) nos ajudam a compreender as deficiências do sentido da lei no atual Estado Democrático quando problematiza a relação entre poder e direito sob as formações estatais do capital. Ao analisar o capitalismo do século XXI, avalia que a lei – base da organização regulatória do Estado – funciona concretamente somente ao afirmar–se como força – ou “lei do mais forte”. O autor questiona, nessa obra “a ilusão da democracia liberal” como promessa de gestão eficiente do capitalismo e como gerência de um Estado Moderno que prometia o bem–estar eterno para todos, a paz e o progresso. Ele evidencia que não se trata de se contrapor ao Estado de Direito, mas con dena o “fetiche” da democracia representativa e seu “vazio legislativo” e constata seu “fracasso” em todos os países. Defende a busca por uma “democracia substantiva”, categoria que prescinde a “igualdade substantiva” na esfera política. Nem mesmo a democracia burguesa em vigor no Brasil, após a década de 1980, foi experimentada pelos moradores de favelas. Nesse território, a violência praticada por agentes da segurança pública ainda se apresentam como regra, e, em períodos de governos autoritários se expressam de maneira ainda mais sistemática. Dessa forma, a vida das 140 mil pessoas que moram na Maré não está resguardada, na prática, por nenhum dispositivo constitucional. Ainda que a segurança seja um direito fundamental, que os cidadãos e a sociedade possuem de se sentirem protegidos, a sensação de insegurança é constante entre os moradores das 16 favelas que compõem a Maré, seja por conta da disputa entre os grupos armados que atuam no território ou em decorrência das frequentes operações policiais. Dessa forma, o Estado democrático de direito no Brasil apresenta uma democracia geograficamente desigual.

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4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS As análises apresentadas no texto procuraram compreender como as estratégias de enfrentamento das crises do capital impactam nas diferentes regiões geográficas que são desenvolvidas desigualmente. A dialética entre as escalas geográficas e a produção capitalista é o que nos permite entender a produção capitalista do espaço. O desenvolvimento geográfico desigual no Brasil está diretamente relacionado às desigualdades socioeconômicas e, portanto, a desigualdade racial. As dimensões de raça e classe determinam o local de moradia dos indivíduos, dessa forma, a população negra aparece como a grande massa da periferia. O processo de urbanização contribui para agravar as desigualdades e, nesse sentido, o aumento das favelas está diretamente relacionado com a pobreza urbana e o modelo de consumo vigente. A produção dos diferentes espaços na cidade determina como o Estado atua em cada um deles. A Constituição Federal de 1988 estabelece que os direitos fundamentais são válidos para toda a população. Esses direitos advêm da própria natureza humana, daí seu caráter inviolável, atemporal e universal. Os territórios de favela fazem parte da cidade e do país e até o presente momento desconhecemos uma Constituição Federal diferente para diferentes espaços da cidade, sendo assim, os princípios do Estado democrático de direito deveriam imperar nas favelas como em qualquer outro espaço do território nacional. A violência e as diversas violações de direitos vivenciadas pelos moradores da Maré aparecem como a principal característica da ação do Estado nesse território, sobretudo a violação do direito à vida dos jovens negros. A Ação Civil Pública da Maré5 (ACP–Maré) e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635 (ADPF das Favelas) aparecem como possíveis alternativas paliativas que contribuem com a redução desses números. A Ação Civil Pública da Maré é uma ferramenta processual e jurídica, prevista na Constituição Federal, que trata de direitos difusos e coletivos. Foi a primeira ação judicial coletiva sobre Segurança Pública para favelas do Brasil que determinou o cumprimento de uma série de medidas que visam a redução de danos e riscos durante as operações policiais. As medidas apesar de sancio5

Ver mais em: < https://www.redesdamare.org.br/br/info/49/acao–civil–publica–da–mare >.

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nadas, nunca foram de fato cumpridas pelo Estado, o que demonstra a fragilidade do sentido da lei, no entanto, a ACP Maré aparece como uma importante ferramenta de mobilização e incidência política para os moradores da Maré que refletiram na redução dos impactos da violência. Entre 2017 e 2018, período em que a liminar foi concedida pelo poder judiciário, o eixo “Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça” identificou uma redução das operações policiais que chegou a 61%. Pois o número de operações policiais caiu de 41, em 2017, para 16, em 2018. E os confrontos entre os grupos armados reduziram 43%, os dias sem aula 71% e os dias sem postos de saúde 76%. Assim como a ACP da Maré, a ADPF das Favelas é um instrumento jurídico, com objetivo de impedir que o poder estatal pratique condutas que firam a Constituição e ataque os direitos da população que vive em favelas e territórios populares, em momentos de operações policiais no estado do Rio de Janeiro. A partir da ADPF, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, no dia 5 de junho de 2020, em decisão liminar, determinou a suspensão da realização de operações policiais em favelas do Rio de Janeiro durante o período de pandemia, salvo em casos de excepcionalidade. Os números do monitoramento da violência armada da Redes da Maré demonstraram um impacto significativo após a decisão do ministro. A partir dos números coletados pela Redes da Maré, ao compararmos os meses de junho e julho de 2019 e 2020, percebemos que em junho de 2020, após esta decisão, o número de operações policiais caiu 75%, o que resultou em uma diminuição de 5 mortes, em junho de 2019, para nenhuma, em junho de 2020. Já em julho de 2020, o impacto foi ainda maior. Em 2019, ocorreram 5 operações policiais nesse mês, que resultaram em 6 mortes. Já em 2020, não se registrou operações policiais nem mortos nesse período. A partir da comparação entre o mesmo período dos dois anos, estimamos que as medidas tomadas pela ADPF no período de pandemia salvaram, pelo menos, 11 vidas de moradores da Maré. O racismo é estrutural, intrínseco a formação social brasileira e reproduzido pelas instituições, só podendo ser superado com uma transformação que seja também estrutural. No entanto, diante dos dados de violência é necessário e urgente fortalecer os mecanismos que ampliam formas de acesso à justiça, espaços democráticos e de participação social, como a ACP – Maré e a ADPF das favelas. Interromper a tragédia dos crimes contra a vida é condição 176


necessária e urgente para a construção de uma sociedade democrática e com equidade. REFERÊNCIAS ALMEIDA, S. L. de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018. CAMPOS, A. de O. Do quilombo à favela – A produção do “Espaço Criminalizado” no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Bertrand, 2005. FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes. Dominus Editora: São Paulo, 1965. ______. Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento. São Paulo, Livraria Ler, 1967. HARVEY, D. Espaços de Esperança. São Paulo: Edições Loyola, 2004. ______. 1935 – 17 Contradições e o fim do capitalismo. 1. ed. Trad. Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo, 2016. LEFEBVRE, H. A produção do espaço. Trad. Grupo “As (im) possibilidades do urbano na metrópole contemporânea”, do Núcleo de geografia urbana da UFMG (do original: La producion de l’espace. 4. ed. Páris: Primeira versão, 2006. REDES DA MARÉ. Boletim Direito à Segurança Pública na Maré. Rio de Janeiro, Redes da Maré, 2016. Disponível em: <https://www.redesdamare.org.br/media/downloads/arquivos/BoletimSegPublica.pdf>. Acesso: 18 set. 2020. ______. Boletim Direito à Segurança Pública na Maré. Rio de Janeiro, Redes da Maré, 2018. Disponível em: <https://www.redesdamare.org.br/media/downloads/arquivos/BoletimSegPublica2018.final.pdf>. Acesso: 18 set. 2020. ______. Boletim Direito à Segurança Pública na Maré. Rio de Janeiro, Redes da Maré, 2019. Disponível em: <https://mareonline.com.br/wp–content/uploads/2019/08/BoletimSegPublica_EdicaoEspecial.pdf>. Acesso: 18 set. 2020.

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______. Censo Populacional da Maré. Rio de Janeiro, Redes da Maré, 2018. Disponível em: <https://www.redesdamare.org.br/media/downloads/arquivos/CensoMare_WEB_04MAI.pdf >. Acesso em:28 out. 2020 . MARX, K. O Capital. São Paulo, Editora Nova Cultura Ltda, [1867]1996. MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: N–1 edições, 2018. MÉSZÁROS, Í. A montanha que devemos conquistar: reflexões acerca do Estado. São Paulo: Boitempo Editorial, 2018. MORAES, C. B. Ressuscita São Gonçalo: a luta por moradia na Ocupação Zumbi dos Palmares do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. 2016. . Dissertação (Mestrado em Serviço Social e Desenvolvimento Regional) – Escola de Serviço Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016, f, 180 . NOVACK, George. A Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado da Sociedade. São Paulo, Editora Rabisco, 1988.

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VIII

SERVIÇO SOCIAL E MOVIMENTOS SOCIAIS: DESAFIOS EM TEMPOS DE RECRUDESCIMENTO DO CONSERVADORISMO* Sabrina dos Santos Dias1

INTRODUÇÃO A articulação do Serviço Social com movimentos sociais constitui uma necessidade, permeada de desafios, desde a conformação do atual Projeto Ético–Político2 da profissão. O novo perfil profissional apontado e os compromissos éticos estabelecidos, em especial a partir do movimento de reconceituação e a aproxima à teoria crítica, indicam, necessariamente, uma vinculação com as lutas da classe trabalhadora. Isso não significa, no entanto, que esta seja uma realidade vivenciada de forma ampla no âmbito profissional e da formação. Desse modo, esse é ainda um desafio, e uma tarefa, para a formação e ação profissional. A história de desenvolvimento do capitalismo, da burguesia e do Estado no Brasil é demarcada pelas feições conservadoras e autoritárias, derivadas de um sistema tardio e dependente, o que, por si só, impõe contradições à organização dos trabalhadores. Ainda assim, ao analisar a formação brasileira, desde sua gênese, há processos de resistência dos segmentos de classes exploradas, que são fundamentais para a construção das conquistas sociais existentes– ainda que, atualmente, em processo de desmonte. Ou seja, apesar das condições adDOI - 10.29388/978-65-86678-35-2-0-f.179-196 Assistente social, Mestranda do Programa de Pós Graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional/ UFF e Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Favelas e Espaços Populares. 2 Entende–se como o projeto profissional hegemônico o chamado Projeto Ético–Político do Serviço Social (PEP) brasileiro, construído a partir da década de 1980. Este representa a configuração de um novo perfil do Serviço Social e estabelece vínculo ao projeto societário da classe trabalhadora e suas lutas pela emancipação humana (NETTO, 1999). *

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versas das lutas sociais, marcam a história do país e de organização da classe trabalhadora. Entretanto, como uma especificidade de uma nação da periferia do capitalismo internacional como a brasileira, as respostas dadas pelo Estado e pela burguesia, absorvendo parte das demandas dos trabalhadores e as ressignificando, atuaram historicamente como fatores limitantes aos processos organizativos da classe. Com a crise do capital que tem início na década de 1970, e que se agrava de sobremaneira a partir da década de 1990, são impostas contrarreformas ao Estado, a partir das diretrizes do Consenso de Washington de 1989 e do projeto neoliberal, que fortalece o conservadorismo e o autoritarismo. Especialmente nos últimos anos3, há intensificação da ofensiva à organização dos trabalhadores, ampliando, assim, os desafios aos movimentos sociais, e a articulação do Serviço Social a esses processos. A aproximação aos movimentos sociais, tanto no fazer profissional como na formação, é hoje uma das questões centrais postas para a categoria. O horizonte é árido para as organizações da classe trabalhadora, assim como para as universidades públicas – espaços privilegiados para essa imbricação. Contudo, contraditoriamente, exatamente pela ampliação dos desafios e ataques das classes dominantes, é que a busca por essa vinculação se faz ainda mais necessária. Para os assistentes sociais, estar vinculado aos movimentos sociais é crucial tanto para manter vivo o Projeto Ético–Político, quanto enquanto parte da classe trabalhadora, diretamente impactada com os avanços do conservadorismo. Assim, a primeira parte deste texto abordará aspectos centrais da crise do capital e da contrarreforma do Estado, bem como a discussão sobre conservadorismo, aspecto intrínseco a formação social brasileira, e a relação com o Serviço Social. Em um segundo momento, será abordada a relação do Projeto Ético–Político do Serviço Social e os movimentos sociais, indicando os principais desafios a essa aproximação. Como espaço fértil de possibilidades de fomento a essa articulação serão indicados aspectos acerca da formação em Serviço Social. 3

As eleições de 2018 no Brasil podem ser consideradas espectro mais marcante desse processo, entretanto, deve–se indicar que o fortalecimento recente do conservadorismo no Brasil iniciou–se anos antes, após as manifestações de junho de 2013. A eleição de um governo de extrema direita apenas tornou–se possível por ter havido um aprofundamento social de pautas sociais, políticas e econômicas simpáticas a essa vertente.

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1– CRISE DO CAPITAL, AVANÇO DO CONSERVADORISMO E SERVIÇO SOCIAL No Brasil, principalmente a partir da década de 1990 há o aprofundamento da crise cíclica do capital, que mundialmente teve seu início na década de 1970. Passa a ocorrer também a implantação e espraiamento do neoliberalismo, que gesta transformações em todas as esferas sociais. Uma das características dessa nova fase do capitalismo é o recrudescimento do conservadorismo, em distintos âmbitos da vida social. Não obstante, esse período é demarcado também pelas lutas sociais, provenientes dos movimentos da década de 1980 e da construção da Constituição Federal de 1988 (CF/88). O ideário neoliberal4 e a reestruturação produtiva baseada em modelo de acumulação flexível, como aponta Imbiriba (2016), engendra uma série de reformas pró– mercado e o espraiamento destas orientações para os países da periferia, tendo como expressão desse processo o chamado Consenso de Washington de 1989. Este fora realizado, principalmente, pelos organismos multilaterais como a Organização das Nações Unidas (UNESCO) e o Fundo Monetário Internacional (FMI), e condicionaram a concessão de auxílios financeiros a esses países à aceitação e implantação da agenda neoliberal, baseado nas ideias de livre mercado e reorganização de intervenção na esfera social. Na esfera produtiva, a acumulação flexível estabelece processo de flexibilização e precarização dos processos de trabalho, intensificando a retirada de direitos trabalhistas no mundo todo e intensificando a articulação entre o moderno e o arcaico com a conjugação de diferentes formas de exploração e aviltamento da força de trabalho. As medidas adotadas pelo neoliberalismo, nos países centrais pós 1970 e no Brasil após 1990, significaram retrocessos para a classe trabalhadora e seus processos organizativos. Tais medidas foram difundidas amplamente como sen-

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O neoliberalismo consiste na resposta do capital a mais uma de suas crises cíclicas. A sociabilidade neoliberal acarreta modificações nas esferas produtivas, políticas e sociais. O neoliberalismo significa aprofundamento de uma sociabilidade em que valores de competitividade e individualismo reverberam–se. Ver mais em: ANTUNES, R. Dimensões da crise e metamorfoses do mundo do trabalho. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, ano XVIII, n. 50, 1996.

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do reformas fundamentais para reestruturar a sociedade da crise. Entretanto, de acordo com Behring e Boschetti (2011): Embora, o termo reforma tenha sido largamente utilizado pelo projeto em curso no país nos anos 1990 para se autodesignar, partimos da perspectiva de que se esteve diante de uma apropriação indébita e fortemente ideológica da ideia reformista, a qual é destituída de seu conteúdo redistributivo de viés social democrata, sendo submetida ao seu uso pragmático, como se qualquer mudança significasse uma reforma, não importando seu sentido, suas consequências sociais e sua direção sócia histórica. (BEHRING; BOSCHETTI, 2011, p. 149)

Tais alterações denominadas reformas possuem caráter reacionário e, portanto, o uso deste nome é indevido. Reformas são, pois, conquistas da classe trabalhadora, como os direitos sociais e políticas. O neoliberalismo significa, deste modo, o aprofundamento de uma sociabilidade em que valores de competitividade e individualismo reverberam–se. O contexto neoliberal no Brasil apresenta também a acentuação da perspectiva autoritária do Estado e da burguesia. Ianni (1984) explicita que a formação social brasileira teve sempre como característica o autoritarismo e arbítrio do Estado e das classes dominantes. O autor indica que na história do Brasil e marcada por uma contrarrevolução burguesa permanente, ou seja, uma ação autoritária permanente desses setores em uma antecipação, e coerção, de movimentos populares que poderiam ameaçar o status quo. “Todas as formas históricas do Estado, desde a Independência até o presente, denotam a continuidade e reiteração das soluções autoritárias, de cima para baixo, pelo alto, organizando o Estado segundo os interesses oligárquicos, burgueses, imperialistas.” (IANNI, 1984, p. 11) Períodos de democracia no país são frequentemente interrompidos por intervenções autoritárias, o que é emblemático na conjuntura política atual. Seja impondo–se pela violência, seja antecipando–se na adoção de medidas paliativas, seja cooptando lideranças e organizações, com frequência as classes e frações das classes dominantes impõem–se aos grupos e classes subordinados, na cidade e no campo. De modo algum, como salienta o autor supracitado, esse processo de autoritarismo representa uma organização enfraquecida dos trabalhadores, mas ao contrário, um Estado e classes dominantes duramen182


te opressores. Esta é, pois, uma das razões para que esforços sejam direcionados na criação de estratégias de resistência e organização, que possam responder a realidade de repressão. Cabe aqui ressaltar a concepção de Estado que se parte nesse trabalho. Como já apontado, entende–se Estado de forma oposta a visão se uma superestrutura imparcial às classes. O Estado para o marxismo, é compreendido a partir da materialidade, opondo–se ao idealismo. O conjunto das relações de produção é a base econômica da sociedade, e sobre esta e a partir desta se eleva uma superestrutura jurídica, política e de consciência social, como aponta Marx (2007) onde pode–se entender as representações do Estado. O Estado classista tem essencial função, como forma de manutenção do status quo, podendo, em alguns momentos absorver parcialmente demandas dos trabalhadores, sem, no entanto, perder suas características basilares, como afirmava Marx, como comitê da burguesia. O autor italiano Antonio Gramsci fornece orientações importantes para conceber o Estado, principalmente em fase de alta complexificação da sociedade. Para Gramsci, como aponta Coutinho (1996), o Estado é conformado pela sociedade política, composta pelos aparelhos coercitivos, com monopólio do uso legal da violência, para exercer a dominação; e pela sociedade civil, enquanto conjunto das instituições responsável pelos interesses das classes, de maneira não homogênea e sendo lócus das lutas sociais (aparelhos privados de hegemonia) para exercício da direção ideológica. Nesta perspectiva, o Estado não é um ente em si, mas expressão das disputas entre as classes. Isso significa que, ainda que, a classe dominante possua, em geral, a hegemonia no Estado, ele não é monolítico. Essa conjuntura traz consigo o recrudescimento do conservadorismo, que está intimamente ligado a esse processo de reformulação do capital e do Estado. O conservadorismo deve–se destacar, não é forjado pelo neoliberalismo, apenas aprofundado e colocado em novas roupagens. Ele é parte do modo de produção capitalista, é gestado pelo capital, e atende a seus interesses. Em determinados momentos históricos, em decorrência dos avanços das lutas dos trabalhadores, o conservadorismo é relativamente ocultado, em outros, como o atual, há sua explicitação. Netto (2011) aponta que a partir da década de 1970 há um crescimento acentuado do conservadorismo, relacionado ao neoliberalis-

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mo, com a particularidade de que esse pensamento conservador busca esconder–se, através de narrativas que se propõe progressistas. De acordo com Netto (2011), o pensamento conservador é historicamente determinado, situado a sociabilidade capitalista. No período de Revolução Burguesa e constituição do capitalismo é que surge o pensamento conservador, neste momento possuía um caráter de anticapitalismo romântico, na medida em que expressava os interesses dos setores dominantes do Antigo Regime. Possuía, portanto, um caráter de restauração. Na medida em que a sociedade burguesa se institui efetivamente e este cenário se apresenta como irreversível, a face do conservadorismo se altera, porque o papel da burguesia se transforma. De uma classe revolucionária a burguesia se transforma em classe dominante, e nesse momento seus ideais progressistas transformam–se em particularistas, como destaca a autora. A partir de 1830 inicia–se ataque da classe dominante a qualquer questionamento da ordem, o que tem seu ápice em 1848 com as revoltas dos trabalhadores. Conservadorismo deixa então de possuir um caráter de restauração ao Antigo Regime, para buscar a manutenção da nova sociabilidade, sob o controle da burguesia. No desenvolver do capitalismo, o conservadorismo é traço fundante, e isso se reverbera em todas as esferas da vida social, e incluem–se aí as profissões. O Serviço Social se gesta intimamente relacionado a ordem monopólica burguesa, e deste modo também ao conservadorismo. Compreender as determinações da formação do Serviço Social é essencial para não cair na leitura endógena. Iamamoto e Carvalho (2013) apontam que para compreender o significado social da profissão deve–se analisá–la historicamente situada, “[...] configurada como um tipo de especialização do trabalho peculiar à sociedade industrial.” (IAMAMOTO; CARVALHO, 2013, p. 77) A dinâmica das relações sociais entre as classes influi no Serviço Social, e assim, a intervenção profissional está sempre polarizada pelos interesses das classes, como apontam os autores. Necessariamente, a atuação profissional vai fortalecer um dos dois polos, e tem tido uma tendência histórica a estar imbricada aos interesses dominantes. Todavia, o reconhecimento disto, possibilita a criação de uma intervenção voltada aos interesses dos trabalhadores. De acordo com Adriano e Guazzelli (2016), a reatualização do conservadorismo na sociedade burguesa atual tem ramificações no interior das profis184


sões, apresentado como a pós–modernidade. No Serviço Social, esses desdobramentos impactam diretamente na forma de análise da sociedade e da questão social. Realiza–se uma fragmentação, que a retira da totalidade social, e passa a “tratar” separadamente suas expressões. Em inversão de sentido, atribui–se aos indivíduos a causa das mazelas sociais. Oculta–se que, como ressalta Iamamoto (2001): A questão social diz respeito ao conjunto das expressões das desigualdades sociais engendradas na sociedade capitalista madura, impensáveis sem a intermediação do Estado. Tem sua gênese no caráter coletivo da produção, contraposto à apropriação privada da própria atividade humana– o trabalho–, das condições necessárias à sua realização, assim como de seus frutos. É indissociável da emergência do “trabalhador livre”, que depende da venda da sua força de trabalho como meio de satisfação de suas necessidades vitais. A questão social expressa, portanto, disparidades econômicas, políticas e culturais das classes sociais, mediatizadas por relações de gênero, características étnico–raciais e formações regionais, colocando em causa as relações entre amplos segmentos da sociedade civil e o poder estatal. (IAMAMOTO, 2001, p. 16–17)

Esse cenário político, econômico e social adverso para a classe trabalhadora, e que impacta no interior das profissões, pressiona a categoria de assistentes sociais para um fazer profissional oposto aos compromissos do Projeto Ético–político. Apesar de gestado pelo conservadorismo, no seu desenvolver histórico, a categoria realizou uma inversão de paradigma, que a colocou alinhada aos interesses da classe trabalhadora, ainda que, inevitavelmente, também atendendo demandas das instituições burguesas. Todavia, hegemonicamente foi indicado um compromisso com a superação desta ordem societária, que significou um salto qualitativo para a profissão. Defender essas conquistas, frente ao avanço do conservadorismo, também no interior da profissão, que, obviamente, não é monolítica, demanda estratégias de alinhamento real a classe trabalhadora. Essas, sem dúvida, podem ocorrer no interior das instituições, mas é imprescindível que as ultrapassem, em caminho aos movimentos sociais.

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2– PROJETO ÉTICO–POLÍTICO E MOVIMENTOS SOCIAIS: DESAFIOS E POSSIBILIDADES Algo primordial ao tratar de Projeto Ético–Político é destacar que se trata de uma construção coletiva e algo mutável. Ele é reflexo das relações sociais no tempo histórico, da conjuntura macrossocietária, das lutas sociais, e das disputas no interior da categoria profissional. Entretanto, não raro, ao falar do projeto profissional, apontam–se suas características, quase de maneira mecânica, como se fosse algo imóvel, dado e terminado, de fato, não é sendo fundamental destacar incansavelmente este aspecto. O enraizamento do atual projeto profissional do Serviço Social demanda esforços da categoria, para mantê–lo como hegemônico, visto que está em disputa. A configuração do Projeto Ético–Político depende da direção hegemônica da profissão, que hoje é de caráter progressista, vinculada à crítica radical ao capitalismo e luta pela construção de uma nova ordem societária. Entretanto, a história da profissão remete a outras vinculações. Ou seja, o Serviço Social brasileiro nem sempre esteve atrelado a uma leitura crítica do modo de produção capitalista e compromissado com a superação desta ordem. A profissão surge no Brasil na década de 1930, permeada por valores humanista–cristãos, de propagação do pensamento social católico. Nas décadas seguintes, o Serviço Social se aproxima do pensamento positivista, que apesar de oposto a concepção de realidade adotada hoje, que é o marxismo, em alguma medida significou para os profissionais a aproximação com as ciências sociais e o afastamento da influência católica. Somente a partir do final da década de 1950 e início do decênio seguinte é que tal perspectiva teórica e de atuação começa a ser questionada pela categoria profissional, dando início ao chamado Movimento de Reconceituação do Serviço Social. O Projeto Ético–Político do Serviço Social, de acordo com Netto (1999), tem seu processo de construção iniciado na passagem das décadas de 1970 para 1980, mas sua consolidação como hegemônico pode ser relacionado à década de 1990. O autor explicita que um projeto profissional está necessariamente atrelado a um projeto societário, e que em uma sociedade como a capitalista, estará essencialmente relacionado a uma classe social. Destarte, o projeto do Serviço Social, configurou–se hegemonicamente atrelado a classe trabalha186


dora e, portanto, o compromisso com a construção de uma nova ordem societária. “Os projetos profissionais apresentam a autoimagem de uma profissão, elegem os valores que a legitimam socialmente, delimitam e priorizam seus objetivos [...]” (NETTO, 1999, p. 4) e são construídos coletivamente, no Brasil, o autor identifica esse sujeito coletivo como sendo o sistema CFESS/CRESS, a ENESSO, a ABEPSS e os sindicatos e associações. Pode–se identificar como instrumentos de materialização do Projeto Ético– Político do Serviço Social: o Código de Ética Profissional, a Lei de Regulamentação da Profissão, as Diretrizes Curriculares e as entidades CFESS/ CRESS, ABEPSS e ENESSO. Cada um destes possui fundamental importância para dar capilaridade ao projeto profissional. Como já indicado, os projetos profissionais não são estáticos e perenes, mas estão em constante movimento. Deste modo, esforços para materializá–lo e para legitimá–lo na sociedade e na própria categoria são essenciais. A categoria profissional é arena de disputas, um projeto ser hegemônico não significa ser o único. Os projetos profissionais também são estruturas dinâmicas, respondendo às alterações no sistema de necessidades sociais sobre o qual a profissão opera, às transformações econômicas, históricas e culturais, ao desenvolvimento teórico e prático da própria profissão e, ademais, às mudanças na composição social do corpo profissional. Por tudo isto, os projetos profissionais igualmente se renovam, se modifica. (NETTO, 1999, p. 4– 5)

O atual projeto profissional tem como marco a ruptura com conservadorismo e vínculo real com a classe trabalhadora e princípios como o compromisso com a construção de uma nova ordem societária, a busca pela equidade e justiça social, compromisso com a democracia e negação de todas as formas de preconceito, além de ter na liberdade seu valor ético central. Entretanto, projetos conservadores disputam a direção da profissão. A sobrevivência e fortalecimento deste projeto, segundo Netto (1999), depende tanto da articulação interna da categoria pera lhe dar capilaridade, quanto do fortalecimento da luta geral dos trabalhadores. Desse modo, é essencial que os assistentes sociais estejam imbricados as lutas dos trabalhadores, e 187


ao mesmo tempo, construam internamente maneiras de fortalecer o Projeto Ético–Político. Está colocada a possibilidade de retrocessos no interior do Serviço Social, pois, o movimento da sociedade se reflete e também se encontra dentro do Serviço Social, e assim, as disputas estão presentes no projeto profissional. Deste modo, é impreterível a construção de processos de resistência e defesa do projeto profissional no interior da profissão. De acordo com Duriguetto (2014), uma estratégia do Serviço Social para enfrentar esta ofensiva do capital a classe trabalhadora seria exatamente as intervenções nos processos organizativos e de mobilização popular. Esse tipo de atuação profissional possibilita revigorar o projeto ético–político, mas também a criação de novas formas do próprio fazer profissional. É importante ressaltar que inúmeras são as concepções de movimentos sociais, e que, inclusive perspectivas conservadoras as possuem. Mesmo no interior da perspectiva crítica existem divergências, dada a amplitude e complexidade que compreende a temática. Santos (2008) aponta duas perspectivas acerca de movimentos a partir de Maria G. Gohn e Ana Maria Doimo[A2], que se opõe em um ponto central: a primeira defende que a transformação é possível se ser realizada pela conquista do aparelho estatal, enquanto que a segunda não acredita nesta proposição. Acredita–se aqui que a conquista de setores do aparelho estatal pode ser muito estratégica para luta dos trabalhadores, entretanto, não deve se encerrar nisto. O Estado, enquanto hegemonizado pelos interesses da burguesia, jamais poderá proporcionar a emancipação. Deste modo, o objetivo central dos movimentos sociais, e que deve haver a articulação do Serviço Social, é a superação do modo de produção capitalista. Significa atribuir “ao capitalismo a origem dos problemas e procuram desenvolver estratégias e práticas de luta que modifiquem as estruturas dessa sociedade.” (SANTOS, 2008, p.19) Entretanto, não se deve restringir sua luta no lema “contradição capital/trabalho”, apesar de sua centralidade. A correlação de forças entre as classes sociais é mais complexa, e engendra outras questões como questão de gênero e étnico–racial. Todavia, o cerne das contradições e enfoque da luta pode ser relacionado ao capitalismo. Mattos (2017) aponta que apesar de não ser possível uma definição consensual sobre movimentos sociais, pode–se indicar que todos organizam co188


letivamente algum conflito social. Contudo, os movimentos podem ser gerados de ambos os lados da disputa. Ele alerta, desse modo, que há os movimentos realizados pelas classes exploradas e pelas classes exploradoras. Não necessariamente um movimento social é progressista. Por isso, é fundamental ao falar de movimentos sociais, evidenciar a partir de qual perspectiva se parte. Farage (2014) elenca características importantes para pensar movimentos sociais a partir da teoria crítica, e que representam a perspectiva aqui adotada. Dentre elas aponta–se: 1– surgirem a partir de demandas específicas e fora do espaço produtivo formal; 2– possuir traços da luta classista; 3– autônomos em relação ao governo; 4– realização de ações diretas e; 5– possui norte antica pitalista, apesar de estabelecerem diálogo com o poder público. Assim sendo, o vínculo com os movimentos sociais, de norte anticapitalista, possibilita estar realmente em alinhamento com os interesses da classe trabalhadora. O assistente social possui necessariamente em sua atuação uma face pedagógica, ou formadora da cultura, que em sentido gramsciano, significa a incisão no modo de pensar e agir dos sujeitos, como apontam Abreu, Cardoso e Lopes (2014). Tal pedagogia pode estar relacionada ao controle social ou ter caráter emancipatório. A pedagogia emancipatória, apresenta uma estratégia para a sustentação do Projeto Ético– Político, uma vez que possibilita uma atuação profissional está para além das demandas institucionais, com vistas a fortalecer as lutas dos trabalhadores. As experiências com movimentos sociais são de suma importância para dar sentido ao projeto profissional, bem como para ratificar o compromisso com a superação deste modo de produção. É compreensível que o assistente social enquanto trabalhador tenha majoritária inserção institucional. Contudo, limitar–se a essa esfera é uma questão a ser problematizada. A aproximação real com as lutas da classe trabalhadora é fundamental, pois, em dois sentidos: para fortalecer o projeto ético–político profissional que tem como pressuposto esta articulação; e pelos ganhos da classe trabalhadora em si, pois, é frequente que os assistentes sociais tratem a classe trabalhadora com externalidade, como se não fizesse parte dela, sinaliza Raichelis (2011). A inserção real de assistentes sociais nesses espaços, assim como maior aproximação teórica é perpassada por desafios, e apenas coletivamente é possível criar estratégias que possibilitem essa aproximação. Desde o contexto de 189


precarização do mundo do trabalho e desemprego, até sucateamento das universidades e repressão aos movimentos sociais constituem esses desafios, mas, ainda assim, a partir deles, faz–se necessários moldar caminhos coletivos.

2.1– A tarefa da formação profissional Na perspectiva de que o projeto ético–político estabelece resistência ao projeto hegemônico do capital, torna–se primordial buscar estratégias para fortalecimento daquele, barrando as ondas conservadoras ou reacionárias colocadas em disputa no interior da categoria, fruto das contradições postas nas relações sociais, primando pelo comprometimento com a conquista de direitos e articulação com as formas de resistências da classe trabalhadora. Para tal, a formação profissional é lócus privilegiado para fomentar a articulação do Serviço Social com os movimentos sociais. A ampliação de experiências nestes espaços, assim como uma maior implicação com os debates sobre as lutas sociais propicia significa, além do fortalecimento do Projeto Ético–Político, a reafirmação do projeto de educação que o Serviço Social defende, que está necessariamente imbricado com as demandas coletivas dos trabalhadores, em desfavor a perspectiva elitista de universidade, que lamentavelmente ainda é majoritária no Brasil. Para fomento de estratégias e articulações que materializem o projeto ético– político na atuação profissional a formação tem papel fundamental. Assim sendo, é importante questionar se a formação profissional, apesar de sua direção crítica e progressista, proporciona a necessária aproximação dos(as) discentes de Serviço Social com o debate de movimentos sociais e organização coletiva da classe trabalhadora e se proporciona experiências profissionais nestes espaços.5 Defende–se que Serviço Social pode apresentar contribuições para os movimentos sociais, mas, sem dúvidas tem muito a aprender nesta área. A inserção de assistentes sociais nos movimentos sociais possibilitaria visualizar a 5

Entende–se que o contexto de sucateamento das universidades públicas e ampliação da mercantilização do ensino superior, com ênfase no ensino a distância, são fatores que comprometem esse ensino articulado aos movimentos sociais. Cabe, em estudo específico, problematizar, em grau mais acentuado os desafios para pensar essa aproximação nesses contextos.

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intervenção profissional de maneira inédita e, assim, pensá–la de maneira crítica, problematizando o caráter histórico da atuação profissional, como sinaliza Marro (2014). As Diretrizes Curriculares da ABEPSS de 1996, instrumento importante para formação profissional, trazem como alguns de seus princípios a opção por uma teoria social crítica, com apreensão da categoria totalidade social; a flexibilidade na organização dos currículos; a superação da fragmentação dos conteúdos e a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Trouxe, ainda, uma nova lógica de organização curricular, referenciando a categoria trabalho como central nesta organização. Divide as diretrizes em três núcleos de fundamentação, são eles: 1– Núcleo de fundamentos teórico– metodológicos da vida social; 2–Núcleo de fundamentos da particularidade da formação sócio histórica da sociedade brasileira e 3– Núcleo de fundamentos do trabalho profissional. Entretanto, apesar das Diretrizes Curriculares ratificarem ao longo de todo o seu texto os compromissos apresentados no Código de Ética pode–se perceber uma lacuna preocupante. Na indicação das matérias básicas não aparecem citadas como tais, explicitamente, as questões como de gênero e raça e a temática dos movimentos sociais. Cita–se apenas brevemente dentro da matéria de Acumulação Capitalista e Desigualdades Sociais. Dada a relevância, deveria ter sido atribuída maior ênfase, inclusive de maneira transversal em todos os núcleos de fundamentação. O NEPFE6 realizou uma pesquisa voltada para a relação entre a formação profissional e os movimentos sociais, e parte dela consistiu em analisar os Projetos Pedagógicos das universidades públicas vinculadas a ABEPSS 7, com vistas a perceber de que forma essa temática aparecia. Um dos dados obtidos relaciona–se ao número de disciplinas encontradas que abordam os movimentos sociais. Foram analisadas 22 universidades, e no total foram encontradas 31 disciplinas (obrigatórias e eletivas/optativas) que citavam em suas ementas “movimentos sociais”, entretanto, na análise qualitativa, em apenas 18 delas a temática possuía centralidade.

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Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Favelas e Espaços Populares (NEPFE)–UFF– coordenado pela Prof. Dra. Eblin Farage 7 Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social

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Esses são indicativos de que a discussão de movimentos sociais não é transversal na formação de Serviço Social. Obviamente, que esses dados foram tirados de uma amostra para pesquisa, e que a realidade possui maior complexidade. Ressalta–se que, nas universidades, os projetos de extensão são os espaços de maior aproximação com os movimentos sociais, entretanto, não é a totalidade do corpo discente que acessa esses espaços. A pesquisa realizada, além do dado aqui relatado, evidenciou o afastamento da discussão de movimentos sociais nos cursos de Serviço Social. O questionamento gerado é: se nas universidades públicas vinculadas a Abepss, em que há maior possibilidade e autonomia para relação com movimentos sociais isso não ocorre, qual é o cenário nas universidades privadas e cursos a distância? Se esse debate não é transversal na formação, como indicar a necessidade real de vinculação aos movimentos sociais aos assistentes sociais na prática profissional? 3– CONSIDERAÇÕES FINAIS A exposição realizada aqui teve como objetivo apontar alguns pontos relevantes para pensar a relação do Serviço Social com os movimentos sociais, em tempos adversos. O NEPFE tem realizado pesquisas com esse enfoque desde 2014, com as ocupações do Movimento dos Trabalhadores Sem–Teto em São Gonçalo e Niterói/ RJ, a partir da apreensão de que essa aproximação era algo inédito para a maioria dos pesquisadores, discentes e assistentes sociais formados. A partir disso, percebeu–se que era imperativo trazer à pauta das discussões a importância da inserção nos movimentos sociais. Nos anos seguintes a conjuntura política do país tornou–se adversa a organização política dos trabalhadores, o que evidenciou que essas dificuldades se ampliariam. A tarefa de aproximação aos movimentos sociais como forma de defesa do projeto profissional e como defesa dos interesses da classe trabalhadora, enquanto parte dela, é permeada por obstáculos, intensificados pelo avanço da extrema direita no Brasil. Mas de nenhum modo, isso significa a impossibilidade dessa relação. Contextos assim tendem a levar ao fatalismo, que se reverbera no interior das profissões e nas organizações dos trabalhadores. A contradição posta é que, o fortalecimento dos processos organizativos, mesmo nesta conjuntura, é 192


que pode possibilitar combater o fatalismo. No caminhar e construir das lutas e que maiores possibilidades de organização irão se gestar. Sem dúvida, tornou–se ainda mais desafiador pensar possibilidades de aproximação com os movimentos sociais no cotidiano profissional. Majoritariamente os assistentes sociais atuam em equipamentos do Estado, que endossa e é endossado pelo conservadorismo, e assim, poda novas possibilidades do trabalho. Nas universidades, com o sucateamento e mercantilização, a imbricação nesse sentido tende a ser secundarizada. Todos os obstáculos são reais, e estão postos para que a categoria lhes dê respostas coletivas. Estas podem ser de cooptação aos interesses dominantes, ou de resistência e defesa do perfil profissional construído. Não é possível apresentar aqui respostas conclusas acerca de caminhos a serem realizados pela categoria, pois apenas coletivamente é possível. Pode–se apenas indicar que é necessário avançar do discurso de articulação aos movimentos sociais. Está colocada a possibilidade de que a hegemonia crítica do Serviço Social seja substituída por perspectivas declaradamente conservadoras. REFERÊNCIAS ABEPSS. Diretrizes Curriculares ABEPSS – Brasília, 1996. ABEPSS. Política Nacional de Estágio. Brasília, 2010. Disponível em: <http://www.abepss.org.br/diretrizes–curriculares–da–abepss–10>. Acesso em: 12 set. 2020. ABREU, M. M.; CARDOSO, F. G.; LOPES, J. B. O caráter pedagógico da intervenção profissional e sua relação com as lutas sociais. In: ABRAMIDES, M.B.C e DURIGUETTO, M.L (orgs) Movimentos Sociais e Serviço Social: uma relação necessária. São Paulo: Cortez, 2014, p. 195–213. ADRIANO, A. L.; GUAZZELLI, A. Formação Profissional em Serviço Social: Fundamentos e Desafios Ético–Políticos. Temporalis, Brasília, ano 16, n. 31, p. 237–260,jan–jun. 2016. BEHRING, E. R.; BOSCHETTI, I. Política social: fundamentos e história. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2011.

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IX

AS POLÍTICAS DE HABITAÇÃO NO BRASIL E OS SEUS REBATIMENTOS PARA A CLASSE TRABALHADORA* Maria Caroline da Silva Souza1

INTRODUÇÃO Este capítulo foi elaborado a partir dos estudos iniciados no Núcleo de Estudos Sobre Favelas e Espaços Populares (NEPFE/UFF) e no Trabalho de Conclusão de Curso da graduação em Serviço Social da UFF e aprofundados no mestrado, ainda em curso, do Programa de Pós–Graduação em Serviço Social da UFRJ e no curso de especialização em Cidades, Políticas Urbanas e Movimentos Sociais do IPPUR/UFRJ. Tem como objetivo trazer incursões teóricas sobre a cidade, os diferentes projetos em disputa, analisar e contextualizar a habitação no Brasil, discutindo algumas das políticas de já implantadas e os seus rebatimentos nas condições gerais de vida da classe trabalhadora. A moradia apesar de se constituir como uma necessidade humana e até aparecer na Constituição Federal de 1988 como um dos direitos sociais, sempre foi de difícil acesso a classe trabalhadora brasileira. A fim de saciar essa necessidade, ela tem de enfrentar condições adversas no seu dia a dia, como viver em habitações improvisadas e/ou precárias, dividir o mesmo domicílio com outras famílias, se adensar com outros moradores em um mesmo cômodo ou comprometer boa parte da sua renda mensal com o pa-

DOI - 10.29388/978-65-86678-35-2-0-f.197-218 Assistente Social, especialista em Cidades, Políticas Urbanas e Movimentos Sociais pelo IPPUR/UFRJ, mestranda no Programa de Pós–Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro e integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sobre Favelas e Espaços Populares (NEPFE). *

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gamento de aluguel. Além da possibilidade de ser removida do seu local de moradia caso ele desperte interesse ao capital. O capítulo está dividido em três partes, além desta introdução. Na primeira parte se discute a cidade no capitalismo. Na segunda são abordados os problemas urbanos, especialmente a questão da habitação, a partir da premissa que o problema da moradia se deve a ordem social vigente. Seguido por reflexões sobre a lógica da cidade mercadoria pelos programas de habitação Banco Nacional da Habitação (BNH), o Programa Minha Casa Minha Vida e o recém instituído Programa Casa Verde e Amarela, suas implicações para a classe trabalhadora, e as considerações finais. 1. A CIDADE NO CAPITALISMO Partimos da compreensão de que cidade não surgiu no capitalismo, contudo, foi a partir da transição para o modo de produção capitalista que ela foi ressignificada e adquiriu maior centralidade em relação ao campo. Para a compreensão e análise do desenvolvimento das cidades utilizamos a lei do desenvolvimento desigual e combinado elaborada por Trotsky 2. “Desenvolvimento desigual e combinado” porque integra dois diferentes estágios de desenvolvimento que se amalgamam. No caso, pensando a realidade brasileira, o país se desenvolveu pela combinação entre o moderno e o arcaico. Segundo Florestan Fernandes (2008), intelectual que construiu estudos adensados sobre o tema, existe um traço colonial permanente na formação social brasileira e das demais nações latino–americanas, sendo produtos de um tipo moderno de colonialismo, pois “[...] o subdesenvolvimento não é um estado produzido e mantido a partir de dentro, mas gerado, condicionado e regulado a partir de fora, por fatores estruturais e de conjuntura do mercado mundial”. (FERNANDES, 2008, p. 55). Ou seja, o atraso de algumas nações ou subdesenvolvimento das mesmas é inerente à lógica capitalista. 2

“A lei do desenvolvimento desigual e combinado é uma lei científica da mais ampla aplicação no processo histórico. Tem um caráter dual ou, melhor dizendo, é uma fusão de duas leis intimamente relacionadas. O seu primeiro aspecto se refere às distintas proporções no crescimento da vida social. O segundo, à correlação concreta desses fatores desigualmente desenvolvidos no processo histórico.” (NOVACK, 2008, p. 17–18).

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Este atraso concomitante a modernização se expressa nas esferas macro e micro, Engels (2008) aponta que em nome do crescimento e da industrialização das cidades os ingleses3 tiveram que abrir mão de uma coisa muito importante: a humanidade. O autor também disserta como este processo não foi exclusivo de Londres: O que é verdadeiro para Londres também é para Manchester, Birmingham e Leeds – é verdadeiro para todas as grandes cidades. Em todas as partes, indiferença bárbara e grosseiro egoísmo de um lado e, de outro, miséria indescritível; em todas as partes, a guerra social: a casa de cada um em estado de sítio; por todos os lados, pilhagem recíproca sob a proteção da lei; e tudo isso tão despudorada e abertamente que ficamos assombrados diante das consequências das nossas condições sociais, aqui apresentadas sem véus, e permanecemos espantados com o fato de este mundo enlouquecido ainda continuar funcionando. (ENGELS, 2008, p. 68–69)

Esta cidade desigual é produzida de forma inevitável pelo modo de produção capitalista para beneficiar um pequeno grupo da sociedade, em contraposição aos interesses da maioria da população, a classe trabalhadora. As cidades, tal como ela se apresentam na modernidade, foram projetadas segundo a ideologia burguesa, conforme Lefebvre (2001, p. 107) aponta: Forças muito poderosas tendem a destruir a cidade. Um certo urbanismo, a nossa frente, projeta para a realidade a ideologia de uma prática que visa a morte da cidade. Essas forças sociais e políticas assolam o “urbano” em formação. Pode esse embrião, muito poderoso à sua maneira, nascer nas fissuras que ainda subsistem entre as massas: o Estado, a Empresa, a Cultura (que deixa a cidade perecer, oferecendo sua imagem e suas obras ao consumo), a Ciência ou antes o cientificismo (que se põe ao serviço da realidade existente, que a legitima)? (LEFEBVRE, 2001, p. 107).

Estas forças poderosas a quais Lefebvre se refere colocam seus interesses particulares acima dos interesses da população e os propagam como interesses coletivos. O resultado disto é que “[...] a cidade passa a expressar de forma 3

O autor refere–se à Inglaterra por nesta obra estar analisando A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. Contudo, este processo não foi exclusivo do referido país.

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enfática as desigualdades das relações sociais, cuja consequência na vida dos sujeitos é a degradação de sua humanidade” (FARAGE, 2014, p. 247) Como é próprio das contradições do capitalismo, é a degradação à qual parte da população é submetida que desencadeia as lutas sociais. Com o capitalismo, a cidade tornou–se um campo de luta das classes sociais, pois, enquanto a classe trabalhadora necessita da cidade pelo seu valor de uso – para saciar uma necessidade –, a burguesia se guia pelo seu valor de troca, uma vez que para ela a cidade é uma mercadoria (MARICATO, 2015) Todavia, as lutas urbanas têm encontrado muitos desafios, seja pela criminalização do seu movimento, pela cooptação das lideranças, organizações populares e movimentos sociais por cargos públicos ou pela ilusão da democracia participativa, que é caracterizada por Sanchez (2001) como uma participação meramente contemplativa, já que os grupos dos de baixo não tem tido poder decisório nas políticas urbanas e elas seguem sendo orientadas pelos interesses do capital, sendo remodeladas de acordo com o seu benefício. Nesta virada de século, o que parece explicar a aproximação de certas políticas urbanas é a orientação dos respectivos governos para a transformação das cidades em mercadorias, junto à transformação da base material das cidades para o novo padrão de acumulação, sob as pressões uniformizadoras dos atores hegemônicos para a realização do mundo atual. Como resposta a essas pressões, os projetos de cidade, os modelos de desenvolvimento construídos pelos governos locais junto a agentes privados com interesses localizados, parecem guardar, de fato, semelhanças significativas. (SANCHEZ, 2001, p. 46)

Assim, o desenvolvimento do capitalismo pressupõe uma mercantilização da cidade que tem como uma de suas consequências a disputa de diferentes projetos para ela. No próximo item mostraremos como sempre existiram estes diferentes projetos de cidade, e como na formação social brasileira o lugar da classe trabalhadora sempre foi um lugar subalternizado.

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2. PROBLEMAS URBANOS: A QUESTÃO DA HABITAÇÃO NO BRASIL É no começo do século XX que os problemas urbanos são reconhecidos como tal e se tornam alvo de intervenção. As intervenções se iniciam, conforme destaca Topalov (1996), com os primeiros reformadores de moradias, primeiros urbanistas, assistentes sociais e os filantropos da época que deviam de intervir na realidade das grandes cidades industriais. A sua visão estratégica e o seu objetivo era “[...] mudar a cidade para mudar a sociedade e, particularmente, o povo” (ibid., p. 23) Estes movimentos de reforma foram imprescindíveis para o surgimento das primeiras políticas sociais e urbanas. Tanto na Europa, quanto no Rio de Janeiro, os cortiços eram vistos como lócus da pobreza por concentrarem a tida “classe perigosa”. Os cortiços se constituíam como uma ameaça à ordem social e moral da época e tornaram– se motivo de preocupação para as elites. Se tornam objetos de intervenção por serem vistos como um problema para o controle social dos pobres, ameaça as condições sanitárias da cidade e um obstáculo ao projeto de remodelação urbana e embelezamento da antiga capital do país. Valladares (2000) comenta como esta intervenção nos cortiços, conhecida popularmente como o “bota–abaixo” 4, que fez remoções das áreas centrais da cidade, tem uma relação direta com o desenvolvimento inicial das favelas, pois nessa destruição foi permitido aos seus ocupantes a retirada de madeiras que poderiam ser aproveitadas em outros lugares. Alguns moradores teriam então subido o atual morro da Providência e construído novas habitações depois do desmantelamento dos cortiços. Passada a campanha contra os cortiços, que resultaram no surgimento das primeiras favelas, a atenção se volta para esse novo local geográfico que estava se consolidando como o mais recente território da pobreza. As intervenções nas favelas variam de acordo com o período histórico, sendo frequentemente resumidas nos seguintes marcos da política urbanas: 4

Bota–abaixo foi como ficou popularmente conhecida a reforma urbana e sanitária promovida pelo prefeito Pereira Passos (1902–1906) no centro da cidade do Rio de Janeiro. Esta denominação se deu pelo caráter autoritário que estas reformulações urbanas ocorreram, cortiços, comércios e outros locais de moradia das camadas populares foram demolidos neste processo de urbanização e a população que vivia e trabalhava ali teve que se deslocar para regiões mais longe do centro da cidade ou subir os morros em busca de um novo local de moradia.

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(a) anos 30: início do processo de favelização do Rio de Janeiro e reconhecimento da existência da favela pelo Código de obras de 1937; (b) anos 40: primeira proposta de intervenção, com a criação dos Parques Proletários; (c) anos 50 até meados dos 60: período de expansão das favelas por ausência de uma proposta governamental voltada para elas; (d) meados dos anos 60 a meados dos 70: período das remoções, coincidindo com o período do regime autoritário no país; (e) anos 80: período da urbanização via BNH e agências do serviço público; (f) primeira metade dos 90: período de ausência de ação governamental e retomada do crescimento das favelas; (g) segunda metade dos anos 90: período do programa Favela–Bairro, de regularização e urbanização das favelas cariocas pela Prefeitura do Rio de Janeiro. (VALLADARES, 2000, p. 26)

Existe nas cidades uma diferenciação nos lugares que as classes sociais ocupam, pois os espaços econômicos e residenciais 5 se diferenciam entre si por apresentarem as características dos indivíduos que utilizam seus serviços e neles habitam. Souza (2005) aponta que no caso brasileiro o fator principal que causa esta diferenciação é a renda, ou seja, a área residencial que um indivíduo ocupa está diretamente relacionada a fração da classe trabalhadora a que ele pertence. Esta diferenciação sob o ângulo socioeconômico afeta diretamente a qualidade de vida destas pessoas, pois a classe trabalhadora é obrigada a viver em áreas periféricas e precarizadas, com problemas referentes à educação, saúde, emprego, opções de lazer, pouca circulação de renda, transporte, geralmente com altos índices de criminalidade e alvo de operações policiais violentas. Esta diferenciação sob o ângulo socioeconômico é perpassada no Brasil pelo fator étnico. Em virtude do passado escravocrata do país, boa parte da população das favelas e periferia é negra, descendente dos negros escravizados trazidos da África, que por não contarem com políticas sociais após a conquista da sua liberdade reproduziram o quadro geral de pobreza para os seus descendentes. Entretanto, existe também a auto segregação que é quando o indivíduo escolhe morar longe do centro e do restante da cidade, pois os vê como ameaçadores. Nas grandes cidades a auto segregação está diretamente ligada à busca de segurança por parte da elite. (ibid.)

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Espaços econômicos são os espaços onde se concentram o comércio e os serviços. Espaços residenciais são os utilizados para residência.

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No que se refere a questão do acesso à moradia adequada, a Fundação João Pinheiro (FJP, 2018) no relatório do déficit habitacional no Brasil do ano de 2015 expõe um déficit urbano de 5.572.700 domicílios 6. Concomitante a isto a Pesquisa por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2015, também presente neste relatório, aponta que o Brasil possui 7,906 milhões de imóveis vagos, e 80,3% destes imóveis estão em áreas urbanas. Ao relacionarmos estes dois estudos nos deparamos com uma enorme contradição e com a confirmação de algo que Engels (2015) elucida o problema da habitação não é um problema de falta de construção de moradias, mas da lógica social, conforme o autor explana: Ora, de onde vem a escassez de moradia? Como surgiu? Como bom burguês, o senhor Sax não pode saber que ela é um produto necessário da forma burguesa da sociedade, que sem escassez de moradia não há como subsistir uma sociedade na qual a grande massa trabalhadora depende exclusivamente do salário e, portanto, da soma de mantimentos necessária para garantir sua existência e reprodução; na qual melhoramentos contínuos da maquinaria etc. deixam massas de trabalhadores; na qual violentas oscilações industriais recorrentes condicionam a existência de um numeroso exército de reserva de trabalhadores desocupados, por um lado, e, por outro, jogam temporariamente na rua uma grande massa de trabalhadores; na qual grandes massas de trabalhadores são concentradas nas metrópoles, e isso mais rapidamente do que, nas condições vigentes, surgem moradias para eles; na qual, portanto, encontram–se locatários até para os chiqueiros mais infames; na qual, por fim, o dono da casa, na qualidade de capitalista, tem não só o direito, mas também de certo modo, em virtude da concorrência, o dever de obter por sua casa, sem nenhum escrúpulo, os alugueis mais alto possíveis. Numa sociedade desse tipo, a escassez de moradia não é um acaso; é uma instituição necessária que só pode ser eliminada, com repercussões sobre a saúde, etc., quando a ordem social da qual ela se origina for revolucionada desde a base. (ENGELS, 2015, p. 31)

Conforme enfatiza Harvey (2014) a cidade e a qualidade de vida no capitalismo se tornaram mercadorias para aqueles que podem pagar. À vista disso, o acesso à moradia ocorre mediante a compra ou aluguel de imóveis ou terre6

Esse déficit habitacional é calculado como a soma de quatro componentes: 1) domicílios precários; 2) coabitação familiar; 3) ônus excessivo com aluguel urbano; e 4) adensamento excessivo de domicílios. O cálculo é realizado de forma que não haja contagem duplicada de moradias.

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nos, ainda que o direito à moradia esteja expresso no artigo 6º da Constituição Federal de 1988 como um dos direitos sociais de toda a população. No seu artigo 5º a Constituição estabelece que as propriedades devem cumprir a sua função social e indica um procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante uma indenização em dinheiro. Contudo, apesar de a Constituição preconizar o direito à moradia, as políticas habitacionais não são levadas adiante devido ao processo de Reforma do Estado pós transição ao neoliberalismo. Esta doutrina econômica adotada pelo capitalismo contemporâneo, para se recuperar da onda recessiva iniciada na década de 1970, visa reverter a queda da taxa de lucro e romper com as restrições sociopolíticas que limitam o seu movimento. O neoliberalismo herda algumas características do liberalismo clássico no que remete ao direito à propriedade privada e respeito ao livre mercado, e dispõe de novas características como a expansão das políticas de privatização, demonização do Estado e mundialização do capital. Neste processo de demonização do Estado, ele é posto como incapaz de gerir os serviços públicos de modo que "Na verdade, ao proclamar a necessidade de um "Estado mínimo", o que pretendem os monopólios e seus representantes nada mais é que um Estado mínimo para o trabalho e máximo para o capital." (NETTO; BRAZ, 2012, p. 239, grifo do autor) A consolidação do neoliberalismo no Brasil aconteceu de forma tardia, apenas na década de 1990, devido à forte resistência do movimento operário, sindical, estudantil e popular na década de 1980. É sabido que, a partir de 1990 um amplo processo de “contra–reformas” se inicia, ou seja, um grande processo de retirada de direitos. Este conjunto de reformas neoliberais, ordenadas pela reforma do papel do Estado, desenvolve as bases materiais e ideológicas para a intensificação da mundialização financeira e da mundialização de uma nova sociabilidade burguesa, configurando novas dinâmicas à luta de classes, tanto no que se refere às relações entre centro e periferia do sistema – aprofundando a hierarquização planetária –, quanto em relação às dinâmicas de cada formação econômico–social – ampliando o desemprego e aprofundando as desigualdades. (LIMA, 2005, p. 296)

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O advento do neoliberalismo no Brasil começa durante o governo Fernando Collor de Mello (1990–1992) e se consolida durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC– 1995–2003), que em 1995 publica o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado, elaborado pelo extinto Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE), com os objetivos globais de: · Aumentar a governança do Estado, ou seja, sua capacidade administrativa de governar com efetividade e eficiência, voltando a ação dos serviços do Estado para o atendimento dos cidadãos. · Limitar a ação do Estado àquelas funções que lhe são próprias, reservando, em princípio, os serviços não–exclusivos para a propriedade pública não–estatal, e a produção de bens e serviços para o mercado para a iniciativa privada. · Transferir da União para os estados e municípios as ações de caráter local: só em casos de emergência cabe a ação direta da União. · Transferir parcialmente da União para os estados as ações de caráter regional, de forma a permitir uma maior parceria entre os estados e a União. (BRASIL, 1995, p. 56 – 57)

A promulgação deste Plano, na análise de Lima (2005, p. 219) promoveu significativas mudanças na sociedade brasileira: O Estado deixa de ser o responsável direto pelo desenvolvimento econômico e social, ela produção de bens e serviços, para exercer a função de regulador desse desenvolvimento, transferindo a responsabilidade pela sua execução para o setor privado, através da política de privatização, e para o setor público não–estatal, um setor subsidiado, parcialmente, pelo Estado que executaria serviços não exclusivos do Estado. A reforma do Estado é identificada, portanto, como estratégia fundamental para garantir a estabilidade econômica e o combate à inflação, iniciados com o lançamento do Plano Real e o adequado ajuste fiscal para sanear o Estado brasileiro.

Netto (1996) aponta que no Brasil após década de 1990 ocorrem transformações na sociedade, que afetam diretamente o conjunto da vida social. O autor, resumidamente pontua quatro elementos importantes que expressam suas ideias: 1–) as mudanças nas relações Estado/sociedade civil; 2–) A altera205


ção nas formas de sociabilidade (sociabilidade do mercado); 3–) A alteração na forma de produção, organização e gestão do Trabalho (na esfera da produção, o padrão fordista–taylorista tende a se sobrepor); 4–) A lógica da financeirização. Para além destes elementos, neste contexto a disputa pelos fundos públicos intensifica–se. São realizados cortes nos gastos estatais com direitos e políticas sociais e uma mudança de pauta regressiva, sob os argumentos ideológicos de escassez de recursos, necessidade de conter o déficit público e equilibrar as contas públicas. As políticas sociais, neste cenário são caracterizadas como paternalistas e geradoras de desequilíbrio, que devem ser acessadas via mercado. A consequência disto são as tendências de desresponsabilização e desfinancimento da proteção social pelo Estado. A orientação dos organismos internacionais para a política social é a focalização das ações, com estímulos a fundos sociais de emergência, programas de transferência de renda, bem como o fomento deste atendimento por organizações filantrópicas e não governamentais. A ideia de direito é substituída pela ideia de favor e de assistencialismo. (BEHRING, 2009) Também aparece na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto das Cidades, de 2001, a usucapião, que é o direito de aquisição de uma propriedade pela posse prolongada na mesma. Todavia, assim como o direito à moradia esta garantia legal de nada vale na ordem do capital pelo Estado desempenhar o papel de “comitê que administra os negócios comuns da classe burguesa como um todo” (MARX, 2008, p. 12) e não ter interesse em solucionar o problema da moradia, Está claro como a luz do sol que o Estado atual não pode nem quer remediar o flagelo da falta de moradias. O Estado nada mais é que a totalidade do poder organizado das classes possuidoras, dos proprietários de terras e dos capitalistas em confronto com as classes espoliadas, os agricultores e os trabalhadores. O que não querem os capitalistas individuais tampouco quer o seu Estado. Portanto, embora individualmente o capitalista lamente a escassez de moradia, dificilmente mexerá um dedo para dissimular mesmo que superficialmente suas consequências mais terríveis, e o capitalista lobal, o Estado, também não fará mais do que isso. Quando muito, tomará providências para que o grau de dissimulação superficial que se tornou usual seja aplicado em toda parte do mesmo 206


modo. Vimos que é exatamente isso que ocorre. (ENGELS, 2015, p. 99– 100)

O enfrentamento da questão da habitação quando não está pautado no uso da violência, por meio de remoções, é centrado na construção de novas habitações. Esta é a maneira com que o Estado, no que se refere as políticas de habitação, incorpora algumas das demandas da classe trabalhadora, ao mesmo tempo que preserva os interesses do capital e permite a sua reprodução. “A conciliação de interesses desiguais e contraditórios”, das diferentes classes, “[...] tanto propicia a continuidade e aceleração da produção de mais–valia como permite contornar o agravamento das contradições de classes além dos limites convenientes à vigência do regime” capitalista. (IANNI, 1988, p. 72). A opção por centrar a resposta ao problema da habitação pela construção de novas moradias é o Estado fazendo uso do consenso, o que não quer dizer que ele abandonará o uso da coerção – remoções –, quando for necessário, ele faz uso das duas alternativas para a preservação do status quo, conforme apontou Gramsci (2011). Neste sentido, desde a década de 1960 foram lançados no Brasil três grandes programas em âmbito nacional que visavam, em especial, a aquisição da casa própria ou construção de novas moradias, os quais serão discutidos no item a seguir. 3. A LÓGICA DA CIDADE MERCADORIA: DO BANCO NACIONAL DE HABITAÇÃO (BNH) AO PROGRAMA CASA VERDE E AMARELA (PCVA) Conforme aponta Rolnik (2019), embora já existisse um mercado para a venda de apartamentos desde o final dos anos 1920, no estado do Rio de Ja neiro, e dos anos de 1940, em São Paulo foi somente após a Segunda Guerra Mundial (1939–1945) que surgiu um setor de incorporação imobiliária especializado e profissionalizado atuando como um verdadeiro mercado de residências próprias. A partir dos anos 1950, as incorporadoras poderiam ser empresas associadas a bancos, negócios familiares de construção ou companhias seguradoras e de capitalização. Contudo, apenas em 1964 que se constitui um banco pú207


blico especializado em financiamento habitacional, o Banco Nacional da Habitação (BNH), entre as reformas lançadas pelo governo após o golpe militar. O lançamento do BNH se deu pela coalizão de interesses empresariais, particularmente ligados a construção civil. Antes do golpe militar Lacerda já havia anunciado o compromisso público de instituir um Banco Nacional de Habitação e promover a construção de milhares de casas populares, provendo o trabalhador a proprietário e dando “[...] às classes médias um lugar ao sol”. (MELLO, 1988, p. 76 apud ROLNIK, 2019, p. 282) O BNH foi se transformando em um dos elementos centrais da estratégia dos governos miliares por ter dinamizado a economia através da geração de empregos e fortalecimento da indústria da construção civil. Ao ser convertido em empresa pública, no ano de 1966, o BNH se torna um instrumento privilegiado de financiamento interno da economia do país. Com a criação do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), que se passou a ser o principal funding do BNH, a dimensão financeira do programa foi fortalecida, ao subordinar as decisões sobre quem teria acesso, onde e de que forma iria se investir em habitação à necessidade de remuneração de recursos do fundo. Em parte, isto explica o porquê de entre os anos 1970 e 1986, apenas 30% dos 4,5 milhões de financiamentos habitacionais concedidos através do BNH foram destinados aos setores com menor renda e o início do financiamento de grandes obras de infraestrutura pelo banco. O BNH acabou por ser um programa de crédito habitacional para a compra da casa própria pela a classe média e após 22 anos de existência foi extinto, no ano de 1986, pelo contexto geral de crise do regime militar, e devido à crise na sua liquidez, recessão econômica e o aumento da inadimplência que lhe gerou um rombo, e pela ruptura entre os interesses empresariais e políticos que se articularam para a sua criação. (ROLNIK, 2019) No ano de 2009, pela lei º 11.977, foi implementado o “Programa Minha Casa Minha Vida” (PMCMV), maior programa habitacional da história do Brasil até então, sob a justificativa de solução do problema habitacional. Entretanto, conforme a análise de Boulos (2014), este programa foi lançado para o aliviar o capital imobiliário de uma crise do ano de 20087 7

Essa crise no ano de 2008 estourou nos Estados Unidos da América justamente por causa do mercado imobiliário, nesta época, por conta da especulação imobiliária, muitas casas foram

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O programa foi desenvolvido com o objetivo central de salvar o capital imobiliário, injetando R$34 bilhões em recursos públicos para as empresas privadas. E neste ponto deu certo: as empresas do ramo puxaram a alta da Bolsa de Valores de São Paulo em 2009 e atraíram interesses no mundo todo. Hoje, 75% das ações das maiores construtoras do país estão nas mãos de investidores estrangeiros! (BOULOS, 2014, p. 21–22)

Outro fator que contradiz o argumento de que o maior objetivo do programa foi viabilizar o acesso à moradia pelas camadas populares é referente ao público atendido pelo PMCMV. O programa era dividido em faixas de acordo com a renda familiar, podendo atender famílias com uma renda familiar mensal de até R$7.000,00. Estas famílias da maior faixa de renda, da faixa 3, não contam com subsídios para adquirir imóveis, todavia, tem acesso a uma taxa de juros menor do que a do mercado. Para a menor faixa de renda, constituída pelas famílias com renda familiar mensal de até R$1.800,00, as mais fragilizadas no que se refere a questão da moradia, o que se tinha era o reforço das desigualdades existentes, pois a responsabilidade pela construção das habitações era repassada para a iniciativa privada8. O resultado deste repasse são moradias de baixa qualidade, muito pequenas, longe dos centros urbanos e em lugares periféricos deficientes de serviços públicos, pois a construção destas habitações não era acompanhada de projetos de infraestrutura urbana. Apesar da criação do PMCMV também ter sido importante pelo significativo número de vagas de empregos abertas na construção civil, este programa acabou por piorar a vida nas cidades. Pois os grandes investimentos na construção civil promoveram um boom imobiliário que aumentou o preço da terra, dos imóveis e dos alugueis, tendo como resultado a expulsão dos mais

vendidas a preço acima do mercado, a sua compra era realizada via empréstimos bancários (que tinham como garantia o próprio imóvel). Por um tempo este negócio foi muito lucrativo, entretanto, muitos dos compradores acabaram por não conseguir pagar as parcelas dos empréstimos, neste processo muitas pessoas foram despejadas, bancos declararam falência, e uma crise internacional no setor imobiliário foi desencadeada. A implantação do MCMC aqui no Brasil serviu para aliviar esta crise devido à aquisição de ações por investidores estrangeiros. (BOULOS, 2014) 8 O dinheiro é repassado e as empreiteiras são responsáveis por escolher a localização e as especificações dos empreendimentos.

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pobres para cada vez para mais longe das regiões centrais da cidade, lugar com mais concentração de empregos e serviços públicos. As cidades explodiram horizontalmente, algo que todo urbanista condena, porque você tem de estender a rede de água, esgoto, de transporte. Quem paga por isso? Todos. E os que ganham são muito poucos: as empreiteiras, as incorporadoras imobiliárias e os donos de terrenos. (MARICATO, 20189)

Os despejos foram retomados de forma violenta, além disso favelas localizadas em regiões centrais e alvo de interesse do capital imobiliário se tornaram alvos de incêndios criminosos. Boulos (2015) as metrópoles brasileiras se tornaram, nos últimos anos, grandes produtoras de novos sem–teto. O PMCMV, apesar de ser o primeiro programa habitacional com subsídios do governo federal, foi, na verdade, uma retomada da visão empresarial da política habitacional, por construir mais casas sem levar em consideração o espaço urbano como um todo e a cidade já comprometida com a baixa qualidade (MARICATO, 2015). Enquanto o foco da política de habitação permaneceu na construção de novas moradias, as favelas e periferias permaneceram descuidadas, Maricato (2018)10 destaca que “[...] tem que fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Construir sem regular as áreas já ocupadas gera uma demanda fora da cidade consolidada". Ainda que reforçasse a lógica da cidade mercadoria, o PMCMV possuía uma modalidade voltada aos movimentos sociais, cooperativas, associações ou entidades da sociedade civil sem fins lucrativos, chamada “Entidades”. Esta modalidade propiciou interessantes experiências pelo país devido a construção ou reforma das habitações ficar a cargo das entidades. No caso do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) esta modalidade possibilitou a construção de conjuntos habitacionais com apartamentos de metragem maior que os ofertados na faixa 1 do programa, e planejados de forma coletiva, como o condomínio João Cândido em São Paulo. 9

Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/minha–casa–minha–vida–piorou– cidades–e–alimentou–especulacao–imobiliaria–diz–ex–secretaria–do–governo–lula.ghtml>. Acesso em: 19 ago. 2020. 10 idem

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No Rio de Janeiro, se tem a conquista pelo Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM) da Ocupação Manuel Congo no centro da cidade, localizada em um antigo prédio público abandonado. Esta conquista, que completou 10 anos em 2018, só foi possível a partir de muita luta do movimento, antes de chegarem ao prédio atual as famílias haviam sido removidas de outros dois prédios na cidade. Posteriormente a aquisição do edifício pelo Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), o prédio foi reformado com verbas do PMCMV Entidades. Conforme avalia a coordenadora do movimento, a escolha do prédio não foi aleatória, o movimento acredita que morar no Centro é bom para eles por terem fácil acesso a trabalho, escolas, creches, postos de saúde e comércio, mas também para os cofres públicos por economizarem com grandes investimentos em infraestrutura. O movimento acredita na “[...] ocupação do centro como uma política urbana que deve ser empregada na Região Metropolitana” (CAU/RJ, 2018)11. Esta modalidade do PMCMV foi a primeira a ser extinta, ainda em 2016, após Michel Temer (2016–2018) assumir a presidência. Os acordos já conquistados pelos movimentos sociais e outras entidades foram cancelados e não retomados apesar de toda a pressão realizada pelos movimentos sociais. Porém, ainda houve a entrega de obras que estavam quase finalizadas. Embora o cenário que já não fosse muito positivo para as políticas habitacionais, tem–se experimentado maiores retrocessos com o avanço do conservadorismo reacionário atrelado a ofensiva neoliberal 12. O novo governo que assumiu a presidência, no ano de 2019, extinguiu o Ministério das Cidades, esvaziou o PMCMV no decorrer do ano e em dezembro de 2019 anunciou oficialmente o fim de investimentos na faixa 1 do programa. No final de agosto de 2020 foi enviada para o Congresso Nacional a Medida Provisória (MP) nº 996, de 2020, que institui o Programa Casa Verde e Amarela (PCVA), em 12 de janeiro de 2021, após ter sofrido algumas pequenas alterações, foi promulgado pela lei nº 14.118. A sua finalidade expressa na lei é:

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Disponível em: < https://www.caubr.gov.br/ocupacao–manuel–congo–no–centro–do–rio–e– modelo–para–habitacao–popular/ >. Acesso em: 20 set. 2020. 12 É importante ressaltar que este movimento não é restrito ao Brasil, faz parte do movimento do capital em escala mundial.

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[...] promover o direito à moradia a famílias residentes em áreas urbanas com renda mensal de até R$ 7.000,00 (sete mil reais) e a famílias residentes em áreas rurais com renda anual de até R$ 84.000,00 (oitenta e quatro mil reais), associado ao desenvolvimento econômico, à geração de trabalho e de renda e à elevação dos padrões de habitabilidade e de qualidade de vida da população urbana e rural. (BRASIL, 2021)

Além do financiamento imobiliário, este programa prevê regularização fundiária e melhoria de habitações. Conforme o artigo 25 da lei de sua promulgação, desde o dia 26 de agosto de 2020 todas as operações com benefício habitacional, geridas pelo governo federal, integram o PCVA. Ou seja, o programa mais rebatiza e remodela políticas habitacionais já existentes do que institui algo novo, pois as operações habitacionais continuam a submeter–se às regras da Lei nº 11.977 de 7 de julho de 2009, que instituiu a regularização fundiária e o PMCMV. Dando continuidade a facilitação da venda de imóveis da União a entes privados, a partir da lei do PCVA foi dispensada a necessidade de autorização legislativa específica para isto, desde que parte do imóvel seja destinado a políticas públicas habitacionais, esta destinação ocorrerá por meio de licitação. Cumpridas as contrapartidas expressas no contrato, o ente privado terá liberdade para explorar economicamente a parte do imóvel não afetada por elas. O PCVA conta com três faixas de renda, a faixa 1 contempla as famílias com renda bruta de até R$ 2 mil mensais; a faixa 2 famílias com renda entre R$ 2 e R$ 4 mil; e a faixa 3, famílias com renda entre R$ 4 mil e R$ 7 mil. Para a aquisição de moradia, a faixa 1 terá acesso a uma taxa de juros que pode chegar até 4,75% ao ano e subsídio de até R$ 47.500,00, de acordo com a renda e região onde mora; os subsídios para a faixa 2 podem chegar até R$ 29.000,00, a depender da sua renda mensal e da localização do imóvel; para a faixa 3 são oferecidas atrativas taxas de juros. (CAIXA, 2020). Para a faixa 1 também estarão disponíveis as modalidades de regularização fundiária e melhoria habitacional, e, para as famílias das faixas 2 e 3 com renda de até R$ 5.000,00 a regularização fundiária. No que se refere ao crédito imobiliário, apesar de anunciar a menor taxa de juros da história, e oferecer taxas de juros menores para as Regiões Norte e Nordeste do país, por não oferecer um subsídio forte relembra o pro212


grama de financiamento do BNH, que estava condicionado a concessão de crédito, se configurando como um programa de financiamento para a classe média, por excluir a camada mais pobre da população que não atende aos critérios para fornecimento de crédito, mas que concentra a maior necessidade habitacional. Contudo, apesar de aparentar à primeira vista apenas um retrocesso ao antigo modelo de financiamento empregado durante a ditadura empresarial militar, é imprescindível se atentar para as mudanças. Guerreiro (2020) aponta que em vez de ser um mero retrocesso, o PCVA parece ser na verdade um avanço do setor imobiliário brasileiro em direção as formas mais atuais de acumulação de capital, mais ligadas ao mercado financeiro. Os moldes deste programa abrem mais possibilidades de investimento de capital, pois transforma “[...] o que é bem fixo (casas), em ativos mobiliários, títulos negociáveis no mercado financeiro”(ibid)13. É necessário compreender o PCVA dentro do contexto do atual modelo de acumulação, com a hegemonia da indústria financeira e por ele abrir mais uma possibilidade de investimento de capital. Além de uma alternativa adotada pelo governo federal para a recuperação da economia brasileira, considerando que o setor da construção civil não teve estagnação com a pandemia da Covid– 19. 4– CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme dito no início do texto, as cidades são anteriores ao capitalismo, contudo, foi a partir dele que elas adquiriram o caráter de mercadoria, Ma ricato (2015) afirma que o capitalismo mudou as cidades a tal ponto que hoje é impossível o pensar dissociado delas. O capitalismo vai moldando as cidades em cada período histórico de acordo com os seus interesses. No que diz respeito à habitação da classe trabalhadora, esta nunca foi centro de interesse do capital, por isso que, de um modo geral, os bairros de moradia da classe trabalhadora foram produzidos por ela mesma por meio da 13

Disponível em: < http://www.labcidade.fau.usp.br/casa–verde–e–amarela–securitizacao–e– saidas–da–crise–no–milagre–da–multiplicacao–o–direito–ao–endividamento/ >. Acesso em: 19 set. 2020.

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autoconstrução de moradias, no seu tempo de descanso, e as favelas ou moradias ilegais se constituem como parte estrutural das cidades de países periféricos como o Brasil, não exceções (ibidem). Quando esta área desperta o interesse do capital ocorre a remoção das camadas populares que nela habitam, esta é uma das condições para a evolução da cidade capitalista. Assim, o Brasil experimentou períodos de investimento em políticas sociais e algumas no que tangem a política habitacional, contudo, mesmo os períodos de investimentos na área da habitação não foram suficientes para solucionar o problema do déficit de moradia, pois como Engels (2015) destacou o problema da habitação não é um problema de construção de casa, mas da lógica social. Embora tenhamos vivido períodos de investimentos inéditos na construção de moradias, a escassez aumentou nas grandes metrópoles devido aos novos sem–teto criados pela especulação imobiliária que promoveu um boom no valor dos alugueis e pela reformulação urbana. (BOULOS, 2015). O PCVA começou a valer a partir da data da publicação da MP, contudo, sofreu algumas alterações até a promulgação da sua lei. Por ter sido instituído pouco tempo antes da elaboração deste artigo não se pôde trazer maiores considerações sobre ele. Entretanto, já é possível presumir os desafios que os movimentos sociais e a luta por moradia no Brasil enfrentarão, devido à falta de uma modalidade que os contemple. Ao não integrar os movimentos sociais e entidades organizadas da sociedade civil e não oferecer um forte subsídio, como os até 90% ofertados pelo PMCMV para a menor faixa de renda, o pro grama deixa de fora quem mais precisa ter acesso à moradia adequada. O MTST (2020) após o lançamento do PCVA lançou uma nota oficial onde critica a MP de criação do programa e afirma que vai continuar lutando por uma habitacional que de fato garanta o direito à moradia aos que mais necessitam. REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

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CRISE URBANA E PRODUÇÃO DE SUJEITOS COLETIVOS: A EXPERIÊNCIA DO MTST EM SÃO GONÇALO – RJ* Bruno José da Cruz Oliveira1

1. SÃO GONÇALO: DA MANCHESTER FLUMINENSE AO COLAPSO SOCIO ECONÔMICO O território que atualmente compreende a cidade de São Gonçalo, onde residem segundo o IBGE de 2020 1.090.737 habitantes, está localizado na Região Leste Fluminense. Anteriormente a chegada dos portugueses, a região era habitada pelos índios Tupinambás, também conhecidos como Tamoios. A colonização do território teve como marco inicial a criação de um povoado no contexto de reforço da colonização portuguesa pós–expulsão dos franceses da Baía de Guanabara. O colonizador Gonçalo Gonçalves recebeu uma sesmaria às margens do rio Imboaçú, onde fundou uma capela no local no dia 6 de abril de 1579. Durante o período colonial, a economia gonçalense destacou–se na produção de cana-de-açúcar. Segundo Braga (2006), existia no município cerca de 30 engenhos remanescentes dessa etapa histórica em meados do século XIX. A produção canavieira e demais culturas como o milho, a mandioca e a laranja possibilitaram a construção de portos ao longo do litoral gonçalense, dando nome a alguns dos seus bairros atuais. A emancipação da cidade em 1890, não alterou a sua dinâmica econômica que seguiu assentada sobre a produção agropecuária. Contudo, a partir dos anos 1930 a economia local refletiu as mudanças estruturais da economia DOI - 10.29388/978-65-86678-35-2-0-f.219-238 Assistente Social, mestre e doutor em Serviço Social pelo PPGSS da UFRJ, professor da Escola de Serviço Social–UNIRIO e coordenador do Grupo de Estudos Questão Urbana e Serviço Social da UniRio. *

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brasileira. O deslocamento da acumulação de capital para o eixo urbano–industrial iniciado nesse período colaborou para o município apresentar uma significativa taxa de industrialização nos anos posteriores. De acordo com Aráujo e Melo (2014, p. 8), ao final dessa década, o município registrava cerca de 95 estabelecimentos industriais. A modernização em São Gonçalo produziu um novo ciclo de ocupação do território. Como parte desse processo, a sua urbanização encontrou na expansão dos loteamentos a principal modalidade de conversão das terras rurais em urbanas. A pujante industrialização da cidade, que encontrou entre os anos 1930 e 1950 o seu auge, expressou a expansão da fronteira urbana para o Leste Fluminense reproduzindo, localmente, o padrão desigual e combinado do capitalismo brasileiro. A formação de uma elite política local que pautava o seu poder político apoiada nas atividades industriais, no comércio e no setor imobiliário, impulsionado pelo loteamento de antigas fazendas, foi uma consequência direta desse processo (GONÇALVES, 2012). É importante ressaltar que a inserção de São Gonçalo no circuito da acumulação de capital via produção industrial não produziu rupturas importantes nas relações de poder vigentes no município. Sem contar com a existência de uma burguesia com origem na cidade, uma vez que, as indústrias instaladas no seu território eram, em sua grande maioria, sediadas fora do município, coube aos quadros políticos oriundos da insipiente classe média urbana gonçalense o exercício do poder político sintonizado com a modernização conservadora que se desenvolvia em nível local. Desse modo, podemos afirmar que a corrente política que ficou conhecida, em alusão ao ex–prefeito Joaquim Lavoura, como “Lavourismo”, foi a mais autêntica expressão política desse fenômeno 2. A industrialização em São Gonçalo, no entanto, encontrou no processo de esvaziamento industrial do Estado do Rio de Janeiro o seu maior obstáculo. De acordo com a análise de Araújo e Melo (2014) os setores econômicos que estruturavam a acumulação de capital no território fluminense, notadamente, os 2

O ex–prefeito Joaquim Lavoura governou São Gonçalo por três mandatos tendo o auge da sua popularidade entre os anos 1950 e 1960. Durante os seus mandatos foram realizadas obras de infraestrutura que deram suporte à economia local. Não foi por acaso que no contexto do bipartidarismo outorgado pela Ditadura Empresarial Militar, o ex–prefeito e o grupo por ele liderado, o “Grupo Lavoura”, afiliaram–se a Aliança Renovadora Nacional, partido que representava os apoiadores do regime.

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setores mercantil, na capital e cafeeiro, no interior, esse último em franca decadência, não eram capazes de sustentar um ritmo de industrialização acelerado de longo prazo. As saturações das áreas disponíveis à instalação de plantas industriais de grande porte e a precariedade da infraestrutura no interior do Estado contribuíram para a redução do investimento industrial. Tais fatores, conjugados à escolha do setor automobilístico a partir do Plano Metas 3 como pilar do projeto de substituição de importações, consolidou o Estado de São Paulo como principal centro econômico do país, resultando na gradativa redução do protagonismo econômico fluminense. Ao analisarem as consequências desse cenário em São Gonçalo, os mesmos autores afirmam que: Embora em 1940 São Gonçalo tenha alcançado o nível máximo de participação no produto industrial estadual, registrou, em 1950, um aumento na participação no nível de empregos no setor a uma taxa superior a média estadual. Este crescimento, no entanto, parece ter chegado a um ponto de esgotamento: nos anos seguintes a indústria gonçalense, segue, a partir daí, uma trajetória inexorável de perda de participação relativa, ora crescendo a taxas inferiores à média estadual, ora decrescendo, sem jamais retomar a posição de destaque dos períodos de Manchester4 (ARAÚJO; MELO, 2014, p. 5)

Simultaneamente, várias indústrias instaladas no território gonçalense transferiram–se para outros municípios ou mesmo para fora do Estado. Sem fazer parte como área estratégica de nenhum projeto de desenvolvimento fomentado tanto pela União quanto pelo Estado, São Gonçalo desenvolveu uma dinâmica de urbanização cujas características perduram até os dias atuais: alta densidade populacional e baixo dinamismo econômico. A fusão entre os Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro em 1975, embora concorresse para a integração político–administrativa da Região Metropolitana, não significou a alteração desse cenário. Paralelamente, a facilidade de acesso à capital após a construção da Ponte Rio–Niterói e da BR 101, produziu 3

O Plano Metas foi um programa de industrialização posto em vigor durante o governo de Juscelino Kubitscheck que tinha como objetivo central acelerar o processo de industrialização do Brasil via associação com o capital estrangeiro. 4 O sentimento ufanista correspondente ao auge da industrialização em São Gonçalo gerou o apelido de “Manchester fluminense” para a cidade, em alusão ao centro industrial localizado na cidade de mesmo nome na Inglaterra.

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um novo ciclo de expansão dos loteamentos. Desse modo, novas áreas foram convertidas em loteamentos como é o caso dos bairros Jardim Catarina e Trindade. Aos novos loteamentos, associaram–se ocupações informais caracterizadas por Corrêa (1993) como urbanização popular. Essa dinâmica indicou o aprofundamento da integração do Leste Fluminense ao processo de metropolização do Rio de Janeiro (GONÇALVES, 2012). O esgotamento do modelo de desenvolvimento associado (IANNI, 1975) imposto pela ditadura empresarial–militar articulado ao ajuste neoliberal durante os anos 1990 produziu um contexto de intenso refluxo da atividade industrial no país. Todavia, os 20 anos de crise econômica e social encontraram, na primeira década do século XXI, um momento de exceção. Apoiado no ciclo de exportação das commoditties a atividade econômica brasileira registrou uma significativa expansão. O Estado do Rio de Janeiro apresentou um importante crescimento das atividades ligadas à extração e refino de petróleo. Simultaneamente, os empreendimentos preparatórios dos megaeventos, com destaque para o Pan Americano 2007, a Copa do Mundo 2014 e os Jogos Olímpicos 2016 contribuíram para o incremento da cadeia produtiva ligada à construção civil, bem como, estimulou a expansão do setor de serviços. Esse cenário impactou o Leste Fluminense e produziu expectativas em torno de um possível renascimento industrial na região. A construção do COMPERJ (Complexo Petroquímico do Estado do Rio de Janeiro) e do Arco Metropolitano5, foram as bases fundamentais desse processo de desenvolvimento econômico que se expressou no crescimento das indústrias químicas, de alimentos, naval, construção civil e no incremento do setor de comércio e serviços. Nesse sentido, durante a última década se desenvolveu um cenário de expansão da economia local que produziu a relocalização de São Gonçalo na dinâmica socioeconômica da região metropolitana do Rio de Janeiro. O anúncio oficial das obras da Linha 3 do Metrô, pelos governos Federal e Estadual em 2013 que ligaria a cidade a Niterói e Itaboraí, atendendo, fundamentalmente, a 5

Concebido na década de 1970, o “Arco Metropolitano” é a forma como ficou conhecida popularmente a Rodovia Raphael Almeida Magalhães (BR–493). Projetada para interligar o Complexo Petroquímico do Estado do Rio de Janeiro e o Porto de Itaguaí atravessando a Baixada Fluminense, o seu primeiro trecho foi construído entre 2008 e 2014 ligando as rodovias BR–040 e Rio–Santos. A segunda etapa da sua construção permanece paralisada desde 2015.

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população gonçalense, corroborou esse processo. Segundo o IFDM 6 (Índice Firjan de Desenvolvimento Municipal), o município manteve ao longo da segunda metade dos anos 2000 um crescimento do emprego e da renda que variou entre 0,65 e 0,71, atingindo o seu ápice em 2008, quando chegou a 0,718. Esses dados vão ao encontro da pesquisa realizada pelo CEPERJ (Fundação Centro Estadual de Estatísticas e Pesquisas e Formação de Servidores Públicos do Rio de Janeiro) que colocou São Gonçalo entre os cinco municípios que mais contribuíram diretamente para o Produto Interno Bruto do Estado do Rio de Janeiro em 2009. A expansão econômica registrada produziu mudanças nos índices sociais do município. Todos os dados divulgados pelo Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil – 2013 registraram uma sensível melhoria nas condições de vida dos gonçalenses. A renda per capita municipal que era de R$ 539,00 em 2000, atingiu em 2010 R$ 669,30. No mesmo período, a porcentagem da população extremamente pobre caiu de 3,03% para 1,55%. A desigualdade social medida pelo índice de Gini caiu de 0,47 para 0,43. A taxa de desocupação entre a população acima de 18 anos reduziu de 17,48% no início da década para 9,92% em 2010. A formalização dos empregos atingiu 67,91% sendo o setor terciário o maior empregador da economia local reunindo, respectivamente, 18,63% e 53,75% dessa população. A crise econômica que eclodiu no centro capitalista em 2008 provocou a desaceleração da economia mundial. Frente ao quadro de recessão internacional, os governos Lula da Silva (2003–2011) e Dilma Roussef (2011–2016) lançaram mão de medidas anticíclicas como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) e a redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para manterem a economia brasileira aquecida, apostando na ampliação do mercado interno. Porém, a queda brutal dos preços das commodities no mercado internacional não permitiu que tais medidas surtissem efeito para além do médio prazo. A tendência de redução do Produto Interno Bruto que já se apresentava em 2011, com uma queda de 3,5% comparado ao ano anterior quando o mesmo atingiu 7,5%, acentuou–se. Em 6

Índice anual criado pela Federação das Indústrias do Rio de Janeiro para medir o dinamismo da atividade econômica nos municípios que compõem o Estado. A sua escala varia de 0 a 1.

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2014 o PIB nacional foi de 0,5% registrando nos dois anos seguintes, crescimento negativo de –3,8% e –3,6%. Com uma economia altamente dependente da atividade petrolífera, a desvalorização do preço do petróleo atingiu, frontalmente, a economia fluminense. Segundo o Boletim de Mercado de Trabalho da FIRJAN publicado em 2018, entre 2015 e 2016 foram fechados 472 mil postos de trabalho. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/2016) o estado possui 1,3 milhões de desempregados. Em levantamento realizado pela Fundação Getúlio Vargas em junho de 2017, na Região Metropolitana, o desemprego atingiu índices acima de 14%, superando a cifra nacional, estimada em 13,7%. No Leste Fluminense a paralisação das obras do COMPERJ contribuiu decisivamente para a recessão da economia da região. Entre 2014 e 2016 o empreendimento acumulou 37 mil demissões segundo dados do Sindicato dos Trabalhadores Empregados nas Empresas de Manutenção e Montagem Industrial de Itaboraí (SINTRAMOM)7. A redução da capacidade de consumo da população tem produzido o fechamento de empreendimentos. Segundo levantamento da ACESG (Associação Comercial e Empresarial de São Gonçalo) entre 2016 e o primeiro trimestre de 2017, cerca de 32 lojas encerraram as suas atividades no município. Atualmente, de acordo com o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados do Ministério da Economia (CAGED), a cidade ocupa o segundo lugar em relação ao número de vagas de emprego fechadas no Estado do Rio de Janeiro em 2019 com 1581 postos de trabalho fechados. Simultaneamente, a cidade sofre com índices crescentes de violência. De acordo com dados do Instituto de Segurança Pública entre 2015 e 2016, o índice de roubo a transeuntes aumentou 82%. Os registros de roubos a celulares cresceram 77%. Os assaltos a veículos de carga aumentaram 162%. Entre os meses de janeiro e agosto de 2016 foram registrados 219 assassinatos, 13 latrocínios, 157 tentativas de homicídio e 19 cadáveres encontrados no município. Em 2018, São Gonçalo registrou o maior número de tiroteios no Estado do Rio de Janeiro segundo o aplicativo “Fogo Cruzado”. Nos três primeiros meses 7

IGGIANO, Bruno. COMPERJ já acumula 37 mil demissões e expectativa dos trabalhadores é que as obras da UPGN sejam retomadas em março. 2016. Disponível em: < https://www.petronoticias.com.br/archives/79492 >. Acesso em: set. 2020.

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de 2019 o Instituto de Segurança Pública (ISP) registrou o aumento de 37% no número de assaltos a transeuntes e no transporte coletivo comparado ao mesmo período em 2017. 2. AS LUTAS POPULARES PATRIMÔNIO (IN)VISÍVEL

DOS

GONÇALENSES:

UM

No que diz respeito às lutas sociais, ao longo da sua história São Gonçalo registrou alguns episódios importantes. O município foi palco da revolta conhecida como Confederação dos Tamoios (1556–1567) que reuniu várias tribos indígenas aliadas aos franceses instalados na colônia França–Antárctica na Baía de Guanabara contra a colonização portuguesa. No século XVII, mais precisamente em 1660, ocorreu a revolta conhecida como "Bernarda" que reuniu os produtores de cana-de-açúcar contra a taxação da produção e do comércio de aguardente imposta pelo então Governador Geral Salvador Correia de Sá e Benevides. A luta contra a escravidão negra também se fez presente no território gonçalense. De acordo com Nunes (2016: p. 2) “uma das marcas principais da nossa cidade foi a sua serventia para abrigar escravos fugidos que, como estratégia, nunca formavam grandes quilombos, mas pequenas unidades espalhadas pelo território para dificultar a repressão.” Segundo o mesmo autor, além de fugas e suicídios, a resistência à escravidão negra incluiu a reação violenta contra os fazendeiros e administradores das fazendas do município. Durante o período imediatamente posterior à abolição da escravatura foram criadas escolas destinadas aos negros recém libertos por intelectuais abolicionistas como nas localidades de Cordeiros (atual Santa Izabel), Itaitindiba e Guaxindiba. A herança das resistências indígena e negra também incluiu expressões culturais locais. No início do século XX, marcado pela criminalização oficial das expressões culturais afrobrasileiras, a cidade sediou o primeiro terreiro de Umbanda no Brasil, a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade, no bairro de Neves. A fundação do Partido Comunista do Brasil – atual Partido Comunista Brasileiro (PCB) – em 1922 na cidade vizinha de Niterói teve reflexos na dinâmica política local. O operariado gonçalense, que experimentava um significativo crescimento devido à expansão industrial na cidade, foi alvo da intervenção 225


político–organizativa dos militantes do partido. Além da organização sindical, os comunistas exerceram uma importante influência na organização comunitária e na dinâmica eleitoral em São Gonçalo durante a redemocratização pós Estado Novo. Em 1945, o eleitorado local, juntamente com o de Niterói, constituiu–se como a principal base eleitoral que elegeu o operário negro Claudino José da Silva para a Assembleia Constituinte e no ano seguinte elegeu três vereadores comunistas para o Legislativo municipal. Ainda marcada por uma significativa presença da economia agrícola, São Gonçalo registrou a atuação movimentos camponeses durante o início dos anos 1960. A ocupação da Fazenda Maria Paula, em 1963, fez parte de uma onda de ocupações de propriedades rurais no Estado do Rio sendo o ápice de um cenário que registrou a intensificação das lutas sociais rurais no Brasil pré 1964. Porém, a repressão política desencadeada pelo Golpe Militar contribuiu de modo decisivo para a desarticulação das iniciativas de organização das classes populares locais. O município sediou um dos mais tenebrosos locais de prisão e tortura localizado no Estado do Rio de Janeiro, a Ilha das Flores, base do Corpo de Fuzileiros Navais da Marinha. A ascensão das lutas sociais ocorridas durante o processo de redemocratização potencializou a retomada das mesmas na cidade. O movimento popular, o movimento sindical, o movimento estudantil secundarista e a pequena, mas atuante, ala progressista da Igreja Católica, impulsionaram a emergência de novos atores políticos na cidade oriundos da incipiente classe média, do operariado urbano industrial e demais segmentos precarizados dos trabalhadores locais. Oliveira (2002, p. 55) ao analisar uma das expressões desse processo afirma que [...] o movimento comunitário não esteve preocupado somente com a conjuntura interna das comunidades, ele percebeu algo muito mais abrangente. As questões sociais de cada comunidade faziam parte de uma conjuntura nacional e que para a melhoria da comunidade as associações de moradores precisavam mudar o modo de se fazer política em seus municípios, modificar a política a nível local.

Esse contexto de efervescência política na cidade se desenvolveu contemporaneamente à ascensão da liderança de Leonel Brizola e da sua agremia226


ção partidária, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) no Estado do Rio de Janeiro pós fusão. No Leste Fluminense, o PDT converteu–se na maior força política pós Ditadura Militar8. Em São Gonçalo, a legenda governou a cidade entre 1988 a 2000 e ainda entre 2009 a 2012 com destaque para os dois mandatos do ex–prefeito Edson Ezequiel. O “brizolismo” caracterizou–se por possuir uma postura ambígua frente aos movimentos populares. Alves (2003, p. 110) ao abordar esse fenômeno na Baixada Fluminense nos fornece uma análise plenamente aplicável à cidade. Ao lado das declarações de Brizola em defesa do povo trabalhador da região, do reconhecimento do abandono do poder público e do caráter predatório da iniciativa privada, desenvolvia–se uma prática cooptativa das lideranças locais emergentes, a aliança com setores por demais ligados aos persistentes modelos de dominação local e as velhas estratégias eleitoreiras e clientelísticas, que tiveram na distribuição espacial e na obtenção de vagas dos Cieps o seu ponto culminante.

Em São Gonçalo, esse cenário contribuiu para a proeminência da intervenção institucional em detrimento da organização popular. Como afirma Oliveira (2002, p. 78), várias lideranças daquele que foi o movimento social mais dinâmico durante a redemocratização pós Ditadura Militar no município foram incorporados pela burocracia estatal. A fragilização dos movimentos sociais, fruto do aprofundamento do cenário de desindustrialização e desemprego nos anos 1990 conjugado às ofensivas ideopolítica e programática neoliberal após o fim da Guerra Fria, impediu que o processo de redemocratização impulsionasse a realização de transformações estruturais que desconcentrassem a renda, a propriedade e o poder no Brasil. Esse fenômeno contribuiu para que partidos políticos que se constituíram a partir de um discurso identificado com os interesses imediatos e históricos dos trabalhadores lateralizassem ou mesmo abrissem mão do seu papel de indutores da organização das classes populares privilegiando a intervenção institucional. O descenso organizativo dos movimentos sociais comprometeu a descentralização político–administrativa pós Constituição de 1988 como instrumento de 8

Além de São Gonçalo, o Partido Democrático Trabalhista também governou a cidade de Niterói durante toda a década de 1990. A figura de maior expressão do partido na região foi o ex–prefeito da cidade Jorge Roberto da Silveira.

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combate ao histórico patrimonialismo que marca o Estado brasileiro, sobretudo na esfera das municipalidades. A participação popular autônoma e consciente cedeu espaço aos mecanismos renovados de clientelismo político associados à precarização dos serviços públicos, processo caracterizado por Soares (2002) como descentralização destrutiva. Nesse sentido, o cenário de organização popular registrado na década de 1980 em São Gonçalo refluiu dando lugar a novas formas de exercício do poder pelas elites locais. A multiplicação dos tradicionais centros sociais, muitas vezes convertidos em Organizações Não Governamentais, paradoxalmente, subsidiadas por verbas públicas através do estabelecimento convênios de prestação de serviços com instituições estatais tornaram–se o principal instrumento de perpetuação do clientelismo no município. O crescimento dos adeptos de igrejas fundamentalistas cristãs, notadamente as pentecostais e neopentecostais, também é um elemento mediador da dinâmica política da cidade que se desenvolve a partir dos anos 1980. Como possuem incontestável influência eleitoral, são, tradicionalmente, instrumentalizados pelas elites locais que, muitas vezes, possuem membros entre as suas lideranças. Todavia, é necessário compreendermos os seus aspectos mais contraditórios. Ao mesmo tempo em que disseminam uma visão de mundo conservadora, essas instituições também se constituem como espaços de resistência à desagregação social provocada pelo aprofundamento das relações sociais no contexto de uma economia de mercado periférica e dependente, reestabelecendo vínculos de pertencimento comunitário e solidariedade social (MACHADO, 1996). Na última década, em meio ao processo de expansão da economia local, assistimos um insipiente renascimento das lutas sociais. No campo da luta pelo direito à educação pública de qualidade registramos a rearticulação do movimento estudantil secundarista gonçalense. Desarticulado desde meados da década de 1990, quando teve destaque no movimento pelo impedimento do ex– presidente Fernando Collor (1990–1992), os estudantes secundaristas voltaram a promover manifestações na cidade pelo direito ao passe livre e por melhorias estruturais nas escolas. Ao mesmo tempo, os profissionais da educação organizados pela seção local do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação promoveram greves e protestos reivindicando melhores salários e condições de trabalho 228


Outra expressão dos movimentos sociais nesse período foi o crescimento da luta contra o preconceito aos grupos LGBTT. Desde 2004 é promovida, anualmente, a “Parada LGBTQI” em São Gonçalo por grupos que atuam na defesa e promoção dos direitos dessas categorias sociais. Em 2010, em função do bárbaro assassinato do adolescente Alexandre Thomé Ivo Rajão, no bairro do Mutuá, foi criado o “Movimento Alexandre (V)IVO” que luta pela criminalização da homofobia e contra a impunidade. O levante popular de junho de 2013 que, inicialmente, encontrou na luta pela redução das tarifas do transporte público a demanda catalisadora de um conjunto de outras reivindicações que vieram a se agregar ao movimento, também teve a sua expressão local. Cerca de 5 mil pessoas, segundo a Polícia Militar, ocuparam a Avenida Feliciano Sodré naquela que é considerada uma das maiores manifestações da história da cidade. Assim como em todo o país, as manifestações de junho de 2013 recolocaram o protesto juvenil na dinâmica política de São Gonçalo. As ocupações das escolas estaduais fluminenses ocorridas em 2016, inspiradas no movimento iniciado em São Paulo contra a reorganização do Ensino Médio imposta pelo governador Geraldo Alckmin, também tiveram a contribuição dos estudantes gonçalenses que ocuparam o Colégio Estadual Nilo Peçanha, o Colégio Estadual Pandiá Calógeras e o Instituto de Educação Clélia Nanci. Com efeito, podemos afirmar que, apesar dos atuantes mecanismos de controle social que permitem a perpetuação de uma estrutura de poder local conservadora ao longo da história, sempre houve processos de resistência que se desenvolveram na cidade. As classes populares que residem no município estiveram conectadas com os principais processos de mobilização política e social que se desenvolveram na História do Brasil. O resgate e a afirmação dessa herança vão ao encontro da necessidade de reconstrução da história local a partir da perspectiva dos “de baixo”. 3. O MTST E A CONSTRUÇÃO DE SUJEITOS COLETIVOS NAS PERIFERIAS URBANAS: A OCUPAÇÃO ZUMBI DOS PALMARES A expansão populacional nas periferias urbanas possui uma estreita ligação com o fenômeno do desemprego estrutural. A relação entre a desindus229


trialização, que se desenvolve no país desde a crise do “Milagre Econômico” em meados dos anos 1970, a reestruturação produtiva do capital e o aprofundamento da informalização do mercado de trabalho tem produzido uma massa de trabalhadores urbanos desempregados ou imersos em relações de trabalho precarizadas. Esse fenômeno contribui com a formação daquilo que autores como Braga (2012) e Standing (2013) denominam como precariado. Tal processo, conjugado à dinâmica de crise ideopolítica e programática que se instalou nas esquerdas a partir dos anos 1990 teve como consequência direta a fragilização das lutas sociais que encontravam nas organizações tradicionais do mundo do trabalho, com destaque para os sindicatos e partidos políticos, o seu centro dinâmico. Paralelamente, as experiências, genericamente, caracterizadas como movimentos populares como as associações de moradores e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBS)encontraram, respectivamente, na violência urbana e no avanço das igrejas pentecostais e neopentecostais poderosos obstáculos. O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) surge em 1997 como uma resposta ao aprofundamento da segregação socioespacial nas grandes cidades brasileiras. Atualmente, apresenta–se como o principal movimento de luta pela moradia no Brasil com ocupações em São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Ceará, Rio Grande do Sul, Paraná e Pernambuco. O MTST encontra na intervenção territorial e no déficit habitacional as bases para o desenvolvimento das suas atividades político–organizativas. A sua ação tem como objetivo organizar os “[...] trabalhadores a partir do local em que vivem: os bairros periféricos” (CARTILHA DE PRINCÍPIOS DO MTST, 2011, p. 4). Portanto, é a partir das referências socioespaciais existentes no cotidiano das populações que residem nas periferias urbanas que o movimento busca atuar para a formação de sujeitos coletivos. A adoção dessa estratégia demanda a utilização de métodos de atuação diferentes daqueles que são empregados nas lutas sociais desenvolvidas a partir da esfera produtiva. Chamamos a atenção para as ocupações como forma de ação direta realizada pelo movimento. Mais do que fixar–se em uma propriedade de grande extensão, a ocupação é também o início de um processo de ressignificação de uma faixa do território na medida em que ela passa a ser apropriada de forma coletiva pelos integrantes do movimento questionando, concreta230


mente, a moderna relação de propriedade. É nesse contexto que se apresentam as possibilidades de desenvolvimento daquilo que Iasi (2007) caracteriza como o processo de consciência. Conjugada à reivindicação do direito à moradia, o MTST apresenta a necessidade de realização de uma Reforma Urbana que desconcentre a propriedade nas cidades como forma de superação do déficit habitacional brasileiro. Desse modo, o movimento se contrapõe ao modelo de cidade–mercadoria, pois ela “[...] joga os mais pobres em regiões cada vez mais distantes” (CARTILHA DE PRINCÍPIOS DO MTST, 2011, p. 4) reproduzindo a lógica da concentração fundiária e da segregação socioespacial que caracteriza, estruturalmente, a cidade capitalista. A formação do espaço urbano capitalista no Brasil expressa a dinâmica desigual e combinada que caracteriza a sua formação sócio–histórica. Nela, observamos a imbricação entre formas sociais capitalistas e não capitalistas no processo de produção e reprodução da vida social. Desse modo, o fenômeno da concentração fundiária, frequentemente registrado em sociedades não capitalistas, como foi o caso do feudalismo, foi uma das principais formas de produção do espaço geográfico brasileiro no contexto da integração do país ao mercado mundial desde o período colonial. A conversão das terras rurais em urbanas, que acompanhou a industrialização durante o século XX, assentou–se sobre uma intensa especulação imobiliária que não registrou o clássico conflito entre burguesia industrial e proprietários fundiários (aristocracia rural). Para tanto, concorreu o fato de que o capital anteriormente destinado à agroexportação foi, em parte, redirecionado para a produção industrial convertendo parcela significativa dos proprietários fundiários em burgueses industriais (FURTADO, 2000). O processo de modernização que transformou as atividades urbano– industriais em eixo dinâmico da acumulação de capital reproduziu a lógica da concentração fundiária na formação do espaço urbano brasileiro. Nesse sentido, a reforma urbana defendida pelo MTST se confronta com um dos principais pilares de sustentação do capitalismo periférico e dependente no Brasil. Essa análise fundamenta a postura abertamente anticapitalista adotada pelo movimento conforme explicita a sua Cartilha de Princípios (2011).

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Em São Gonçalo, o crescimento populacional registrado nos últimos 40 anos ao conjugar–se com a ausência de políticas habitacionais que alcançassem os segmentos mais pauperizados da população local tem aprofundado a precarização das condições de moradia na cidade. Em 2015, de acordo com um levantamento realizado pelo programa Incid (Índices de Cidadania) do Instituto Brasileiro de Análises Socioeconômicas (IBASE) esse déficit era de 9,9% da população local. Diante desse cenário a ocupação Zumbi dos Palmares realizada no bairro Jardim Catarina mobilizou cerca de 500 famílias ao longo de 15 dias durante o mês de novembro de 2014. Durante esse período, foi construída uma coordenação local com as lideranças dos moradores dos bairros que participaram da ocupação. Ao final da mobilização, um acordo envolvendo a Prefeitura de São Gonçalo, a Caixa Econômica Federal e as lideranças do MTST garantiram a construção de mil unidades habitacionais pelo Programa Minha Casa Minha Vida na modalidade Entidades. A partir de então, foi iniciado o trabalho de nucleação do movimento. Os seus integrantes foram divididos em três núcleos territoriais correspondentes aos bairros Santa Luzia, Jardim Catarina e à localidade conhecida como Cano–Furado. Foram realizadas assembleias mensais para o repasse acerca das negociações com os governos municipal e federal, bem como, com a Caixa Econômica Federal. Além disso, foram organizadas manifestações com o objetivo de pressionar o poder público no atendimento às reivindicações apresentadas pelo movimento. A população que se organiza em torno do movimento em muito reflete o perfil socioeconômico típico de um contexto pós–urbano (BOTELHO, 2014). Segundo os dados produzidos pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Favelas e Espaços Populares cerca de 85% dessa população é negra sendo formada por 80% de mulheres. Os dados relacionados à educação são alarmantes. Duas em cada três crianças estão fora das unidades de educação infantil, en quanto que 70% dos jovens e adultos não completaram o ensino fundamental. Ao mesmo tempo, 85% estão imersos em relações informais de trabalho. Desses, cerca de 65% ganham menos de um salário mínimo. O golpe parlamentar ocorrido em 2016 e a adoção de uma agenda ultraliberal pelo governo de Michel Temer (2016–2018) produziu um progressivo desmonte das políticas sociais. Com a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência 232


esse quadro tornou–se ainda mais dramático para os movimentos sociais, cujas lideranças passaram a ser alvo de processos judiciais e ameaças a sua integridade física. No caso da periferia da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, as disputas territoriais que envolvem grupos armados ligados ao narcotráfico e às milícias (grupos paramilitares formados por agentes de segurança pública) é outro obstáculo para a organização do movimento. Diante das dificuldades impostas pela quadra regressiva pós–2016, o movimento vem reorganizando a sua intervenção territorial na cidade. Apresentando–se como o ator mais dinâmico da Frente Povo Sem Medo 9, o MTST tem organizado um conjunto de ações que visam estreitar vínculos comunitários e mobilizar os seus integrantes, juntamente com o conjunto da população moradora dos bairros Jardim Catarina e Santa Luzia em torno de demandas por infraestrutura urbana e efetivação de direitos, o “Projeto Bairro Sem Medo”. Ele é desenvolvido em um antigo centro comunitário próximo à Praça de Santa Luzia. A experiência pioneira para o movimento tem como principal ação o fornecimento gratuito de refeições produzidas por uma cozinha comunitária gerida pelos membros da coordenação local do movimento aos domingos onde são promovidas atividades socioeducativas e culturais. Simultaneamente são realizadas atividades socioeducativas e culturais como é o caso do Grupo de Gestantes e das rodas de conversa multitemáticas promovidas pelos estudantes e professores das Escolas de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Atualmente, essa experiência tem feito parte da campanha Periferia Sem Fome promovida pelo MTST em nível nacional. A necessidade de empreender reivindicações para além da luta pela moradia se apresenta como algo fundamental para essa população. Todavia, esse processo é inviável sem a construção de uma leitura de mundo (FREIRE, 2005) embasada na desnaturalização da realidade social. Assim sendo, a produção de sujeitos coletivos formados por aquilo que Davis (2006) caracteriza como humanidade excedente demanda trabalho de longo prazo junto com doses de co9

A Frente Povo Sem Medo é uma articulação política entre sindicatos, movimentos sociais, partidos políticos e intelectuais que se desenvolveu no Brasil no contexto do golpe parlamentar– jurídico–midiático em 2016. Atualmente é um dos principais atores políticos de oposição ao governo Michel Temer.

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ragem para romper com velhos esquematismos. Dessa forma poderemos contribuir com a (auto)construção das classes populares como sujeitos da sua própria história. REFERÊNCIAS ALVES, J. C. S. Dos barões ao extermínio: uma história de violência na Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Ed. SEPE/APPH CLIO, 2003. ARAÚJO, V. L. de; MELO, H. P. O processo de esvaziamento industrial em São Gonçalo no século XX: auge e declínio da Manchester Fluminense. Cadernos do Desenvolvimento Fluminense, Rio de Janeiro n. 4, 2014. Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil. 2013. Disponível em: <http:// atlasbrasil.org.br/2013/pt/perfil_m/sao–goncalo_rj>. Acesso em: 5 set. 2017. AZEVEDO, L.; FAULHABER, L. SMH 2016: remoções no Rio de Janeiro Olímpico. Rio de Janeiro: Morula, 2015. BOLETIM DE CONJUNTURA ECONÔMICA FLUMINENSE: OUTUBRO 2009. CEPERJ, , 2009. Disponível em: <http:// www.ceperj.rj.gov.br/Bolcon/Boletim_AnoI_n10.pdf>. Acesso em: 4 set. 2017. BOTELHO, M. Crise urbana do Rio de Janeiro: favelização e empreendedorismo dos pobres. In: BRITO, F.; ROCHA, P. Até o último homem. São Paulo: Boitempo, 2013. ______. Favelização Mundial: o colapso urbano da sociedade capitalista. Revista Territórios Transversais, São Paulo, v.1, n. 1, p. 6–9, março de 2014. BOULOS, G. De que lado você está? Reflexões sobre a conjuntura política e urbana no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2015. ______. Por que ocupamos? Uma introdução à luta dos Sem Teto. São Paulo: Autonomia Literária, 2015. BRAGA, R. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2012. 234


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XI

FÓRUM DE LUTA PELA MORADIA DE NITERÓI: UMA EXPERIÊNCIA EXTENSIONISTA EM EDUCAÇÃO POPULAR EM TEMPOS DE PANDEMIA* Ana Cristina Oliveira de Oliveira1 Regina Bienenstein2 Em 1948, quando começaram a demolir as casas térreas para construir os edifícios, nós, os pobres que residíamos nas habitações coletivas, fomos despejados e ficamos residindo debaixo das pontes. É por isso que eu denomino que a favela é o quarto de des pejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos. Carolina Maria de Jesus 1960, p.171).

Este capítulo discute o período recente da experiência extensionista multidisciplinar do Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos (NEPHU)3 da Universidade Federal Fluminense (UFF), voltada para assessoria técnica e social de coletivos populares que integram o Fórum de Luta pela Moradia de Niterói e materializada no programa de extensão “A Universidade púDOI - 10.29388/978-65-86678-35-2-0-f.239-266 Assistente Social. Doutora em Serviço Social. Professora Adjunta do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós Graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional (mestrado) da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense. e–mail: anacoliveira60@gmail.com. 2 Arquiteta e Urbanista. Doutora em Arquitetura e Urbanismo. Professora Titular do Programa de Pós–Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense. E–mail: bienenstein–regina@id.uff.br. 3 O NEPHU é um núcleo de apoio à extensão e à pesquisa, ligado à Pró–Reitoria de Extensão da Universidade Federal Fluminense (UFF), cuja experiência em assessoria técnica, iniciada em 1983, se realiza atualmente ao Fórum de Luta pela Moradia de Niterói e São Gonçalo e ao Conselho Popular da cidade do Rio de Janeiro, por uma equipe de docentes e discentes dos cursos de Serviço Social, Arquitetura e Urbanismo, Direito, Engenharia e Geografia que disponibilizam seus conhecimentos com a produção de planos populares, projetos arquitetônicos, elaboração de diagnósticos socioeconômicos, urbanísticos e ambientais, além de formação política, educação e mobilização popular. *

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blica e o direito à cidade: assessoria aos movimentos sociais no Estado do Rio de Janeiro”. Pretende–se discutir os desafios presentes e as perspectivas no desenvolvimento dessa ação, considerando as novas demandas a partir do enfrentamento da realidade de pandemia. Está organizado em três partes além desta breve apresentação e das considerações finais. A primeira contextualiza o cenário no qual a experiência se desenvolve; a segunda apresenta a experiência extensionista e a terceira apresenta dificuldades e obstáculos enfrentados. 1. O CONTEXTO EM TEMPOS DA PANDEMIA COVID 19 A crise sanitária4 que assola o mundo desde o último outono de 2020, acompanha a própria formação da sociedade moderna. As pandemias, ao longo da história, atravessaram diversos espaços urbanos e rurais, dizimando parcela da população. Com a Covid–19, não está sendo diferente. Mundo afora, os impactos do COVID–19 (SARS–CoV–2) agudizaram e aprofundaram a crise econômica e política internacional, afetando de forma mais direta a classe trabalhadora na reprodução social, na produção de informações e na atuação dos governantes. Historicamente, “[...] as doenças que assolaram a humanidade nas mais diversas regiões do mundo tiveram repercussões e resultados que, de uma forma ou de outra, trouxeram mudanças significativas na reprodução social” (LARA, 2020, p. 55). Os desdobramentos atuais do COVID–19 e suas repercussões na saúde, na economia, na política, no meio ambiente e na sociedade já são notórios quando se constata que, no Brasil, o número de mortos ultrapassa 130.000 mortos5. A situação é agravada no campo do trabalho pela perda recente e pro4

Em janeiro de 2020, a Organização A Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmou que o surto da doença causada pelo novo corona vírus (COVID–19) constitui uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, de acordo com o Regulamento Sanitário Internacional. Em 11 de março de 2020, a COVID–19 foi caracterizada pela OMS como uma pandemia. Disponível em: <https://www.paho.org/bra/? gclid=EAIaIQobChMIqNarmoLY6wIVQQ6RCh0E5QExEAAYASAAEgIklPD_BwE>. Acesso em 07 set. 2020. 5 Para maiores informações ver o painel corona vírus em: <https://covid.saude.gov.br> . Acesso em: 10 set. 2020.

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gressiva de direitos, a partir da flexibilização e precarização do trabalho, e com as novas condições de trabalho remoto com contratos de trabalho intermitentes6, cuja forma não garante qualquer benefício em caso de adoecimento pelo Coronavírus. Dentre outros elementos, destacamos o alerta recente da Organização Pan–Americana da Saúde (OPAS) que conclui que a pandemia da COVID–19 pode aumentar os fatores de risco de suicídio, por afetar a saúde mental, gerando angústia, ansiedade e depressão, especialmente entre os profissionais de saúde e a parcela da população superexplorada 7. Soma–se a isto, as questões de violência, transtornos por consumo de álcool, abuso de substâncias e sentimento de perda, incitando um acentuado aumento do risco de uma pessoa decidir tirar a própria vida8. A COVID–19 escancarou e, sem dúvida, vem agravando a desigualdade social, com as condições exponencialmente mais precarizadas nas favelas do capitalismo dependente, com territórios não alcançados pelo saneamento (abastecimento d’água e esgoto sanitário domiciliar), onde se torna impossível garantir o mínimo de isolamento domiciliar com famílias inteiras restritas a um mesmo espaço, onde a iluminação e ventilação naturais são deficientes. Esta é a face da cidade brasileira, cotidianamente autoconstruída por seus moradores 9. 6

O trabalho intermitente foi fruto da (contra) Reforma Trabalhista do Temer (lei 13.467/2017) altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto–Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e as Leis nos 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Diário Oficial da União 14 jul/2017. A legislação dá a possibilidade de terceirização em todas as atividades gerando a queda do nível salarial, jornadas de trabalho mais longas, menor estabilidade e menos direitos Para maiores informações ver: Brasil. Lei 13.467, de 13 de julho de 2017. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015–2018/2017/lei/l13467.htm>. Acesso em: 28 ago. 2020. 7 A categoria superexploração da força de trabalho tratada por Ruy Mauro Marini como fundamento da teoria marxista da dependência (TMD) revela o caráter sui generis do capitalismo dependente, a superexploração da força de trabalho. A superexploração da força de trabalho, além de ter a intensificação e a ampliação da jornada de trabalho, também é explicitada pela remuneração abaixo do seu valor. Para maiores esclarecimentos sobre a categoria superexploração ver Marini (2005), Luce (2018) e Osorio (2009). 8

Para maiores informações ver: <https://www.paho.org/bra/index.php? option=com_content&view=article&id=6277:pandemia–de–covid–19–aumenta–fatores–de– risco–para–suicidio&Itemid=839Opas>. Acesso em: 10 set. 2020.

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As recomendações do protocolo de COVID–19 10, propostas para estes espaços são as mesmas recomendadas para a face da cidade dos privilégios, plena de serviços e infraestrutura. Ou seja, a proposta é da aplicação das mesmas orientações de proteção da Covid–19 nas diferentes realidades brasileiras 11, sem considerar sua completa inviabilidade na cidade popular. Como fazer isolamento, se é necessário buscar a sobrevivência quando temos mais de três pessoas por cômodo nas moradias? Como lavar as mãos com frequência e manter limpo seu ambiente, quando não se tem acesso ao abastecimento de água e o esgoto corre a céu aberto? Além desse cenário, há dificuldade de acesso a unidades de saúde e de assistência social; redução das doações, falta de testes, além dos obstáculos a serem ultrapassados para receber o auxílio emergencial do governo federal cujo valor sequer atinge o patamar do salário mínimo e que agora será reduzido ainda mais. São exigências burocráticas a cumprir, filas e aglomerações a enfrentar que colocam essa parcela da população em situação de extremo risco social. Mas os problemas enfrentados por essas pessoas não param aí. Somam–se a eles, as ameaças de remoção e despejo, parte delas resultado de ações públicas, parte decorrentes de processos de reintegração de posse consumados, apesar da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) proibindo que isso aconteça durante a pandemia. Importante considerar que os impactos da pandemia e pós–pandemia sobre a população mais explorada, a adoção de estratégias do tipo contratos intermitentes que chegam a criar 20,5 mil vagas, enfim o desmonte do conjunto 9

Ver BIENENSTEIN, G.; BIENENSTEIN, R.; SOUSA, D. M. M. O Coronavírus, a Cidade e a Arquitetura: o caso brasileiro como um (possível) laboratório de horrores. In: BORGES, A.; MARQUES, L. (Orgs). Coronavírus e as Cidades Brasileiras: reflexões durante a pandemia. Rio de Janeiro: Outras Letras, 2020. p. 96–100. 10 Para maiores informações ver: <https://coronavirus.saude.gov.br/>. Acesso em: 11 set. 20. 11 Os moradores/as de favela e periferia, os povos originários da terra, os ribeirinhos, as pessoas em situação de rua, os refugiados, o povo cigano, aqueles que (con)vivem com alguma deficiência física ou mental/doença crônica, pessoas em privação de liberdade, as LGBTQI+, os/as catadores/as e trabalhadores/as da reciclagem, trabalhadores/as remotos de aplicativos, trabalhadores/as intermitentes, ou seja, pessoas que estão de alguma maneira expostos, e outros grupos da superpopulação relativa (MARX, 2013) têm algo em comum: lidar com as desigualdades no acesso aos direitos, o que os torna ainda mais precarizados diante da pandemia de Covid–19. Para maiores informações ver: <https://portal.fiocruz.br/noticia/desigualdade– social–e–economica–em–tempos–de–covid–19>. Acesso em: 01 set. 2020.

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de direitos, arduamente conquistados ao longo de décadas, poderá conduzir ao aumento exponencial do desemprego e à precarização ainda maior de suas condições de vida, já que isto ocorre em um país onde uma parte da população sobrevive com menos de um salário mínimo e milhões estão desempregados/as ou subempregados/as. Ainda não podemos dimensionar os impactos, tanto na vida, quanto na organização da sociedade, mas podemos identificar o agravamento da crise do capital 12 e da desigualdade social, situação anterior à pandemia que já se apresentava avassaladora na reprodução das relações sociais, em especial para a população das favelas e periféricas. (CHESNAIS, 2020). A esse respeito, Antunes (2019; 2020)13 nos alerta para um outro aspecto dessa situação que também é agravada pelas novas formas de trabalho remoto da era digital “do ponto de vista de seu impacto nas relações de trabalho, a flexibilização se expressa na diminuição drástica das fronteiras entre atividade laboral e espaço da vida privada, no desmonte da legislação trabalhista, nas diferentes formas de contratação da força de trabalho e em sua expressão negada, o desemprego estrutural”. Por outro lado, é importante considerar que os trabalhadores/as dos espaços populares se veem forçados a sair, seja para o trabalho informal, com atividades nas ruas, seja para o trabalho formal, por vezes enfrentando ambientes insalubres, mas sempre com deslocamento em transportes coletivos lotados. Apesar de apresentarem ainda, um alto índice de contaminação e mortes, progressivamente, as cidades retornam para o que chamam de “novo normal”, utilizando justificativas econômicas e apontando ser possível se resguardar na rua. O que fica claro é que o isolamento social não é para todos e que o anunciado “novo normal” se refere às condições impostas ao trabalhador/a, obrigado a romper diariamente com o distanciamento social indicado por especialistas e pela Organização das Nações Unidas (ONU). Buscamos até aqui recuperar, ainda que muito rapidamente, elementos do contexto e especialmente da situação enfrentada cotidianamente pela população protagonista da experiência de extensão universitária, foco desta reflexão. 12

Chesnais (2020) analisa a crise mundial que vivemos hoje e a pandemia do Covid 19 como consequência social, econômica, do aquecimento global e das tecnologias dominantes. Para maiores informações ver: CHESNAIS, 2020. 13 O autor analisa o futuro do trabalho no Brasil e a nova massa superexplorada da era dos serviços digitais. Ver: ANTUNES (2019; 2020).

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O item a seguir resume os principais componentes da ação do NEPHU, completando assim, o cenário onde se desenvolve a ação extensionista aqui examinada. 2. BREVE REVISÃO DA EXPERIÊNCIA DA EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA CONTRA HEGEMÔNICA EM DIREITO À CIDADE E EDUCAÇÃO POPULAR NA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA A experiência de extensão universitária que o NEPHU desenvolve, nos últimos 35 anos, vem construindo ações que permitem a socialização de conhecimento sobre o território (leia–se espaços populares) e a participação popular. A experiência na extensão com este pressuposto incrementa a assistência técnica, social e jurídica, de forma interdisciplinar, a moradores de inúmeros assentamentos populares que lutam pelo direito à moradia e à cidade, situados no estado do Rio de Janeiro, destacando–se os municípios de Niterói, São Gonçalo e Rio de Janeiro. O Programa “A Universidade pública e o direito à cidade: assessoria aos movimentos sociais no Estado do Rio de Janeiro” do NEPHU, iniciado em 2017, objetiva subsidiar movimentos sociais dos municípios de Niterói, São Gonçalo, Rio de Janeiro, Seropédica e Volta Redonda que lutam pelo direito à cidade, entendido não apenas com o direito aos serviços públicos e à moradia, mas também o direito a um planejamento urbano que esteja voltado para a ampliação das condições de acesso aos benefícios da vida urbana. As áreas onde atuar e os temas a serem desenvolvidos no Programa e em seus projetos foram definidos coletivamente em fóruns de cada cidade que agregam movimentos sociais e grupos comunitários, e poderão ser por eles adaptados e complementados. O programa é formado por cinco projetos que se articulam e compreendem ações de ensino, pesquisa e extensão. São eles: (1) Formação Política, Educação Popular, Direitos Sociais e Serviço Social; (2) Assessoria jurídica a movimentos sociais para a efetivação do direito à cidade e do direito à moradia; (3) A Universidade e o direito à cidade: acompanhando e mapeando os conflitos; (4) Curso de Extensão em direito à cidade: planejamento conflitual 14 e participa14

Para o conceito de planejamento conflitual ver OLIVEIRA, F. L. de; SÁNCHEZ, F.; VAINER, C. (2020).

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tivo; e (5) Projeto Popular de Regularização Urbanística e Fundiária Plena da Fazendinha–Sapê. A definição dos temas específicos desenvolvidos no curso de extensão e respectivos professores fizeram parte do escopo do projeto, sendo realizada pelos coletivos comunitários e professores que participam do programa15. Para o desenvolvimento deste trabalho é adotada metodologia que, por meio de um processo dialogal, incorpora a população em processos decisórios vinculados a todas as suas etapas. Nesse sentido, parte–se do pressuposto de que a população deve ser protagonista nas decisões relativas ao seu espaço de morar, reconhecendo–a como um planejador popular e como um importante elemento na definição coletiva de propostas e encaminhamentos, permitindo assim a definição coletiva e negociada de todas as propostas e encaminhamentos. Trata–se de possibilitar ao cidadão dos espaços populares o direito de interferir em seu espaço de morar, de ter acesso a um projeto arquitetônico e urbanístico, ao saber técnico e à participação na concepção dos planos e projetos. Vale destacar que a atuação do NEPHU tem compreendido projetos de extensão, articulados a pesquisas, dentro dos seguintes eixos temáticos: assessoria técnica e social em projetos de habitação, urbanismo e regularização fundiária plena16; planejamento em situação de conflito; formação política do direito à cidade; impactos de grandes projetos regionais na informalidade habitacional e transmissão de conhecimento à população e aos gestores locais. Durante o ano de 2017, o NEPHU foi procurado por algumas comunidades de Niterói que começavam um movimento no sentido de conseguir melhorar suas condições de moradia e ter acesso não só aos ônus da vida urbana, mas também às vantagens que ela poderia oferecer. Foi formado, assim, o Fórum de Luta pela Moradia de Niterói e São Gonçalo que reúne Associações de Moradores, movimentos sociais, moradores/as, lideranças da luta por moradia digna e diferentes grupos comunitários dos dois municípios, onde a equipe do 15

As ações podem ser vistas na página do Programa: < http://nephu.sites.uff.br/programa/ >. Acesso em: 04 set. 2020. . (BIENENSTEIN, 2020). 16 Entende–se Regularização Fundiária Plena como processo voltado para garantir a segurança da posse da terra, agregando qualidade à moradia enquanto direito. Trata–se de processo que inclui as dimensões jurídica da propriedade da terra e também a social, a urbanística e a ambiental. Isto significa que situações variadas de risco e de violações de direitos a que a população possa estar submetida serão analisadas e trabalhadas (BIENENSTEIN, 2001).

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NEPHU já vinha atuando e, passaram a participar nas discussões das questões relativas ao direito à cidade. Em paralelo a isso, no Rio de Janeiro, a partir de 2011, após apoiar a resistência de comunidades como a Vila Autódromo, Arroio Pavuna e Vila União Curicica contra a remoção 17, em articulação com o Núcleo de Terras da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e o Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (ETTERN/IPPUR/UFRJ), a equipe do NEPHU seguiu acompanhando essas comunidades na busca por melhorias em seus territórios, participando do Conselho Popular–Rio. Nesta direção, um dos objetivos das ações extensionistas do NEPHU é contribuir para o processo de fortalecimento de grupos sociais que atuam na perspectiva do direito à cidade, mediante a participação no Fórum de Luta por Moradia, através de um trabalho de acompanhamento das ações realizadas no mesmo. A direção social, técnica e política das ações é possibilitar, a partir das demandas apresentadas pelos integrantes do Fórum, a realização de ações que fortaleçam o processo de mobilização e a garantia de direitos dos trabalhadores. Além disso, aprofundar o debate sobre a questão urbana, direitos sociais e as formas de resistência e organização dos trabalhadores pela educação popular, ratificando, em especial, o papel da Universidade Pública socialmente referenciada, em relação às demandas reais da classe trabalhadora e às expressões da questão social. As ações extensionistas são demandadas pelos movimentos sociais e comunidades que participam do Fórum de Luta por Moradia com as seguintes abordagens: aprofundando o debate sobre a questão urbana e direitos sociais e as formas de resistência e organização dos/das trabalhadores/as; formação política com grupos sociais, movimentos sociais e familiares do Fórum de Luta por Moradia; oficinas temáticas e demandas no Fórum, entre eles, educação, regularização fundiária, saneamento básico, remoção, deslizamento, direitos pre17

Cabe destacar ainda que, anterior a este contexto da aprovação da Lei Federal nº 13.465 de 2017, que versa sobre a regularização fundiária urbana e rural, já havia surgido mobilizações contra os megaeventos, o aumento da tarifa dos transportes públicos e também contra as remoções forçadas de comunidades localizadas nas fronteiras urbanas valorizadas pelo capital imobiliário, indicando uma possível ampliação da luta por melhores condições de vida e uma tendência que o antropólogo James Holston (2016, p. 191–195) denomina cidadania insurgente. Para o autor, tais movimentos seriam capazes de criar uma pauta de exigências voltada para os espaços da cidade, que podiam não coincidir com as prioridades colocadas pelo Estado.

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videnciários, direitos da criança e adolescente, direitos da família e direitos trabalhistas, direitos e benefícios sociais, enfrentamento ao COVID–19 e favela; e ratificação do papel social da Universidade Pública vinculado às demandas reais da classe trabalhadora e as expressões da questão social. Desde o início da experiência em 1983 e sua institucionalização em 1986, como NEPHU, o trabalho parte da perspectiva da indissociabilidade do tripé: ensino, pesquisa e extensão. A título de ilustração pontuamos que os estudos e as ações de pesquisa e extensão têm percorrido a constituição urbana fluminense, o desenvolvimento capitalista desigual e combinado que impulsiona a conformação de diferentes territórios na cidade, as diferentes dimensões da vida cotidiana, o processo de mercantilização da cidade, e a organização dos movimentos sociais urbanos. As ações extensionistas, ao articular professores, alunos de graduação e pós–graduação, pesquisadores das áreas diversas do conhecimento 18, integra a população que luta pelo direito à cidade e à moradia digna, através da realização de ações diversas com os movimentos sociais urbanos e moradores que integram o Fórum de Luta por moradia, além de produção técnica por eles demandada, necessária ao processo de melhoria das condições habitacionais, sociais e ambientais. A proposta na mesma linha do saber–aprendizagem e formação política e participação popular volta–se para capacitação de estudantes graduandos, recém–formados, pós–graduandos, lideranças comunitárias e de movimentos sociais urbanos, e moradores das áreas atendidas. Representa um espaço do qual participam professores e estudantes de mestrado e doutorado das diferentes áreas, ministrando aulas e desenvolvendo oficinas, a partir do detalhamento dos temas específicos que são definidos pela comunidade em conjunto com professores e estudantes. 18

A participação das diferentes áreas no Programa se dá pelos seguintes departamentos de ensino e programas de pós–graduação e núcleos e grupos de pesquisa e extensão da UFF: Departamento de Direito Público (SDB) e Programa de Pós–graduação em Direito Constitucional (PPGDC); Departamento de Serviço Social, Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Favelas e Espaços Populares (NEPFE) e Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Teoria Social, Trabalho e Serviço Social (NUTSS); Departamento de Urbanismo e Programa de Pós–graduação em Arquitetura de Urbanismo (PPGAU); o Departamento de Engenharia Civil e grupo de Recursos Hídricos e o grupo de pesquisa Grandes Projetos de Desenvolvimento Urbano, vinculado ao Programa de Pós–Graduação em Arquitetura e Urbanismo (GPDU/PPGAU).

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O Programa, portanto, inclui algumas frentes de atuação que se articulam principalmente na defesa dos territórios populares (espaços populares), abrindo um importante ambiente de participação e contribuição para uma Universidade púbica, gratuita, laica, de qualidade e socialmente referenciada. Neste sentido, a atuação da Universidade, por ainda ser dotada de autonomia, pode desempenhar uma assessoria técnica e social às populações dos espaços populares e das favelas que permita desvelar processos opressivos, dar voz a essa parcela da população que tende a ser invisibilizada, além de experimentar caminhos inovadores e apontar diretrizes para a implantação de ações voltadas para o direito à cidade, enquanto política pública. 3. EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA E EDUCAÇÃO POPULAR: OBSTÁCULOS E DESAFIOS NA PANDEMIA O NEPHU desenvolve a assessoria técnica interdisciplinar, no enfrentamento da desigualdade social e da superexploração do trabalho aos grupos sociais e movimentos sociais de forma orgânica, quais sejam, de forma permanente e articulada e no lastro da formação política. Isto significa que se trata de construir ações de formação continuada que estejam engajadas na luta pelo direito à cidade mediante a metodologia da educação popular. Nesta direção, a assessoria técnica interdisciplinar desenvolvida junto ao Fórum está circunscrita como uma expressão da extensão universitária ao movimento social urbano na luta pelo direito à cidade junto às organizações da classe trabalhadora, cuja incursão se dá no capitalismo dependente pelo padrão de dominação externa (FERNANDES, 2009) marcada pela desigualdade social e expropriação permanente de suas riquezas (OLIVEIRA; SANTOS; BIENENSTEIN, 2019, p. 53, grifos dos autores).

Entendemos que uma universidade pública, gratuita, laica, com elevado padrão de qualidade e socialmente referenciada tem como elemento essencial a indissociabilidade das atividades de ensino, pesquisa e extensão. Com este pressuposto, as suas ações fortalecem para coadunar com a produção de conhecimentos, na formação de profissionais e na prestação de serviços à comunidade

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alicerçada no seu compromisso social. Portanto, como afirma Goergen (1999, p. 20), A universidade precisa, em todas as suas áreas, recuperar sua capacidade reflexiva sobre os grandes eixos da cultura atual, seja do ponto de vista científico/tecnológico, seja do ponto de vista humanístico/cultural. A universidade precisa quebrar o grilhão do individualismo, do isolamento, do corporativismo e do egoísmo e gerar uma solidariedade fecunda como sementeira de uma nova forma de ser, de agir e de saber.

Atualmente, a construção metodológica das ações extensionistas se desenvolve nas reuniões do Fórum de Luta por Moradia, em assembleias comunitárias e oficinas temáticas, entre outras ações. Além disso, são elaborados em conjunto e par e passo com os moradores, projetos urbanísticos voltados para a melhoria da qualidade da moradia e do meio ambiente, e eliminação de situações variadas de risco. Estes representam espaços adicionais de formação e diálogo com os moradores dos territórios populares. Todas as intervenções são atravessadas pela cultura popular e cidadania, objetivando a criação de espaços de formação de sujeitos construtores ativos da sociedade. Nesta direção, a perspectiva metodológica pautada na ontologia do ser social e na teoria social crítica intenciona, portanto, compartilhar saberes, aprendizados, experiências, caminhos, vislumbrando a troca de experiência e ampliando as possibilidades de cooperação entre educadores e pesquisadores que trabalham na extensão universitária. A experiência vivenciada nas ações extensionistas está marcada, assim, por um movimento dialético e tem como base a educação popular que se refere ao uso da dialética / dialogicidade na relação educador e educando. Com este enfoque a relação educador – educando é (re)criada numa perspectiva horizontal. Esta experiência, enquanto prática democrática e participativa, se conforma diante de uma abertura do educador que não se coloca como o único detentor de conhecimento, conforme salienta Paulo Freire (1998, p. 127): Se, na verdade, o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é falando aos outros, de cima para baixo, sobretudo, como se fôssemos os portadores da verdade a ser transmitida aos demais, que aprendemos a escutar, mas é escutando que apreendemos a falar com eles. 249


Possibilita, assim, condições para uma maior interação entre participantes da comunidade atendida e a universidade. Nessa perspectiva, o trabalho de extensão possibilita uma melhor relação entre o conhecimento do educador e a realidade circundante pelo conhecimento dos grupos sociais que participam do Fórum de Luta por Moradia, além de promover “[...] maior interesse dos destinatários que não seriam mais vistos como meros receptores e sim, atores dentro de um processo”. (THIOLLENT, 2000, p. 23). Na verdade, “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1997, p. 68). Portanto, assevera Thiollent (2000, p. 23): Com a metodologia participativa, um projeto de extensão traz uma melhor relação entre o conhecimento do pesquisador e a realidade circundante, maior interesse dos destinatários que não seriam mais vistos como meros receptores e sim, atores dentro de um processo. Além disso, torna–se possível detectar novas questões específicas, para as quais seriam necessários estudos ou pesquisas mais aprofundadas, inclusive de modo associado à realização de teses de pós–graduação.

Nesse momento de crise mundial do capital, ampliada pela crise sanitária, a expressão da desigualdade social na extensão universitária tem como horizonte gerar alternativas para a continuidade da vida em sociedade. A extensão universitária é entendida como o momento de elo com a pesquisa e o ensino, num processo de ensino–aprendizagem, na construção da formação política e humana, tendo o popular como central na produção do conhecimento. É na extensão universitária que se pode reforçar o popular no fazer–acadêmico, na medida em que é no popular trazido através da extensão universitária, que se cria um novo mecanismo do tripé ensino, pesquisa e extensão. A extensão universitária permite que ocorra a aproximação, a integração e a parceria entre os projetos institucionais e a comunidade. Hoje, esse fluxo, interrompido e suspenso pela pandemia COVID 19, apresenta desafios relativos à impossibilidade do encontro presencial, aos limites de acesso tecnológico e de forma também evidente para professores e estudantes que desenvolvem a extensão, a sua secundarização frente ao ensino e à pesquisa. As ações 250


extensionistas, sejam de interesse geral, sejam aquelas vinculadas aos movimentos sociais, sentem o reflexo de serem colocadas em segundo plano, enfatizando–se as ações de assistência técnica mercadorizável. Por conseguinte, parte significativa das ações de extensão desenvolvidas atualmente nas universidades públicas está reduzida a cursos pagos, prestação de serviços assistenciais, escritórios modelos, empresas Junior, entre outras formas, de modo que tais práticas estão sintonizadas ao processo de privatização por dentro das universidades brasileiras. Entende–se que há uma lógica de compra e venda de serviços que deturpa a concepção de extensão universitária. Considera–se que aquela que privilegia e dialoga de forma crítica e comprometida com a comunidade reafirma a concepção de uma universidade pública, gratuita, laica, de qualidade e socialmente referenciada (OLIVEIRA; SANTOS; BIENENSTEIN, 2019, p. 54, grifo dos autores).

O distanciamento social nos impôs revermos os processos educativos e buscarmos alternativas para garantir as ações extensionistas, diante dos riscos iminentes de contágio e morte. Em que condições a assessoria técnica e social de coletivos populares que integram o Fórum de Luta pela Moradia de Niterói materializa o programa de extensão “A Universidade pública e o direito à cidade: assessoria aos movimentos sociais no Estado do Rio de Janeiro”? Em texto produzido pelo coletivo de coordenadores do NEPHU, ainda antes da pandemia, sinalizamos como compreendemos a extensão universitária: Tratar da extensão universitária junto aos movimentos sociais urbanos significa construir um espaço de resistência dentro da universidade pública. Apesar dos ataques que tem sofrido no atual governo, essa universidade ainda pode ser considerada um lócus fundamental de produção de conhecimento sobre as distintas formas construídas pela classe trabalhadora para sobreviver (OLIVEIRA; SANTOS; BIENENSTEIN, 2019, p. 53, grifos dos autores).

Na realidade pandêmica do trabalho remoto, precarizado e temporário, como transitar pela vivência de uma extensão que consiga manter o compromisso com as classes populares, num cenário de escassez de recursos financei-

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ros institucionais para a extensão, com a precarização de acesso às redes sociais e internet que se constituem somente de forma privada? A experiência da extensão universitária desenvolvida pelo NEPHU, discutida neste texto, vem reafirmando a função social da universidade com a realização de ações contra hegemônicas na articulação entre a universidade pública e os movimentos sociais urbanos, entendendo–a como uma estratégia de resistência e luta perante as desigualdades sociais. Aqui se estabelece uma relação da educação (não–formal) com os movimentos sociais, entendendo que nesta relação há aprendizagem e produção de saber, gerados em outros espaços para além da educação escolar (formal), num sentido mais amplo de educação. Se assim o é, o caráter educativo presente nas práticas que se situam no ato de participar pressupõe negociações, diálogos ou confrontos, portanto, no entender outros espaços educativos em movimentos e ações coletivas, como geradores de aprendizagens e saberes. Uma das premissas básicas a respeito dos movimentos sociais é: são fontes de inovação e matrizes geradoras de saberes. Entretanto, não se trata de um processo isolado, mas de caráter político–social. Por isso, para analisar esses saberes, deve–se buscar as redes de articulações que os movimentos estabelecem na prática cotidiana e indagar sobre a conjuntura política, econômica e sociocultural do país quando as articulações acontecem. Essas redes são essenciais para compreender os fatores que geram as aprendizagens e os valores da cultura política que vão sendo construídos no processo interativo (GOHN, 2011, p. 333–334).

A perspectiva contra hegemônica desenvolvida junto aos movimentos sociais se pauta na formação política continuada de modo que possa contribuir no processo de qualificação de dirigentes, militantes e famílias engajadas na luta pelo direito à cidade e à moradia, mediante a metodologia da educação popular. Nesse sentido, e para auxiliar este debate, inicialmente apresentamos a perspectiva de formação política e posteriormente a de educação popular. A formação, vinculada ao desenvolvimento da construção de um pensamento coletivo em seus aspectos objetivos, está voltada para o preparo social e político–pedagógico de apreender e formular planos de mudanças da realidade analisada. Isto significa construir um processo voltado para atores sociais coletivos, que contribua na produção de conhecimentos e ações que possam inter252


ferir na lógica de política dos distintos sujeitos. Por isso, lançar mão da educação popular difere de ações restritas a treinamento ou da simples transmissão de informações. Significa, assim, a criação de um senso crítico que leve as pessoas a entender, comprometer–se, elaborar propostas, cobrar e transformar(– se). Trata–se de um processo coletivo de produção e socialização do conhecimento que permita educadores e educandos a ler criticamente a realidade sócio–econômico–político–cultural, com a finalidade de transformá–la. Torna– se um instrumento que desperta, qualifica e reforça o potencial popular de construir uma alternativa solidária. A educação popular por nós entendida é uma educação de classe. Uma educação comprometida com os segmentos populares da sociedade, cujo objetivo maior deve ser o de contribuir para a elevação da sua consciência crítica, do reconhecimento da sua condição de classe e das potencialidades transformadoras inerentes a essa condição (VALE, 1992, p. 57).

Assim, coadunado com as ideias de Bogo (2000), podemos afirmar que a consciência está impregnada de conteúdo ideológico que se manifesta através de objetos materiais que adquirem um significado representativo que se localiza “fora” do indivíduo. Porém, não são as mudanças na consciência que transformam a realidade, nem as transformações na realidade mudam por si só o jeito de pensar e conceber o mundo. Necessário é a relação dialética entre o Ser e o Pensar. O determinante nesta relação são as condições materiais que influem na consciência dos indivíduos. É nesta relação que se dá o processo de formação da consciência, onde se torna possível interpretar os fenômenos do real que estão além da aparência e assim, perceber a realidade como um todo complexo que está sendo, algo dinâmico, em movimento e marcado por sua historicidade. Conforme aponta Mauro Iasi (2007, p. 13), O processo de consciência é visto, de forma preliminar e introdutória, como um desenvolvimento dialético, onde cada momento traz em si os elementos de sua superação, onde as formas já incluem contradições que ao amadurecerem remetem a consciência para novas formas e contradições, de maneira que o movimento se expressa num processo que contém saltos e recuos. 253


Neste sentido, torna–se relevante apontar uma perspectiva de formação que não seja focal ou imediatamente voltada para suprir necessidades pontuais sobre determinado conhecimento, mas uma proposta que considere o ir– e–vir, os recuos e avanços, que é o processo de formação da consciência. Para isto, torna–se importante voltar a pensar do ponto de vista metodológico, qual seria a forma de construirmos ou utilizarmos uma determinada categoria que possa estabelecer vínculos com o objetivo da proposta. A dimensão da educação popular, aqui entendida como “[...] uma gama ampla de atividades cujo objetivo é estimular a participação política de grupos sociais subalternos na transformação das condições opressivas de sua existência social” (SILVA, 2000, p. 24). Esse é um elemento fundamental para pesar a formação política dos sujeitos envolvidos na luta pelo direito a cidade. É na contra mão de uma perspectiva de uma educação que legitime os interesses da classe dominante que se aposta na educação popular, ou seja, é preciso considerá–la como uma metodologia de educação libertadora. Mézáros (2005) reforça a educação como função de transformar o trabalhador/a em um agente político que pensa, age, e usa a palavra como arma para transformar a realidade. Assim, apostar na dimensão da educação popular significa considerar o saber produzido pelos indivíduos, onde estes apresentam conhecimentos diferenciados que expressam sua leitura da realidade de um determinado ponto de vista. Estes conhecimentos representam suas experiências, seus pontos de vista e a forma que os homens e as mulheres lidam objetivamente com sua vida social. A educação, que poderia ser uma alavanca essencial para a mudança, tornou–se instrumento daqueles estigmas da sociedade capitalista: fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário à maquinaria produtiva em expansão do sistema capitalista, mas também gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes. Em outras palavras, tornou–se uma peça do processo de acumulação de capital e de estabelecimento de um consenso que torna possível a reprodução do injusto sistema de classes (MÉZÁROS, 2005). Por entender que a formação está diretamente vinculada aos processos de consciência e necessariamente com a dimensão ideológica estruturante da vida social, avaliamos que as contribuições de Antônio Gramsci podem deixar 254


pistas para nossa reflexão. Gramsci detalha que a ideologia é tanto um elemento de dominação – uma vez que desde a entrada do homem no mundo consciente lhe é imposta uma concepção de mundo mecanicamente –, quanto pode ser um elemento de libertação, quando ocorre a elaboração de uma concepção de mundo própria dos grupos subalternos, na superação da influência da ideologia da classe dominante, o que é imprescindível para “[...] romper a unidade baseada na ideologia tradicional, sem cuja ruptura a força nova não poderia adquirir consciência da própria personalidade independente” (GRAMSCI, 1976, p. 11). Neste sentido, a dominação ideológica provoca, nas classes sociais subalternizadas, uma dicotomia entre o pensar e o agir, sendo possível dizer que o indivíduo possui: [...] duas consciências teóricas (ou uma consciência contraditória) uma implícita na sua ação, e que realmente o une a todos os seus colaboradores na transformação prática da realidade e outra superficialmente explicita ou verbal, que ele herdou do passado e acolheu sem crítica. Toda via esta concepção verbal não é inconsequente: ela liga um grupo social determinado, influi sobre a conduta moral, sobre a direção de vontade, de uma maneira mais ou menos intensa que pode, inclusive, atingir um ponto na qual a contraditoriedade da consciência não permita nenhuma ação, nenhuma escolha, produza um estado de passividade moral e política (GRAMSCI, 1978, p. 20).

Quando Gramsci fala de consciência contraditória, está se remetendo à questão do senso comum, que seria justamente uma mistura desordenada de elementos da ideologia dominante – abstraídos da própria experiência de vida (GRAMSCI, 2001). Porém, admitia que o “senso comum” possuía um caroço de 'bom senso', a partir do qual poderia desenvolver o espírito crítico. Assim, devemos ter nitidez que o descortiçamento da realidade, ofuscado pelo brilho da ideologia capitalista, é um processo lento, gradual e formado por etapas. Ou seja, o processo de formação da consciência ocorre numa intensa dinâmica prático–teórica capaz de dar sustentação ao trabalho e onde o estudo deve ganhar força e sentido, quando estiver colado com a prática política e organizativa dos grupos sociais. Neste ínterim, a proposta do projeto aqui abordado inclui a realização de oficinas de formação política para a coordenação e lideranças comunitárias, bem como oficinas temáticas que tratem de questões 255


do cotidiano das famílias envolvidas com a luta por moradia, a fim de contribuir no processo de formação da consciência desses sujeitos e luta por acesso aos direitos historicamente conquistados pela classe trabalhadora. Conforme destacado por Helfreich, o vazio entre a educação popular e a universidade é identificado pela escassez de projetos de extensão. Outro elemento a destacar é o abismo entre a Educação Popular e a Universidade que se clarifica, sobretudo, na raridade de projetos de extensão que poderiam ser desenvolvidos envolvendo professores e alunos. A Extensão Universitária, entendida sob o princípio constitucional da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, constitui–se como um processo interdisciplinar educativo, cultural, científico e político que deveria promover a interação transformadora entre universidade e outros setores da sociedade, mas que vem sendo subsumida ao ensino e, acima de tudo, aos experimentos de pesquisa que são muito mais valorizados pelas instituições de fomento e pelo próprio Ministério da Educação e Cultura (MEC). Poucas são as universidades que desenvolvem projetos de extensão no campo da educação popular e da formação política (SANTOS, 2017, p. 316–317),

O Programa, por oferecer um caráter permanente no envolvimento de ações com comunidades, não é interrompido, sendo continuado mesmo durante as férias da Universidade e agora, durante a pandemia da COVID–19. Esse diferencial na compreensão sobre assessoria técnica a movimentos sociais urbanos, grupos sociais, lideranças comunitárias e moradores dos espaços populares nos leva a crer que o desafio se coloca em cena de forma mais aguda. Vivemos a secundarização da extensão, com os alunos de graduação e pós–graduação, participando sem qualquer auxílio financeiro, o que implica numa atuação que depende da possibilidade, disposição e disponibilidade desses estudantes para que as ações sejam continuadas, mesmo de forma precarizada. Sem apoio financeiro, a viabilidade das ações tende a ficar mais limitada. Mesmo assim, o compromisso dos alunos não diminui sua capacidade de participar na produção acadêmica, eventos científicos, publicações e ações de difusão de conhecimento adquirido por meio dessas atividades, o que não reduz a importância e necessidade da efetiva valorização da extensão universitária. Considerando as condições de estudo/trabalho desenvolvidas por meio das tecnologias de informação e comunicação, as ações têm indicado processos 256


de intensificação e precarização dessas condições. O custo para o acesso ao uso da tecnologia, conexão de internet e utilização de dispositivos para dar continuidade às ações, que se concentram online, configuram elementos cruciais neste período pandêmico. Além do prejuízo na dedicação exclusiva ao Programa, tendo em vista a necessidade de busca por geração de renda para a sobrevida, indica, também, um prejuízo ou mesmo redução de algumas das ações. Neste sentido o tratamento marginal à extensão universitária tem sido um dos desafios enfrentado pelo NEPHU, sendo agudizado na pandemia onde, apesar das publicações e premiações 19, tem sido relegada à escassez de apoio financeiro, apesar da ampliação das ações neste período. Entretanto, para não interromper esta ação, seguindo o planejamento das atividades em caráter emergencial de ações extensionistas, os alunos/as continuaram ativos, até o presente momento. Consideram a realidade dos espaços populares radicalmente diferente dos demais territórios urbanos da cidade, por não contar de forma integral com os serviços fundamentais para o cuidado com a vida, e por ser o lócus espacial onde é inquestionável o impacto mais significativo da pandemia, a despeito da expressiva subnotificação nestas áreas da cidade. A partir da pandemia, todas as ações que tem sido desenvolvidas online com a já mencionada precariedade do acesso à internet, neste período pandêmico, estão em consonância com as orientações das autoridades sanitárias e, com base na ciência nos diferentes níveis, organizam e articulam grupos de trabalho que analisam as condições e possibilidades em diversas frentes, a saber: (i) participação em eventos científicos sobre o tema direito à cidade; (ii) realização do vídeo institucional da UFF realizado no início da pandemia 20; (iii) ações de solidariedade ativa, como parte de uma rede de luta e solidariedade denominada União de Fóruns de Luta de Niterói e São Gonçalo, composta por vários coletivos como Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MTST) e Movimento de Luta de Bairros, Vilas e Favelas (MLB), SINTUFF, ADUFF, Fórum de São 19

O NEPHU desde a criação tem sido reconhecido nacional e internacionalmente, tendo inclusive recebido o Prêmio Internacional “Urban Age Award” (concedido pelo Deutsche Bank para o Plano Popular da Vila Autódromo – 2013). Importante considerar que o Programa, no ano de 2018, mereceu o primeiro e o terceiro lugares e no ano de 2019, o segundo lugar na premiação da Semana de Extensão, XVI e XVII Prêmio Josué de Castro, respectivamente. 20 Para maiores informações ver o site institucional: < https://www.youtube.com/watch? v=oE2USTj–OuE&feature=youtu.be >. Acesso em: 05 ago. 2020.

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Gonçalo, Fórum de Saúde, SEPE, que se juntaram para arrecadar doações e viabilizar a distribuição de cestas básicas para os trabalhadores/as dos espaços populares, incluindo famílias integrantes do Fórum de Luta pela Moradia, configurando uma forma de resistência e luta pela permanência no território e pelo direito ao isolamento social; (iv) realização de reuniões quinzenais virtuais com oficina e assessoria prévia para o manejo da plataforma com moradores de comunidades, assentamentos populares e lideranças de áreas populares que integram o Fórum de Luta pela Moradia, com a crescente participação, o que indica a importância desse diálogo e reflexão coletiva sobre seus problemas; (v) pesquisa online sobre os reflexos da Covid–19 nessas áreas, atualizando assim o mapeamento sobre as condições de moradia e vida nesses territórios populares, onde a maioria são mulheres negras, favorecendo para desvendar os riscos iminentes de ocultação e invisibilização dos dados públicos sobre a contaminação e as mortes em consequência da COVID–19 e garantir o direito à vida 21; (vi) realização de vídeo pelos próprios moradores com o registro de suas demandas e dificuldades vividas na pandemia; (vii) publicação 22, lives23 e entrevistas da coordenação24; (viii) elaboração e assessoramento ao projeto piloto do assentamento Fazendinha–Sapês para a regularização fundiária; (ixi) criação em setembro deste ano (2020) do Boletim Mensal “De Olho no NEPHU”, espaço de divulgação das atividades que estamos desenvolvendo e os principais desafios enfrentados na pandemia da Covid–1925. 21

A pesquisa pode ser acessada no link: <https://bit.ly/35R3LQ5>. Acesso em: 05 ago. 2020. BIENENSTEIN, G.; BIENENSTEIN, R.; SOUSA, D. M. M. O Coronavírus, a Cidade e a Arquitetura: o caso brasileiro como um (possível) laboratório de horrores. In: BORGES, A.; MARQUES, L. (Orgs.). Coronavírus e as Cidades Brasileiras: reflexões durante a pandemia. Rio de Janeiro: Outras Letras, 2020. p. 96–100. 23 Pós lançamento do livro acima foram realizadas duas lives que se encontram disponíveis nos sites: <https://www.youtube.com/watch?v=TLcZdEB25B8>. e <https://www.youtube.com/watch? v=O3gMRqTwTFU&feature=youtu.be&fbclid=IwAR2l2cgbbzj_2H34fc2hzs3bc5CMRd– PsXIDLFHhEEi–QkEpdrNJzS_Gb0Y>. 24 Entrevista da coordenadora, publicado no site da UFF, no dia 04 de maio de 2020, intitulada “A solidão das superpopulosas favelas no combate à maior crise sanitária do século”, conforme o link: <http://www.uff.br/?q=noticias/04–05–2020/solidao–das–superpopulosas–favelas–no– combate–maior–crise–sanitaria–do–seculo>. Entrevista recente coordenadora ao Sindicato dos Arquitetos do Rio de Janeiro, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=XMDUfG– ykcI&t=386s>. 25 Para maiores informações ver o link: 22

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As marcas da negligência da extensão universitária nas universidades públicas têm sido agravadas pela (contra)Reforma Educacional, Previdenciária e Trabalhista. Contraditoriamente, a tríade da indissociabilidade e associada ao projeto capitalista, Tem promovido, sistematicamente, a deteriorização das condições para a produção de conhecimento no campo educacional em particular, as atuais políticas brasileiras para a pós–graduação como a redução de bolsas de estudo, pouco ou nenhum financiamento, definição de prazos aligeirados para a conclusão dos cursos de pós–graduação stricto senso, a proliferação dos mestrados e doutorados profissionalizantes. O viés da produtividade se impõe e vem ditando uma redução na qualidade das pesquisas, sem contar no pouco ou inexistente incentivo a ações extensionistas. (OLIVEIRA, 2010, online. grifo da autora).

Nesta concepção de universidade, desvinculada dos interesses das classes populares e coadunada à produtividade subordinada aos interesses do capital internacional, consideramos relevantes as experiências de ações extensionistas vinculadas aos movimentos sociais. Inúmeros fatores vão desfavorecer a realização da extensão universitária e, consequentemente, a concretização do princípio da indissociabilidade anunciado, entre os quais destacamos: a estrutura departamental que favorece o desenvolvimento de ações individuais isoladas; os programas de pós–graduações que vão referir–se, primordialmente, à questão da produção do conhecimento – pesquisa. Os processos de avaliação e planos de carreira docente que desvalorizam as ações extensionistas; a não disponibilização de dotação orçamentária voltada para projetos de extensão universitária, o sucateamento que vem sofrendo a educação superior pública, a desvalorização docente, a precarização do trabalho docente etc. (OLIVEIRA, 2010, online).

Neste sentido, reivindicamos a Educação popular como “[...] uma forma de fazer educação que contribui para a mobilização e organização dos trabalhadores e favorece o despertar para uma consciência crítica, considerando nessa concepção a dimensão da classe e a necessidade de ultrapassar essa ordem societária” (SANTOS, 2017,p.305 ???), concepção esta que se constitui como

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ponto de intersecção com as organizações da classe trabalhadora, e que coaduna com as lutas anticapitalistas e populares26. Com o exposto, acreditamos que as ações extensionistas numa proposta dialogada e participativa não se trata de uma ação isolada, mas de uma ação que integra ensino, pesquisa e extensão, o que pode ser comprovado pelo número de coletivos populares e instituições envolvidas, conforme se observa no programa e seus projetos. 4. ALGUMAS CONCLUSÕES: EM DEFESA DA TRÍADE ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO Contrariando a secundarização da extensão universitária na relação com ensino e pesquisa, a experiência aqui examinada, que pretende ser coerente com os dilemas sociais vinculado a luta das classes populares, é uma produção de conhecimento comprometida com o projeto de nação de horizonte emancipatório. O desafio é negar experiências baseadas em feudos, com pesquisas isoladas, e pensar o compromisso com as classes populares nos dilemas da sociedade brasileira, tendo clareza sobre as razões pelas quais consideramos que a extensão qualifica a universidade. O princípio da indissociabilidade e as forças contra hegemônicas no interior das universidades brasileiras coloca uma questão fundamental: a construção de um projeto de universidade na direção da formação humana e da democratização do conhecimento, na participação dos coletivos populares na universidade e do reconhecimento do diálogo de saberes. As reflexões aqui desenvolvidas pretendem dar formato à experiência de trabalho de extensão, como um espaço pedagógico para a aprendizagem dos grupos envolvidos, sejam eles sujeitos da universidade ou da comunidade. Nessa perspectiva, partimos do princípio de que o conhecimento se constrói através da criação compartilhada entre educadores e educandos, seres singulares, pertencentes a diferentes realidades e histórias de vida, valores, sonhos e proje-

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O conceito de “popular” diz respeito ao conceito de “grupos sociais subalternos” desenvolvido nos Cadernos do cárcere por Gramsci. Para maiores informações ver: GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. v. de 1 a 6. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

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tos. Com esta metodologia, pretendemos promover, portanto, a ação coletiva e potencializar o espírito crítico e participativo. Dialogamos com Freire (2001) que afirma que a educação popular é o pensamento no campo da educação que estimula uma formulação mais próxima e coerente com os princípios da participação popular, como um processo político sustentado no diálogo de saberes e da humanização das pessoas. Portanto, considerando esta dimensão da educação popular, a experiência da extensão universitária que o NEPHU vem desenvolvendo, ratifica que o diálogo junto aos sujeitos envolvidos possibilita contribuições para ampliar a leitura sobre a realidade e, assim, promover aos sujeitos a identificação do seu protagonismo em suas ações e de suas histórias individuais e coletivas, além de provocar a construção de estratégias para a incorporação de demandas e necessidades dos coletivos na agenda pública da urbanização e regularização fundiária. Sendo assim, devem ser valorizadas, qualificadas e adotadas os processos de educação permanente para o controle social e de mobilização em defesa do direito à terra e à cidade, consolidando experiências relevantes para a defesa da democratização das políticas públicas, quais sejam: 1– A compreensão da extensão universitária na direção contra hegemônica que permeia a relação com a comunidade e o fortalecimento dos movimentos sociais da classe trabalhadora. Fazer história requer situar o indivíduo nas lutas mais gerais da classe trabalhadora; requer o fortalecimento das lutas e movimentos mais gerais de defesa dos interesses das classes trabalhadoras; significa afirmar a extensão universitária como central onde a resistência e luta se fazem presentes nas ações extensionistas. 2– A ressignificação da extensão universitária com a publicação da Resolução do Conselho Nacional de Educação27 na qual as atividades de extensão devem compor, no mínimo, 10% (dez por cento) do total da carga horária curricular estudantil dos cursos de graduação, as quais deverão fazer parte da matriz curri27

A resolução publicada é nº 7, DE 18 DE DEZEMBRO DE 2018 que “Estabelece as Diretrizes para a Extensão na Educação Superior Brasileira e regimenta o disposto na Meta 12 Meta 12.7 da Lei nº 13.005/201 que aprova o Plano Nacional de Educação – PNE 2014–2024 e dá outras providências.

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cular dos cursos” impõe, na correlação de forças, outro formato de disputa entre os recursos financeiros, envolvimento docente e discente na extensão universitária e o seu legado. Portanto, dialogando com Santos (2017, p. 27), “[...] talvez seja necessário recolocar o debate da extensão como espaço em potencial para o desenvolvimento de ações de Educação Popular”. 3– Reivindicar a negação da laterização da extensão universitária no interior da universidade, com a superação das seguintes dificuldades: (1) recursos públicos orçamentários insuficientes para a extensão; (2) o rareamento de incentivo docente para ações extensionistas; (3) o parco número de bolsas para docentes e discentes; (4) desvalorização do lugar da extensão para as ações de pós–graduação que se expressa nas plataformas de coletas de dados; (5) ações extensionistas que servem de apêndice das pesquisas (6) e a proliferação de ações, aparentemente, gratuitas, mas que escamoteiam mecanismos de venda de serviços educacionais e de consultorias técnicas. (OLIVEIRA; SANTOS; BIENENSTEIN, 2019, p. 55).

Por fim, com esses eixos, entendemos: (i) a potencialidade no fortalecimento dos espaços de diálogo com o poder público; (ii) o estímulo da participação dos grupos sociais, movimentos sociais e moradores/as nas instâncias de controle social e na redução de desigualdades pelo reordenamento territorial; (ii) a reversão da extensão universitária no interior da universidade na disputa de interesses antagônicos. REFERÊNCIAS ANTUNES, R. Trabalho precário, intermitente, é a antessala do desemprego. Sociólogo analisa o futuro do trabalho no Brasil e a nova massa superexplorada da era dos serviços digitais. Brasil de Fato. Brasil de Fato, São Paulo, 29 abr. 2019. Disponível em: < https://www.brasildefato.com.br/2019/04/29/trabalho–precario–intermitente–e–a–antessala–do–desemprego–diz–ricardo–antunes>. Acesso em: 02 set. 2020.

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XII DO DIREITO À MORADIA À PRECARIZAÇÃO DAS CONDIÇÕES DE VIDA: O COTIDIANO DOS MORADORES DO PMCMV NO JÓQUEI* Débora Rodrigues de Araujo1

INTRODUÇÃO O presente capítulo se constitui com a perspectiva de ampliar as reflexões iniciadas no Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Favelas e Espaços Populares (NEPFE), sobre o tema da questão urbana que também perpassou minha trajetória em campos de estágios, atuação profissional e vivência. As experiências profissionais em territórios de favelas e a participação no NEPFE foram instigando uma percepção crítica sobre as diferentes formas de intervenção do Estado nesses espaços. O discurso hegemônico da mídia e de parte dos estudiosos sobre favela tratam esses territórios como o lugar da ausência e não de intervenção do Estado. Mas no cotidiano desses espaços identificamos a presença do poder público com a execução de políticas públicas precárias, de baixa qualidade e fragmentadas, do qual é exemplo o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). A inserção empírica e o aprofundamento teórico possibilitaram compreender que a constituição das favelas e espaços populares fazem parte do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo. Assim, entende–se que as transformações que ocorreram no espaço urbano não acontecem de maneira natural, mas que são produto do processo de industrialização ao mesmo tempo

DOI - 10.29388/978-65-86678-35-2-0-f.267-286 Assistente social, Mestre em Serviço Social pelo Programa de Pós Graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal Fluminense (PPGSSDR) E–mail: deborarodrigues_as@yahoo.com.br *

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em que os moradores das favelas também são produtores da riqueza e simultaneamente consumidores. Assim, partindo dessas considerações este texto versa sobre algumas reflexões do Programa Minha Casa Minha Vida situado no Bairro do Jóquei no Município de São Gonçalo no Rio de Janeiro. Programa este que se apresenta como a garantia de acesso à casa própria para famílias de baixa renda, localizados nas áreas periféricas da cidade, as quais possuem baixa cobertura dos serviços públicos e precária infraestrutura urbana. Parte–se do pressuposto que, contraditoriamente, a política de habitação no Brasil responde a necessidade de ampliação do capital na medida em que aquece o mercado da construção civil e o mercado imobiliário. E por atuar construindo moradias precárias, aprofunda o processo de desigualdade socioespacial da cidade. Nesse cenário, entende–se que há um processo em curso de transformação urbana aonde o direito à moradia vem acompanhado da precarização das condições de vida da população mais pobre marcando o território. Segundo Haesbaert (2006, p. 16), o território é analisado em uma perspectiva “[...] intrinsecamente integradora, que vê a territorialização como o processo de domínio (político–econômico) e\ou de apropriação (simbólico–cultural) do espaço pelos grupos humanos” Neste sentido, o artigo se propõe a analisar questões a partir de alguns eixos de análise. O primeiro diz respeito à breve caracterização da Cidade de São Gonçalo (SG) a partir da teoria do desenvolvimento desigual e combinado. No segundo eixo pretende–se pontuar e traçar a algumas considerações sobre o cotidiano dos moradores que residem no empreendimento do PMCMV popularmente conhecido como “predinhos” do Jóquei/ SG. Tendo como referência o materialismo histórico e dialético como método de análise, a proposta deste estudo teve como perspectiva metodológica reflexões e análises sustentadas em uma abordagem de natureza qualitativa, utilizando–se de pesquisa documental e bibliográfica para a sua elaboração, assim como a realização de visitas ao território e utilização do recurso de mídias sociais com relatos de moradores.

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1- SÃO GONÇALO: UMA CIDADE MARCADA PELO DESENVOLVIMENTO URBANO DESIGUAL Analisar São Gonçalo é refletir particularmente sobre uma cidade que, para ser compreendida, deve ser inserida na constituição das cidades e do espaço urbano como fruto do desenvolvimento do capitalismo no Brasil, marcado pela maneira desigual como a sociedade brasileira se formou. A constituição dos distintos territórios onde vivem as diferentes classes sociais expressam o aprofundamento da desigualdade e a segregação sócio espacial característica do país. Assim, ao analisar a constituição urbana no município de São Gonçalo partimos do pressuposto de que as cidades se constituem como fruto do processo de desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo no Brasil, já que existe uma histórica desigualdade produzida pela conformação desigual do espaço urbano, nos termos de Harvey (2006). As condições sociais, econômicas e culturais fazem com que o crescimento das forças produtivas se desenvolva de forma diferenciada na realidade de cada sociedade. Realidade essa que apresenta características distintas de acordo com cada nação, a partir das suas conformações históricas, do grau de desenvolvimento das forças produtivas e da relação entre as classes essenciais antagônicas do sistema capitalista, explicitando uma forma desigual e ao mesmo tempo combinada de constituição do sistema capitalista mundial. A maneira desigual como o país se formou, aponta necessariamente para uma maneira desigual na ocupação urbana das cidades. “A desigualdade do desenvolvimento entre os continentes e países é acompanhada por um semelhante crescimento desigual dos distintos elementos dentro de cada grupo social ou organismo nacional.” (NOVACK, 1988, p. 27) Essa desigualdade combinada conforma também o espaço urbano, gerando o que Harvey (2006) identifica como desenvolvimento geográfico desigual, da qual a cidade do Rio de Janeiro pode ser considerada uma expressão. Assim, pensando na particularidade da formação do espaço urbano no Rio de janeiro até a metade do século XIX, é possível identificar que quase todos os habitantes da cidade viviam no mesmo espaço, conhecido atualmente como zona central e portuária. Nesse período, a desigualdade social já era pro-

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funda, pois a exploração do trabalho escravo era a principal forma de geração de riqueza. No final do século XIX com a abolição da escravidão (1888) e com a Proclamação da República (1989) a cidade do Rio de Janeiro cresceu muito, principalmente com a chegada de imigrantes Europeus e os ex–escravos. Esses “trabalhadores livres” que não conseguiram se incorporar nos espaços de produção foram ocupando as moradias precárias da cidade. Apesar da expansão geográfica que a cidade começou a desenvolver, ainda era grande o número de habitantes nas áreas centrais e a forma mais habitual de moradia popular à época era o cortiço2. Campos (2010) ressalta que há muitos estudos que discutem a questão da urbanização do Rio de Janeiro, mas poucos se dispõem a especificar quem eram os pobres que iniciaram o processo de adensamento da ocupação da cidade: Os negros e pardos (mulatos) acorrem à cidade principalmente a do Rio de Janeiro, alojando–se nos cortiços. Merece ainda destaque a restrição do acesso à terra pelos escravos, que, na falta, também procuravam a cidade em número cada vez mais significativo em busca de trabalho e de moradia. (CAMPOS, 2010, p. 58)

A cidade do Rio foi crescendo à medida que se industrializava sendo necessário adequar à sua conformação urbana às necessidades reais de concentração do capital, conforme aponta Abreu (2008, p. 60): O rápido crescimento da cidade em direção à zona sul, o aparecimento de um novo e elitista meio de transporte (o automóvel), a sofisticação tecnológica do transporte de massa que servia às áreas urbanas (o bonde elétrico), e a importação cada vez maior da cidade no contexto internacional não condiziam com a existência de uma área central ainda com características coloniais, com ruas estreitas e sombrias, e onde se misturavam as sedes dos poderes político e econômico com carroças, animais e cortiços.

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Os cortiços eram casas feitas com materiais de baixa qualidade, algumas de madeira, autoconstruídas que serviam de habitação coletiva para a população pobre.

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Abreu (2008) aponta que foi no governo de Pereira Passos, prefeito do Rio de Janeiro entre 1902–1906, que as políticas de reformas urbanas começaram a ser desenvolvidas pelo Estado. Sob o título de “Embelezamento e Saneamento da Cidade”, iniciava uma série de reformas na cidade do Rio de Janeiro, dentre elas a remoção dos cortiços da cidade. Com a remoção dos cortiços a população pobre começa a ocupar os morros da cidade. Essa população pobre, formada em sua maioria por ex–escravos livres, não incorporados no processo de produção, também aumentou com a chegada dos combatentes da Guerra de Canudos, que de acordo com Valladares (2005) formou a primeira favela da cidade, conhecida hoje como morro da Providência.3 Com as remoções dos cortiços os morros eram a alternativa para grande parte da população que vinha morar no Rio de Janeiro atraída pelo desenvolvimento industrial e a possibilidade de emprego. Esses segmentos da classe trabalhadora desprovidos de condições de ocupar espaços de moradia privilegiado foram habitando espaços mais precarizados. A ocupação dos espaços periféricos se expandiu com a ampliação dos sistemas de transportes e a ocupação de loteamentos populares destinados a segmentos da classe trabalhadora. Gradativamente, foi se formando o que hoje é intitulado como Região Metropolitana do Rio de Janeiro 4 que abrange a cidade de São Gonçalo, objeto deste estudo. Com a população composta por aproximadamente 1.091.737 habitantes5, São Gonçalo é o segundo município mais populoso do estado do Rio de Janeiro. A região, que antes da chegada dos portugueses era ocupada pela população indígena Tupinambás, também conhecidos como Tamoios, tem seu pro-

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O morro foi ocupado, primeiramente, pelos moradores desalojados dos cortiços e posteriormente soldados que voltavam da guerra de Canudos. Os antigos combatentes vieram para o Rio de Janeiro e ocuparam o morro com o objetivo de pressionar o Ministério da Guerra para seus soldos atrasados e por lá acabaram ficando. O Morro da Providência foi batizado no final do século XIX, como Morro da Favella. 4 Conforme a Lei Complementar nº 105 de 2002, a região Metropolitana do Rio de Janeiro é composta por 17 municípios: Rio de Janeiro, Belford Roxo, Duque de Caxias, Guapimirim, Itaboraí, Japeri, Magé, Nilópolis, Niterói, Nova Iguaçu, Paracambi, Queimados, São Gonçalo, São João de Meriti, Seropédica, Mesquita e Tanguá. 5 Fonte: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/sao–goncalo/panorama>. Acesso em 06 de setembro de 2020.

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cesso de exploração econômica através da construção de portos e fazendas. Nesse período destaca–se o processo primário exportador de cana-de-açúcar. Apesar de sua primeira emancipação política ter sido no ano de 1890 quando São Gonçalo é desmembrado de Niterói, ocorrem vários processos de disputas políticas e somente no ano de 1929 é instituída como cidade. 6 Foi a partir dos anos 1930, processo de grande crescimento industrial do Rio de Janeiro, que São Gonçalo tem sua expansão urbana, acompanhando a lógica de desenvolvimento das cidades modernas capitalistas que segue uma lógica de estruturação a partir do binômio industrialização/urbanização. No período há uma população que crescia na cidade do Rio e não conseguia ocupar os espaços centrais da cidade, já encarecidos, e foram conformando espaços de moradia na região metropolitana do estado. As rodovias e as ferrovias já existentes possibilitaram a expansão de outros espaços. Em São Gonçalo esse processo de ocupação ocorre através dos loteamentos populares. É importante considerar que a ocupação de São Gonçalo não ocorre somente pelo processo de industrialização da cidade do Rio. O município também se desenvolvia industrialmente desde os anos 1920 com a instalação de indústrias de cerâmicas, metalúrgicas e fábricas de pescado. Em 1940, chegou a ocupar o segundo maior produto industrial do estado, recebendo o título de “Manchester Fluminense” por alcançar importante patamar industrial. O processo de ampliação da infraestrutura urbana não acompanhou de maneira proporcional o crescimento populacional da cidade. Na sua construção histórica, o processo de loteamento popular se construiu a partir da lógica da especulação e as áreas centrais da cidade se desenvolvendo com maior infraestrutura urbana. Esta foi ocupada por pessoas com maior poder aquisitivo na época. Nesse processo, ocorreu a ocupação desordenada nas áreas mais afastadas do centro pela população mais pobre. Segundo Harvey (2006), a urbanização é uma forma importante de reprodução do capitalismo. As cidades passam por diferentes processos de transformações para atender às demandas do capitalismo e não para melhorar a vida de seus habitantes, conforme explicita o exemplo de muitas cidades brasileiras, assim como São Gonçalo. 6

Em 1929, a Lei nº 2335, de 27 de dezembro, concede a categoria de cidade a todos as sedes do município.

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Quanto aos meios da realização, vende–se a ideia de que é mais racional ou melhor, mais lucrativo priorizar obras que drenem grandes quantidades de recursos do Estado do que utilizar os mesmos recursos na ampliação e na manutenção de serviços básicos indispensáveis a uma população que não pode pagar planos de saúde ou escolas privadas e continua sem acesso à infraestrutura urbana. (BARREIRA, 2013, p. 143)

Consideramos que a construção urbana das cidades não acontece de maneira natural, mas são impulsionadas para a conformação de uma cidade desigual. Nesse sentido, compreendemos que a constituição do município de São Gonçalo é mais uma expressão do desenvolvimento territorial desigual do capitalismo. Como afirma FARAGE (2012, p. 40): A segregação na cidade produz tanto o desenvolvimento e a apropriação desiguais do território, como dos seus recursos, fazendo com que a cidade se constitua de espaços, locais e equipamentos que ratificam e evidenciam as desigualdades econômicas e sociais. Nesse sentido, a cidade não se constitui como fruto de um processo natural de desenvolvimento industrial e urbano, mas sim como fruto das necessidades do desenvolvimento capitalista.

São Gonçalo não se sustentou como importante polo industrial por muito tempo. A partir dos anos 1970 o emprego industrial declinou e a cidade aos poucos foi ganhando uma nova característica que é o de uma população que sai para trabalhar em outra cidade passando a receber o título de “cidade dormitório”. Foi no ano de 1974, com a inauguração da Ponte Presidente Costa e Silva, que liga a cidade de Niterói ao Rio de Janeiro, que a cidade se interligou aos principais centros urbanos da região, intensificando o fenômeno da cidade dormitório. O município com poucas ofertas de emprego e renda, com precária infraestrutura urbana, atraía uma população migrante que vinha em busca de trabalho no Rio de Janeiro. A cidade foi se conformando como espaço de moradias mais baratas para frações da classe trabalhadora que não conseguiam pagar para morar nem nos espaços mais precários da cidade do Rio de janeiro e até mesmo de Niterói – cidade adjacente. 273


No que se refere à intervenção do Estado na questão habitacional, a cidade de São Gonçalo construiu uma história de precário investimento estatal. Ao mesmo tempo que permitiu as concessões para ampliações dos loteamentos urbanos, não investiu em uma política urbana para atender o crescimento da população que aumentava. Conforme Plano Diretor do Município de São Gonçalo realizado em 2010 a cidade se divide em 5 distritos: 1º distrito – São Gonçalo (Sede); 2º distrito – Ipiíba; 3º distrito – Monjolo; 4º distrito – Neves e 5º distrito – Sete Pontes. Com mais de 1 milhão de habitantes, os dados do IBASE de 2014 expressam que o déficit habitacional de São Gonçalo era de aproximadamente 20 mil unidades de moradia. Além da precária situação habitacional, a cidade apresenta insuficiente abastecimento de água e serviço de esgotamento sanitário 7, coleta de lixo aquém das necessidades dos moradores tem como transporte de ligação com outros municípios, a exclusividade de empresas privadas de ônibus privados, apresentando mobilidade urbana desorganizada nas regiões mais afastadas das áreas centrais da cidade. Há que se destacar o projeto de construção da Linha 3 do metrô que possibilitaria a ligação entre a cidade do Rio de Janeiro e Niterói e entre Niterói e São Gonçalo, que há mais de 12 anos foi proposto e não foi concretizado. Contraditoriamente, foi construída a linha 4 do metrô na cidade do Rio de Janeiro que conecta a estação General Osório, na zona sul do Rio, à estação Jardim Oceânico, localizada na Barra da Tijuca. Esta linha atende uma quantidade ínfima de pessoas se comparado a densidade populacional dos trabalhadores e trabalhadoras que saem de São Gonçalo rumo a cidade do Rio de Janeiro diariamente. Nem mesmo o movimento pendular diário, que provoca longos e densos engarrafamentos nas rodovias, motivou a construção da linha 3 do metrô, mas o atendimento a uma população economicamente favorecida fez o poder público investir milhões na construção da linha 4. As desigualdades são as marcas da cidade de São Gonçalo. Responsável por acolher uma das maiores favelas planas da América Latina, o Jardim Catarina e por sua precária rede de atendimento de serviços públicos, a cidade é mer7

Conforme dados do IBASE (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) a cidade possui 20% da população em moradias com esgoto a céu aberto.

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cada pelos sucessivos e longos cortes de luz, pelo limitado recolhimento de lixo, pela escassa e precária rede de educação e de assistência social, entre outros. O município de São Gonçalo é marcado por um dos mais baixos salários pagos a redes de funcionalismo público, além de ser característico a contratação terceirizada, uma vez que os concursos públicos não são a marca da garantia de direitos no município. Segundo Corrêa (1995, p. 6), o espaço deve ser compreendido “[...] como forma espacial em suas conexões com a estrutura social, processos e funções urbanas”, sendo ainda considerado como um “[...] paradigma de consenso e de conflito”. É mediante esses apontamentos, que abordaremos a seguir algumas reflexões sobre as particularidades do cotidiano dos moradores e a questão da moradia no bairro do Jóquei no município de São Gonçalo. 2- MINHA CASA MINHA VIDA EM SÃO GONÇALO: A EXPERIÊNCIA DOS “PREDINHOS” DO JÓQUEI Conforme as reflexões construídas acima, a processualidade histórica de conformação desigual do município de São Gonçalo apresenta processos diferenciados na formação dos bairros da cidade. É possível afirmar que os bairros mais próximos das áreas centrais do município possuem um maior investimento de infraestrutura urbana em detrimentos dos demais. O bairro do Jóquei, localizado no terceiro distrito de São Gonçalo teve sua ocupação ampliada a partir do projeto de construção do Jóquei Clube de São Gonçalo no ano de 1957. O projeto do hipódromo no Bairro não foi efeti vado, sendo o espaço transformado em loteamentos. Sua ocupação com loteamentos populares foi sendo realizada por migrantes, em sua maioria vindo do Nordeste, que viam em busca de mercado de trabalho no Rio de Janeiro. O território retrata a conformação de processos desiguais de espaço de moradia e é marcado pelo baixíssimo investimento do poder público. Com relação aos serviços públicos oferecidos, o bairro que possui aproximadamente 3.758 domicílios com mais de 11 mil habitantes 8, é formado apenas por duas escolas estaduais, uma escola municipal, duas Unidades Básicas de Saúde e somente uma creche comunitária conveniada com a Prefeitura de 8

Conforme Censo do IBGE de 2010.

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São Gonçalo que está há aproximadamente sete meses sem receber repasses de verbas do munícipio. Quanto a política de Assistência Social, os CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) e CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) que atendem diversos bairros da cidade, estão localizados em outro bairro, Tribobó, a cinco quilômetros de distância sendo necessário a utilização de transporte público para acessá–lo. Destaca–se que os CRAS, em sua legislação específica deve atender aproximadamente 5.000 famílias por território e conforme último censo do IBGE, que já possui mais de 10 anos, o bairro do Jóquei tinha uma população habitacional de 11.068 pessoas. Um elemento marcante no bairro, que traz muitos problemas no cotidiano da vida dos moradores é a existência do comércio varejistas de drogas. Há presença de grupos civis armados com duas facções rivais conforme se noticia nas mídias locais, além da presença de milícias. O conflito armado entre as facções rivais é constante e recorrente, assim como confrontos entre policiais e grupos armados. Cabe informar que no bairro há uma DPO (Companhia Destacada de Policiamento Ostensivo) que conta com efetivos de policiais militares, mas os conflitos quase diários demonstram a fragilidade na forma como o Estado “garante” a segurança pública no território. Consideramos que as precárias condições de acesso aos serviços não dizem respeito apenas aos equipamentos públicos não existentes no bairro, mas a baixa qualidade em seu funcionamento, assim como o distanciamento produzido pela baixa oferta de linhas de ônibus que dificulta o acesso da população na busca de serviços em outros espaços da cidade. No bairro do Jóquei existe apenas uma linha de ônibus intermunicipal e duas linhas municipais. Os serviços de transporte individuais como Uber estão suspensos pelo próprio aplicativo justificado pelo bairro ser considerado área de risco. São inúmeras violações de direito perpetradas pelo próprio Estado que deveriam garantir o Direito a Cidade. Nesse sentido Harvey (2014) nos ajuda com uma reflexão importante: O Direito à Cidade é, portanto, muito mais do que um direito de acesso individual ou grupal aos recursos que a cidade incorpora: é um direito de mudar e reinventar a cidade mais de acordo com os nossos profundos desejos. Além disso, é um direito mais coletivo do que individual, uma 276


vez que reinventar a cidade depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo sobre o processo de urbanização. (HARVEY, 2014, p. 28)

Ainda sobre a caracterização do bairro, é expressivo o número de empreendimentos de pequeno porte, especialmente bares e salões de beleza. Assim como é grande o número de igrejas, em sua maioria evangélicas. As igrejas evangélicas cumprem um papel importante nas favelas. No Jóquei esse espaço é considerado o espaço de acolhida, de acesso a alimentos, e construção de lideranças que em alguma medida exercem poder. Com relação aos espaços de lazer, há apenas uma praça em estado de conservação ruim. Nos terrenos vazios que eram utilizados para jogos de futebol foram construídos os empreendimentos do PMCMV. A falta de investimentos em esporte e lazer aponta o quanto essa política é lateralizada para as áreas mais pobres. Realizando um destaque a questão da moradia, objeto de preocupação neste estudo, até o ano de 2014 as construções habitacionais do Jóquei eram predominadas por casas autoconstruídas, distribuídas espacialmente com no máximo dois andares. A partir da construção das unidades habitacionais do Programa Minha Casa Minha vida o bairro passou a ter uma nova configuração visual com imóveis verticalizados já que foram construídas 2701 unidades habitacionais. O extinto Ministério das Cidades9 que foi criado no ano de 2003, primeiro ano do governo Lula (2003–2011), representou um novo formato de implantação da política habitacional e infraestrutura urbana no país. Com o plano nacional de habitação criado em 2009, surgiu o Programa “Minha Casa, Minha Vida” que anunciava reduzir o déficit habitacional brasileiro proporcionando à população de baixa renda condições de moradia digna. Destaca–se que, em 2017, a Fundação Getúlio Vargas (FGV) estimou que o déficit habitacional no Brasil estaria em 7,7 milhões de domicílios e a Fundação João Pinheiro (FJP) mostra que em 2015, havia 7,9 milhões de imóveis vagos no Brasil. Segundo a FJP, desse total, 6,893 milhões de imóveis estão em condições de serem ocupados, e 1,012 milhão passam por reforma ou ainda estão em construção. Em seus estudos, a FJP utiliza os dados da Pesquisa Naci9

O órgão foi extinto com a edição da Lei nº 13.844, de 18 de Junho de 2019.

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onal por Amostra de Domicílios (Pnad), feita pelo IBGE, e ressalta que os números não incluem os “imóveis em ruínas.” O que significa dizer que mesmo com o esforço do programa, o Brasil ainda conta com um problema de grande importância a ser solucionado. A política de habitação desenvolvida pelo Programa Minha Casa Minha Vida trouxe na sua prática uma vinculação com o mercado imobiliário, sem participação da população, onde as construtoras escolheram a localização dos terrenos, geralmente os mais afastados, com valores mais baixos, em territórios com infraestrutura precária. Um projeto que tem sua marca no lucro e produz ainda mais desigualdades socioespaciais. Mediante estas ponderações, pensando nas particularidades de São Gonçalo, em 2014 iniciaram a conclusão dos 08 conjuntos habitacionais implantados no bairro do Jóquei. Os apartamentos foram destinados as famílias com faixa de renda de até mil e oitocentos reais inscritas no Cadastro Único (CAd Único) do Governo Federal e teve como beneficiárias as famílias vitimadas por desastres e calamidades públicas ambientais ocorridos no município. Durante a construção das unidades habitacionais não houve criação de qualquer equipamento público para o atendimento do conjunto dos novos moradores. Os poucos e precários serviços oferecidos pelo Estado para a população que já residiam no território passaram a ser disputados também pelas novas 2701 famílias que entre os anos de 2014 e 2016 mudaram para os novos empreendimentos habitacionais. Além disso, os imóveis entregues apresentaram uma série de problemas estruturais e já nos primeiros conjuntos habitacionais inaugurados entregues foram relatadas várias situações: falta de condições técnicas para a instalação da rede elétrica, imóveis entregues sem emissão do habite–se (auto de construção de obras) e falta de iluminação nas partes comuns do condomínio. No mês de março de 2016 houve a primeira forte chuva após a inauguração dos condomínios e a maior parte dos apartamentos térreos foram atingidos trazendo uma inundação. Os moradores perderam todos os móveis, documentos pessoais, além da enchente ter afetado as tubulações da companhia de abastecimento de água, onde as famílias de todos os conjuntos habitacionais ficaram sem acesso à água.

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Importante ressaltar que parte das famílias beneficiadas com imóveis haviam sido vítimas de desastres no município em anos anteriores e perderam suas casas. Com a enchente nos apartamentos reviveram as mesmas perdas. Além disso, há que se considerar que os apartamentos térreos foram destinados ao atendimento as pessoas com deficiência e idosos, os principais atingidos com a inundação dos conjuntos habitacionais. Na ocasião havia alguns imóveis ainda em fase final de construção nos conjuntos habitacionais e as famílias desalojadas ocuparam os empreendimentos vazios. A situação motivou que outras famílias atingidas pela enchente e que não residiam nos conjuntos habitacionais ocupassem os apartamentos inacabados. No dia 17 de maio de 2016, oficiais de justiça e agentes da polícia militar e federal com mandados de reintegração de posse retiraram todas as pessoas que estavam na ocupação. As famílias que residiam no empreendimento antes da enchente voltaram para os imóveis atingidos pela inundação, e o município não reconheceu as condições em que os imóveis se encontravam. Essa realidade das condições de moradia já nos primeiros anos de entrega dos empreendimentos se mantém até os dias de hoje, sendo relatado pelos moradores a precariedade nas condições estruturais dos apartamentos. Além disso, os conflitos armados que ocorrem quase que diariamente nos arredores do empreendimento são sinalizados por toda a população como um local difícil de viver. Os conjuntos habitacionais passaram a ser denominados popularmente como “predinhos” e a oferta de venda ou aluguel dos imóveis passou a promover constantes mudanças da população residente, não tendo os moradores do local construído um vínculo identitário com o território e nem construíram alguma possibilidade de organização coletiva. Entendemos o cotidiano como espaço que reflete as condições objetivas da realidade social vivenciada, e observamos que o território do Jóquei passou a apresentar os reflexos das contradições impressas pelo Estado ao construir quase três mil novas moradias sem qualquer investimento de infraestrutura para a população. O Programa Minha Casa Minha Vida, passou a ser apelidado pela população local como “Minha Casa Meu pesadelo”. Segundo FARAGE (2012, p. 150):

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O cotidiano é entendido como o espaço de produção real da vida, da reprodução da ideologia, da construção das relações sociais de existência, considerando diferentes aspectos da vida, como a família, a escola, a religião, o trabalho, a cultura e as formas de organização coletivas. Nessa perspectiva tem–se no desenvolvimento das ações públicas, nos equipamentos do Estado, um interlocutor essencial para o processo de produção e reprodução social da vida.

Em uma comunidade da rede social moradores relatam as condições de insegurança por conta dos tiroteios: “Fico muito triste. Muitas pessoas de bem, honesta, sonham em ter sua própria casa e tem que deixar todos os seus sonhos.” “Tá muito brabo mesmo, não tem mais hora. Tá todo mundo querendo sair desse lugar.10” Entende–se que o processo de crescimento da violência não acontece de maneira natural, mas aumenta de acordo com as relações de exploração e desigualdade. O comércio ilegal de drogas se revela como uma atividade viável para os jovens dispostos a se arriscar nessa sociedade do capitalismo flexível. A realidade dos “predinhos” expressa as condições de um país e de uma cidade desigual, com altos índices de homicídio, onde o alvo principal são frações de uma classe que dispõem apenas da sua força de trabalho para sobreviver. Não encontramos dados sistematizados sobre o índice de homicídios no Jóquei, mas o cotidiano demonstra que o alto número de assassinados no território contribuiu para que o município de São Gonçalo, no ano de 2019, liderasse a estatística de mortes em confrontos armados. A violência e suas diversas manifestações estão diretamente ligadas ao desenvolvimento do capitalismo em nosso país, que vem se utilizando de todas as ferramentas para “eliminar” a concentração de pobres que o processo de acumulação do capital produziu. E para justificar essa violência são construídas formas ideológicas de criminalizar a população que mais sofre as consequências desse processo. Para Silva (2009, p. 57), Pela via do processo de sinonímia entre tráfico de drogas e favelas, esses territórios foram sendo, cada vez mais, identificados e representados como definitivamente perigosos e ingovernáveis, afirmando–se a impos10

Comentários em rede social, grupo público do facebook denominado “JÓQUEI SG”. Acesso: 10 de setembro de 2020.

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sibilidade de se estabelecer ali o mesmo padrão de regulação social presente em outras partes da cidade.

Nesse sentido, os moradores dos “predinhos” do Jóquei além de sofrerem com as precárias condições de vida, vivem no seu cotidiano as repercussões do estigma de serem os responsáveis pela piora da realidade do território. É comum que moradores antigos culpabilizem a chegada dos novos habitantes dos empreendimentos como responsáveis pelas mudanças negativas do cotidiano do território, como aponta a fala: “Os apartamentos são bonitos, mas aqui no Jóquei tá o pior bairro.” “Moro 30 anos e agora tá horrível. Nem vou a rua. Só por muita necessidade.” “Gente, a coisa tá ruim no Jóquei e infelizmente é o predinho.” “Infelizmente é verdade. O jóquei era bom até os prédios. Tem até gente boa, mas baratas sem multiplicam...11” As frases acima são de moradores que discutem em uma comunidade da rede social local o crescimento dos confrontos armados. No geral os embates se dão entre os moradores dos “predinhos” e os que residem em outras comunidades do entorno. Vemos também a criminalização dos moradores por parte de pessoas de outros territórios, como exemplo, vimos o relato de um jovem que em uma entrevista de emprego é repreendido pelo local que reside: “Um dia desses fui em uma entrevista de emprego e me perguntaram onde moro. Falei que moro no Jóquei e a mulher se espantou questionando se eu morava nos predinhos, pois lá era muito perigoso.”12 Conforme já dito, a construção social sobre os moradores de favela e periferias também determina a forma como o Estado desenvolve as políticas públicas. Essa resposta à parte da classe trabalhadora que se encontra nos territórios mais pobres historicamente foi desenvolvida através do autoritarismo e controle. Por fim, um grande problema apresentado pelas famílias foi a dificuldade das mesmas no acesso à educação. Muitas crianças recorrem a única escola pública do território, mas não conseguem ser atendidas. Assim, andam alguns quilômetros ou dependem dos poucos ônibus que circulam no bairro para se deslocar para outros bairros e estudar. 11

Comentários em rede social, grupo público do facebook denominado “JÓQUEI SG”. Acesso: 10 de setembro de 2020 12 Iìdem ao anterior.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Traçando algumas considerações não conclusivas sobre o direito à moradia e precarização das condições de vida mediante a análise do cotidiano dos moradores do PMMV no Jóquei, é possível reafirmar que São Gonçalo reitera o exemplo de que o capitalismo não se desenvolve sem produzir territórios desiguais. Para além disso, “os direitos de propriedade privada e a taxa de lucro se sobrepõem a todas as outras noções de direito” (HARVEY, 2014, p. 73). Assim, o Jóquei, seria mais uma expressão da segregação urbana que se manifesta em uma cidade já segregada. São Gonçalo, como cidade periférica, apresenta uma série de problemas importantes quanto ao seu desenvolvimento urbano já que a mesma cresceu de forma desproporcional ao investimento público em infraestrutura e políticas sociais. Na cidade não há um terminal rodoviário, não existe um hospital de grande porte, as vias públicas possuem pavimentação de má qualidade ou incompletas, a entrega de correspondências é insuficiente, a coleta de lixo é irregular e diversos serviços públicos estão aquém da sua demanda. Toda essa caracterização da cidade está presente no bairro do Jóquei, mas de forma acentuada e que piora a cada dia já que não há projetos e programas de urbanização e desenvolvimento das demais políticas sociais para o território. Harvey (1996) aponta que a urbanização é uma forma importante de reprodução do capitalismo já que as cidades passam por diferentes processos de transformações para atender às demandas do capitalismo e não necessariamente para melhorar a qualidade de vida de seus habitantes. Quanto aos meios da realização, vende–se a ideia de que é mais racional ou melhor, mais lucrativo priorizar obras que drenem grandes quantidades de recursos do Estado do que utilizar os mesmos recursos na ampliação e na manutenção de serviços básicos indispensáveis a uma população que não pode pagar planos de saúde ou escolas privadas e continua sem acesso à infraestrutura urbana. (BARREIRA, 2013, p. 143)

Quanto aos moradores dos empreendimentos do Programa Minha Casa Minha Vida, estes encontram no programa uma opção de moradia oferecida pelo poder público como concretização de acesso à moradia a população 282


mais pobre. Porém, este se apresenta prioritariamente como uma nova organização do espaço urbano em um contexto de relações sociais capitalistas e de sua dinâmica de desenvolvimento, visando a produção de novas estruturas e padrões de empresariamento urbano. Na experiência analisada foi possível observar que a construção dos empreendimentos em um território afastado do centro do município, com baixa oferta de linhas de ônibus e políticas públicas entre outras debilidades, não considerou as necessidades já existentes dos moradores do Jóquei. Houve um grande aumento populacional, quase dobrando o número de moradores, sem qualquer investimento governamental para atender a demanda da população que chega junto com o empreendimento. Por fim, o discurso realizado em torno do Programa Minha Casa Minha Vida como política habitacional de combate à desigualdade, apresenta muito mais o investimento e desenvolvimento econômico, do que a melhoria das condições de vida da população. O cotidiano dos moradores dos “predinhos” do Jóquei reflete esse modelo de Estado que viola direitos e precariza as condições de vida da população mais pobre e expressa as contradições do que o projeto se propõe e o que ele realmente é. REFERÊNCIAS ABREU, M. de A. Evolução Urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPP, 2008. ALERJ. Lei Complementar nº 105 de 2002. Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002. Disponível em: <http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/contlei.nsf/f25571cac4a61011032564fe0052c89 c/623fa9ce62b1c36683256ca6005b080d?OpenDocument> . Acesso em: 20 out. 2020. BARREIRA, M. Cidade Olímpica: sobre o nexo entre reestruturação urbana e violência na cidade do Rio de Janeiro. In: BRITO, F.; ROCHA, P. de O. (orgs.). Até o último homem. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 124–145. BRASIL. Ministério das cidades. Plano Nacional de Habitação. Brasília, 2009. Disponível em: 283


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